MASCULINIDADES E FEMINILIDADES NO MUNDO EMPRESARIAL. A RIQUEZA DA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DE GÊNERO E PARENTESCO NO LIVRO JÓIAS DE FAMÍLIA.



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Transcrição:

MASCULINIDADES E FEMINILIDADES NO MUNDO EMPRESARIAL. A RIQUEZA DA ANÁLISE ANTROPOLÓGICA DE GÊNERO E PARENTESCO NO LIVRO JÓIAS DE FAMÍLIA. Moisés Lopes 79 Uma das lições mais básicas, e que inclusive pode definir de maneira sintética, como se processa o trabalho do antropólogo foi desenvolvida por Roberto Da Mata em seu texto (1978) O ofício de etnólogo, ou como ter Anthropological Blues. Nele, o autor aponta que a dupla tarefa do etnólogo consiste em: 1. transformar o exótico em familiar; 2. transformar o familiar em exótico. Se o primeiro movimento estava presente desde a origem da disciplina, o segundo emerge quando passamos a eleger nossa própria sociedade como objeto de pesquisa antropológica. O livro Jóias de Família, de Adriana Piscitelli, pode ser enquadrado no segundo momento: um esforço antropológico para a compreensão de nossa própria sociedade, um esforço para tornar estranho o familiar. Essa é uma das primeiras lições e, talvez a mais importante da antropologia, o estranhamento. Nesse caso específico, implicou lidar com um forçoso desligamento emocional e um necessário questionamento crítico das categorias regentes de nosso mundo, que é também o da antropóloga. Isso é mais imperioso ainda quando o tema a ser tratado é a relação entre gênero e parentesco, afinal de contas são temas que nos atravessam em todos os sentidos e de muitos e diversos modos. Claramente influenciada pela obra de Marilyn Strathern, especialmente pelo livro The gender of the gift, de onde retira o conceito de gênero para sua análise, Piscitelli busca aprofundar o diálogo entre gênero, partindo de leituras feministas, e teoria antropológica. Esse diálogo já havia sido formulado no livro de Strathern. A autora, através de uma análise que retoma e discute estudos sobre parentesco e gênero desenvolvidos na Melanésia, enfoca três relações básicas: a relação antropologia/feminismo, onde critica as representações produzidas nas sociedades ocidentais que se distanciam das 79 Doutorando PPGAS DAN/UnB. 169

Masculinidades e feminilidades no mundo empresarial. A riqueza da análise... categorias nativas; a relação dádiva/mercadoria: se a troca de dons estabelece uma relação entre sujeitos trocáveis, a troca de mercadorias está fundamentada em uma troca de objetos trocáveis; e a relação nós/eles: as duas anteriores estão imersas, e dizem respeito a uma diferença marcante entre nossos modos de socialidade e os deles. Piscitelli, por desenvolver um estudo em nossa sociedade, não precisa lidar com muitos desses problemas e dualidades. No entanto, mostra como, mesmo na nossa sociedade, estudiosos que acreditaram dominar a lógica de representação do gênero e do parentesco acabaram caindo na armadilha de não estranhar o familiar: quando imersos em um imaginário de naturalidade e neutralidade acabaram não se dando conta de que essas representações têm uma história, trazendo em si elementos de construções sócio-culturais. Mais do que isso, podemos não nos dar conta de que mesmo os elementos considerados mais neutros, como o corpo, não são tão indiferentes assim. A autora de Jóias de Família mostra, inclusive, as descrições dos pioneiros como seres hercúleos que marcam descontinuidades representando o caráter distintivo do gênero (especialmente, da masculinidade) constituído pouco a pouco em seus corpos. Essas distinções são vistas como demarcaçoes da personalidade presentes nos estilos de masculinidades mais valorizados: a força dinâmica do fundador, a iniciativa e a coragem que se materializam no físico robusto do empreendedor. No entanto, há também descontinuidades. (Não seria: continuidades?) Esses mesmos empreendedores são narrados como sendo intuitivos no mundo dos negócios e ternos no mundo familiar, mas esses atributos entendidos como femininos não marcariam a corporalidade (gestos, posturas ou corpo) desses homens. Assim, a pesquisadora da UNICAMP, mostra a possibilidade de pensarmos a existência de sujeitos não unitários e corpos não homogêneos, com a presença de subjetividades e agências igualmente não unitárias incorporadas. O que redundaria em uma tensão entre representações de identidades de gênero coerentes e as que podem ser consideradas como sugestões de hibridez, apesar das identidades de gênero masculinas serem apresentadas nas narrativas de maneira coerente e unitária. Entretanto, essas tensões não são apagadas e as características pensadas como masculinas ou femininas, não recobrem totalmente homens, mulheres, 170

