Que saber há no real?



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Opção Lacaniana online nova série Ano 4 Número 12 novembro 2013 ISSN 2177-2673 Qual saber há no Real? Teresinha Natal Meirelles do Prado Na apresentação do tema do IX Congresso da AMP 1, J.-A. Miller lança o debate em torno do real, e sua desordem, no século XXI. Para fazê-lo, revisita alguns momentos da história e os nomes do real em cada um, passando de uma concepção sagrada, como a ordem natural que não se pode macular, a um saber escrito e matematizado, cujas fórmulas e leis tornam-se passíveis de ser apreendidas, em seguida tomado como a matéria que pode ser mensurada, manipulada e comparada. Enquanto a concepção de um real estava ligada à de natureza, a fórmula há saber no real indicava a existência de leis naturais, de uma regularidade que o saber científico permitiria prever. Mas, com a introdução do acaso e da incerteza probabilística nas formulações científicas, como se observa na física subatômica, até a concepção de (A) matéria se torna tão evanescente como se evidencia para Lacan a de (A) mulher. A isto Miller chama de revelação do real. Revelar [do latim: revelare, e velum] é tirar o véu, dar a ver. Essa revelação do real passa pela dissociação entre real e natureza, que expõe a impossibilidade de extrair leis naturais que apreendam sua ordem. Ora, essa dissociação, Lacan já a vislumbrava ao enunciar: O real é sem lei, que implica considerar que o real não tem lei natural. Em outras palavras, é casual, contingente, desordenado. Se, conforme aponta Miller no início de seu texto, a pedra angular do primeiro ensino de Lacan, que era o Nomedo-Pai, foi rebaixada a apenas um sinthoma, ou a uma suplência ao furo no saber que se revela pela inexistência da relação sexual, ao mesmo tempo é possível constatar que essa mudança, de algum modo, no século XXI, passou à 1

civilização, e o que antes podia ser visto como formalizações lacanianas, mostra-se hoje como possibilidade de leitura do mal-estar. Não há relação sexual Em Televisão, Lacan atribui à relação sexual (que não há) o mesmo predicado que no Seminário 20 é utilizado para referir-se ao Real: a relação sexual como o que não cessa de não se escrever 2, situada na categoria do impossível. A simples fórmula Não há relação sexual bastaria para confirmar a hipótese de que não há saber no real tomado como equivalente da natureza, pois de certo modo é o que essa frase faz entrever: se para a espécie humana o saber prévio inscrito na carga genética não determina como cada um se situa na relação com o sexo, justamente porque, conforme já apontava Freud ao criar o conceito de complexo de Édipo, no psiquismo só se inscreve um, isto permite concluir que para o ser falante não há um saber prévio no real da natureza quanto à própria sexuação. No entanto, se o real de que se trata não é o da natureza, talvez seja possível considerar a questão de outro modo. A partir da formulação da inexistência da relação sexual e do real sem lei, podemos considerar que a estrutura não só não é universal, como também é nãotoda, e sua condição de existência é não ser totalizável (o real é a falha que denuncia a inconsistência do universo simbólico). J.-A. Miller, em uma aula sobre o sinthoma, utiliza uma metáfora que explica essa relação entre inconsistência e falha como referente: se temos uma caixa dentro da qual pode haver bolas pretas e/ou brancas, temos um universo finito. Para saber se todas as bolas são de uma cor ou de outra, basta retirá-las uma a uma e ao final dessa operação, verificar quais são de cada cor. A cada bola 2

retirada, pode-se fazer uma afirmação acerca do conteúdo da caixa. Se pegamos uma branca, sabemos que pelo menos uma é branca, e simultaneamente está descartada a hipótese de que todas sejam pretas. O mesmo acontece se a segunda bola retirada for preta: há pelo menos uma bola preta na caixa; logo, nem todas são brancas. Miller utiliza essa metáfora para falar da apropriação que Lacan faz da lógica proposicional aristotélica. Mas, se o número de bolas dentro dessa caixa for infinito (suponhamos um volume inesgotável de bolas; tantas quantos são os números), não seria possível formular uma afirmação universal, pois esta se baseia na consideração da totalidade. Pode-se, evidentemente, esperar, a cada bola que sai, que seja esta a última. Ainda que, a cada vez que se retire uma bola da caixa, ela seja branca, não se poderá dizer todas são brancas ; pois nada impede que a próxima seja preta. Essa caixa inesgotável de bolas seria um universo infinito e, como tal, nãotodo (não-totalizável): Vocês podem tirar uma, e sair uma branca. O que é possível dizer? Há pelo menos uma que é branca; vocês tiram duas, e com a segunda, há duas brancas. Continuem assim, até o fim de seus dias, sem encontrar senão brancas, mas vocês nunca poderão demonstrar, a partir da experiência, que todas são brancas. 3 Miller aponta a impossibilidade lógica inerente a essa situação, uma vez que o conjunto não se totaliza. Só haveria uma forma de ultrapassar essa impossibilidade: normatizar, determinar de antemão que todas as bolas que saíssem seriam brancas. Bastaria, para isto, pintar de branco cada bola que saísse de outra cor. Desta forma, seria possível instituir uma lei de formação da série. Um exemplo de lei de formação seria o Nome-do-Pai como 3

organizador da estrutura psíquica, justamente. Por isso a inadequação de tomá-lo como um universal nesse contexto. Quando há uma série imprevisível a cada instante, não se pode abordá-la como totalidade, como universal; é uma série sem garantia. E, quando não se pode jamais dizer todas, é preciso considerar uma por uma. Nessa perspectiva, a série da qual conhecemos a lei de formação é, por sua vez, um caso particular dentre outros, não uma regra universal. Nesse caso, o normal seria a série sem lei de formação e o que chamamos normalidade não passaria de uma pequena zona fechada em seu interior. A relação do simbólico ordenado pelo Nome-do-Pai funciona no eixo Simbólico-imaginário e é o que permite a produção de sentidos (o que Lacan denominou point de capiton). Essa série sem lei indica um buraco, um intervalo que não permite um fechamento e é aí que o real sem lei pode ser identificado a esse imprevisível como a persistência do que não cessa de não se escrever. Essa série sem garantia, assolada pelo imprevisível, é a estrutura nãotoda, não totalizável, da qual padece todo ser falante (ou parlêtre, falasser) como produto de um troumatismo 4, marca traumática, aleatória, produzida no corpo pelo encontro com um pedaço da língua. Se tomarmos esta referência como ponto de partida para ler as fórmulas da sexuação do Seminário 20, chegaremos à conclusão de que o falasser está estruturalmente do lado direito, como Outro para si mesmo, instado a haver-se com o incurável desse trauma que o constitui e que não se enquadra em um universal. São as implicações dessa constatação lacaniana que Stavy busca extrair ao propor um autismo generalizado, no sentido em que cada falasser é produto de um encontro, inaudito, para cada um, com um goza-se 5 do corpo: Assim como Miller ousou afirmar, em seu curso deste ano, o ultimíssimo ensino de Lacan se abre para uma espécie de generalização do que no Seminário 20 era, ainda, 4

especificamente abordado pela sexualidade feminina: uma constatação, a de um incurável encontrado por cada um, nocorpo [en-corps]. 6 Um-corpo No Seminário 21, ao se confrontar com a topologia na tentativa de abordar, quanto à especificidade do falasser, o modo como, afinal, se engancham corpo e linguagem, Lacan discute a segunda tópica de Freud, perguntando-se como o corpo está situado a partir de uma relação com o Isso, que ele considera um conceito originalmente confuso. E destaca que Freud o define como sendo o inconsciente quando ele se cala. Ainda em relação à segunda tópica, pergunta-se se o Eu (moi) é o corpo, conclui que uma suposta relação harmônica entre o corpo como identidade e o meio não se aplica à espécie humana, justamente porque esse saber inconsciente que se cala é parasitário ao corpo, o ser falante o habita, mas não sem todo tipo de inconvenientes. 7 A partir do momento em que Lacan formaliza a inexistência do Outro, no Seminário 16, e posteriormente, com o rebaixamento do Nome-do-Pai a uma contingência, ao pensar o ser falante a partir do real, o que se coloca como foco já não é o Outro, mas o corpo próprio, como se estabelece o Eu a partir do corpo, em relação ao qual não se trata de identificação, mas de pertencimento: não se é um corpo, mas se tem, e é preciso extrair as implicações disso. Ao longo de seu ensino, Lacan situou o corpo como imagem corporal, consistência que caracteriza o registro imaginário. Mas o corpo, considerado como imagem e consistência, não dá conta do vivo do corpo, desse corpo que se goza, como diz Lacan na Terceira. É interessante notar que nesse escrito, ao desenhar os registros e suas interações, Lacan situa o corpo no registro imaginário, 5