Moisés Lopes masculinidades e feminilidades se expressando contextualmente em espaços e atividades do mundo empresarial. Assim, para a autora, a personalidade empresarial de sucesso é vista como uma composição de características femininas e masculinas; em suas palavras, Levando em conta os diversos procedimentos de atribuição de gênero presentes nas histórias, é possível concluir que, no conjunto dos relatos, a composição da personalidade empresarial revela a presença de atributos masculinos e femininos [...] Em parte das histórias, esses atributos estão englobados na idéia de uma ação empresarial masculinizada. De maneira distinta, nos relatos mais recentes, autobiográficos, características femininas e masculinas convivem, dando lugar a uma ação empresarial que aparece como neutra (p. 114). Novamente vemos aqui a influência de Strathern. Ao analisar os Melanésios, não os vê como possuindo uma identidade de gênero, como a Ocidental, uma vez que podem ser duplas ou compostas e/ou unitárias. A manifestação dessas identidades depende totalmente do contexto ou da forma assumida pelas identidades com quem se está interagindo. Dessa afirmação, emerge um conceito que é fundamental para a análise de Strathern e de Piscitelli: o conceito de contexto da ação, esse é que determinará qual forma, atributos ou características a identidade de gênero (no caso de Strathern) e a personalidade empresarial (no caso de Piscitelli) irão assumir. Além dessa influência de Strathern, que marca a obra Jóias de Família, na introdução do livro há uma extensa discussão sobre femi-nismo e antropologia referente à categoria gênero influenciada pela obra The gender of the gift, como já apontado anteriormente. Esse conceito é tomado como uma diferenciação categórica que assume conteúdos específicos em contextos particulares. Trata-se de uma maneira de perceber as diferenças entre os sexos: categorias dão forma e sentido às relações sociais. Nas palavras de Piscitelli, o gênero é pensado como um operador de diferenças não preestabelecidas que marcam e que só podem ser compreendidas contextualizadamente (p. 41). Sendo assim, pensando o gênero como um modo de diferenciação que atravessa o social, igualmente perpassa noções associadas ao parentesco e às 171

Masculinidades e feminilidades no mundo empresarial. A riqueza da análise... relações por ele delimitadas. No que tange aos relatos analisados no livro, o gênero traça diferenciações no interior de herdeiros (as) ligados (as) por laços de parentesco; e em algumas histórias marca, também, distinções entre eles (os homens). Assim, nas narrativas, vemos a presença de diversos traços relacionados a características masculinas no âmbito competitivo da luta empresarial que, no entanto, não exclui inteiramente características femininas. A autora atenta a diversas características consideradas masculinas e femininas, bem como as diferentes masculinidades e feminilidades. A participação feminina nas sucessões empresariais mantém vinculações com modalidades de relações de parentesco e com estilos de controle acionário, pois, quando os grupos empresariais privilegiam relações patrifiliais e tendem ao controle acionário, a participação da mulher é ampliada; de modo contrário, quando a participação acionária se dilui em sócios/parentes e as sucessões circulam entre consangüíneos e afins, a participação feminina aparece mais limitada. Desse modo, o gênero não pode ser analisado como uma categoria que tem como única característica a cisão entre pessoas, assim como o parentesco não tem a união como característica exclusiva. Isso fica mais claro nos relatos sobre o único grupo que incorpora a afinidade: (colocar o nome do grupo). Nele, gênero liga pessoas que não compartilham do mesmo sangue na gestão dos negócios, pela identidade entre homens. Somando-se a isso, gênero é utilizado como um tipo de linguagem usada para distinguir entre modernização e estagnação. Linguagem que atravessa o mundo familiar e de negócios fixando traços da personalidade que são transferidos para os descendentes e empresas, bem como marcam a composição híbrida de pessoas no aparentemente neutro mundo dos negócios. Resta ainda dizer que Piscitelli parte de narrativas familiares e complexas relações de parentesco estabelecidas por famílias ligadas a quatro grandes empresas brasileiras os grupos Matarazzo, Lundegren (Pernambucanas), Sadia e Pão de Açúcar tendo como material de análise autobiografias, biografias, livros comemorativos e algumas entrevistas. Partindo desse material a autora mostra como esses quatro grupos empresariais se diferenciam na participação das mulheres no universo da gestão, com o grupo Matarazzo sendo marcado como exemplo de incorporação e os grupos 172

Lundgren e Sadia exemplos de exclusão absoluta das mulheres. Já o grupo Pão de Açúcar representaria a expressão moderna e igualitária de homens e mulheres na gestão empresarial. A leitura desse livro é de fundamental importância para antropólogos e pesquisadores que lidam com temas como gênero, parentesco e mundo empresarial, principalmente por dois motivos: trata-se de uma abordagem inovadora na literatura sobre mundo empresarial por desmontar (pre)conceitos no que tange a participação feminina no mundo dos negócios, bem como ao papel importantíssimo que tem o parentesco e a família na sucessão empresarial; traz uma substancial contribuição aos estudos de gênero ao complexificar (ficaria melhor: complexar ou tornar complexa?) a discussão sobre como se dá a construção da identidade de gênero na sociedade contemporânea, mostrando a tensão entre uma construção aparentemente unívoca e estável, e outra híbrida com traços masculinos e femininos. Além disso, Jóias de Família é uma leitura quase obrigatória para o estudante de antropologia, pois a autora faz reflexões inseridas no campo dos estudos de parentesco, tema clássico na antropologia que entre o início dos anos 60 e meados dos 80 sofre um intenso questionamento e abalo. Mas, em décadas subseqüentes vai se reconstruindo com ênfase em estudos centrados na própria sociedade ocidental, como uma resposta ao impacto de novas tecnologias reprodutivas e do movimento feminista; e hoje do movimento homossexual que busca a afirmação de novas formas de família e parentalidade. Referências Bibliográficas Moisés Lopes DA MATTA, Roberto. O Ofício do Etnólogo, ou como ter Anthropological Blues. In: NUNES, Edson de Oliveira. (org.). A Aventura Sociológica. Objetividade, Paixão, Improviso e Método na Pesquisa Social. Rio de Janeiro: Zahar, 1978, p. 23-35. PISCITELLI, Adriana. Jóias de Família: gênero e parentesco em histórias sobre grupos empresariais brasileiros. Rio de Janeiro: UFRJ, 2006. STRATHERN, Marilyn. The gender of the gift: Problems with women and Problems with Society in Melanesia. University of Califórnia Press: Berkeley, 1988. 173