disjunto da vida, que é situada no registro real, e indica que o que mais assusta o ser falante é seu corpo vivo, uma vez que a vida implica gozo. Disso decorre o sintoma como acontecimento de corpo, a partir do qual se desenvolve o acontecimento traumático, um acidente contingente, que dá origem ao falasser e que passa por sua relação com o próprio corpo. Em seu curso de 1998-99, J.-A. Miller extrai de um escrito de Lacan sobre Joyce a expressão acontecimento de corpo, a partir da qual desenvolve a questão fundamental do que dá origem a esse corpo que fala, pela incidência traumática da língua, e que, justamente por isso, padece de uma inadequação irremediável: Isto quer dizer que não é a sedução, não é a ameaça de castração, não é a perda de amor, não é a observação do coito parental, não é o Édipo que é o princípio do acontecimento fundamental, traçador de afetação, mas a relação com a língua. (...) O significante é causa de gozo, mas se inscreve na noção de acontecimento fundamental de corpo, que é a incidência da língua. 8 Inconsciente transferencial versus inconsciente real O ultimíssimo ensino de Lacan abandona a verdade como fim ao forjar o conceito de sinthoma, que é situado não como uma verdade recalcada e inacessível, mas como satisfação. No Prefácio à edição inglesa dos Escritos, essa oposição aparece associada ao final de uma análise: A miragem da verdade, da qual só se pode esperar a mentira (...), não tem outro limite senão a satisfação que marca o fim da análise. 9 Ao comentar esse escrito, Miller consegue extrair o fundamento para formalizar o que em Lacan aparece nas entrelinhas: vemos delinear-se ao longo de seu ensino duas vertentes do inconsciente: o inconsciente transferencial e o inconsciente real. 6

O inconsciente transferencial equivaleria ao que se consagrou como o inconsciente freudiano, e que Lacan explicitou pela primazia do simbólico no chamado primeiro ensino, com o recurso à linguística, como fundamento do sujeito (Je), representado por um significante para outro significante, suporte do que se passa na relação transferencial, de uma suposição de saber sobre o sujeito, assujeitado ao Outro que o constitui, sustentado pela verdade de sua fantasia. O inconsciente real, cuja especificidade vai se delineando aos poucos no derradeiro ensino de Lacan, traz uma perspectiva totalmente diferente: fora do sujeito-suposto-saber (antes um saber suposto sujeito), fora de sentido, constituído pelo acaso que instaura um troumatismo, nãotodo (fora do universal), sem lei, desarmônico, parasita que marca o corpo, depósito de asserções de gozo (lalíngua). É em relação ao inconsciente real que a psicanálise pode considerar a afirmação de Lacan, que persistiu em seu último ensino, de que há saber no real. Vejamos como. Saber-fazer-aí No Seminário Les non-dupes errent 10 Lacan busca em vários momentos acercar-se dessa questão do saber no real. Se, de um lado, ele aponta o impasse da ciência ao situar o saber no real, exemplificando a descrença enfrentada por Newton com relação ao fundamento da gravitação, pelo fato de ser incapaz de localizar precisamente onde tal saber se constituía 11, ao mesmo tempo demonstra que tanto a psicanálise quanto a ciência operam no campo do simbólico, ao buscar constituir um saber sobre o real. Se acentuei esse caráter, no real, de um certo saber, isto pode parecer desviar-se da questão no sentido em que o saber inconsciente é um saber 7

com o qual temos de nos haver. E é nesse sentido que podemos dizê-lo no real. É a partir disso que Lacan justifica o fundamento do uso dos nós e da topologia: como uma escrita que não é fácil de manejar, mas que permite considerar esse saber e dizer como ele se apresenta, (...) não totalmente no Real, mas no caminho que nos conduz ao Real 12. No Seminário 24, Lacan volta a essa questão do saber no real, situando-o como um saber Absoluto que de modo algum fala, um saber que se cala, e que se caracteriza pelo fato de que há saber em algum lugar no real, graças à existência puramente acidental de uma espécie para a qual não há relação sexual: O que é o saber como tal? É o saber na medida em que ele está no real. Esse real é uma noção que elaborei por tê-lo colocado em um nó borromeano com o imaginário e o simbólico. O real, tal como ele aparece, diz a verdade, mas ele não fala, e é preciso falar para dizer o que quer que seja. 13 Ainda nessa aula, Lacan diz do de que se trata nesse saber no real, saber inconsciente, do inconsciente real, que nada tem a ver com a relação S 1 S 2, ou seja, com o sujeito-suposto-saber. Ele se refere à fala de uma criança, Manène, sua irmãzinha, dois anos mais nova, que se nomeava assim e em terceira pessoa, uma forma que fazia parte do inconsciente e deste modo, como indica o título desse seminário, diz ele, trata-se de um ela que, como meu título deste ano, que s ailait à mourre, se tomava como portadora de saber. 14 Não por acaso, Lacan evoca parte do título desse seminário que inclui o nome de um jogo de adivinhação, e portanto, que opera a partir de algo que não se sabe. A especificidade desse saber é que ele se caracteriza por um não-saber: é um não-sabido que sabe (l insu que sait 8

também em homofonia com insucesso) do um-equívoco (unebévue, um jogo sonoro que Lacan faz com o Unbevusst, o inconsciente freudiano) que se toma como portador de saber. Como entender, então, esse saber que não se sabe, mas ao mesmo tempo opera? Lacan lhe dá um nome: savoir y faire, um saber fazer aí que constitui o inconsciente como o que reduz o sinthoma. 15 É interessante notar que esse inconsciente real, capaz de se reduzir ao sinthoma, opera justamente pela exclusão do sentido. E é essa via que o ultimíssimo ensino de Lacan toma como privilegiada (contrária à amplificação significante, que levaria à análise infinita, à redução ao osso duro do sintoma em sua face de gozo, sem sentido), que vemos no escrito A terceira : (...) é na medida em que algo do simbólico se restringe pelo que chamei de jogo de palavras, a equivocidade, a qual comporta a abolição do sentido, que tudo o que diz respeito ao gozo, e particularmente ao gozo fálico, pode igualmente se restringir 16. E por que é necessário abolir os sentidos para reduzir o sintoma? Justamente porque o trauma do encontro aleatório de um pedaço de língua com o corpo, o troumatismo, não tem sentido, assim como o real exclui toda possibilidade de sentido, e lalíngua, que marcou esse corpo de modo parasita, também está fora do âmbito do sentido, imaginário por excelência, que caracteriza o mental. É por isso que, no Seminário 21, Lacan explicita a importância da materialidade de lalíngua na prática analítica: O sentido só é sexual porque vem no lugar do sexual que falta [novamente aí o furo da inexistência da relação sexual]. O sentido, deste modo, quando não o trabalhamos, é opaco. A confusão dos sentimentos é tudo o que lalíngua é feita para semiotizar [aqui, semiotizar no sentido de produzir semas, produzir sentido]. E é por isso que todas as palavras são feitas para serem dobráveis em todos os sentidos. Lalíngua não tem sentido, e por isso está aberta a todos os 9

sentidos; é isto que permite que se construa, a partir de suas marcas, a elucubração fantasmática. Ainda sobre o saber no real, J.-A. Miller, em seu curso de 2006-2007, ao mencionar um ponto coincidente entre os Seminários 24 ( L Insu que sait... ) e 25 ( Momento de concluir ), por sua vez também se refere ao saber no real, identificando-o como o saber das coisas que não falam e sabem como se comportar: O real não toma a palavra, mas isto não impede que Lacan mantenha que há saber no real, simplesmente é um saber que não fala. Parece-me que o saber no real de que se trata, pois nessa data [1977] ele não renega essa construção de A carta roubada, é o saber do qual ele dirá, no extremo fim do Momento de concluir : é o saber das coisas que sabem como se comportar 17. Exatamente como Lacan articulou em 1977 com o exemplo de Manène, mencionado anteriormente, trata-se do saber fazer aí, o savoir y faire, que marca a satisfação no final de uma análise. Então, o saber de que se trata na expressão lacaniana: há saber no real, equivale ao insu que sait, que se caracteriza por um saber se virar aí, ou o saber haver-se com seu sintoma 18. Voltando à apresentação do tema do próximo congresso da AMP (2014), que foi o mote para a produção deste texto: em suas últimas considerações, Miller se refere às construções de casos clínicos como construções lógicas e clínicas sob transferência, inspiradas no século XX, por uma relação de causa e efeito que seria um preconceito científico apoiado no sujeito-suposto-saber. E lança o desafio para que a clínica psicanalítica se inspire no século XXI, através da desmontagem da defesa contra o real. Ora, se no parágrafo anterior ele indica que o inconsciente transferencial é uma defesa contra o real, o convite parece incidir radicalmente sobre a prática psicanalítica. Desmontar o querer dizer em direção ao inconsciente real, 10

que não é intencional, é atacar diretamente a montagem da fantasia que se constrói sob transferência. Isto nos remete ao derradeiro Lacan, que privilegia lalíngua por sua materialidade, fora do sentido, promovendo a equivocidade como procedimento maior 19... 1 MILLER, J.-A. (junho, 2012). O real no século XXI. Opção Lacaniana, (63): 11-20. 2 LACAN, J. (2003[1973]). Televisão. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.537. 3 MILLER, J.-A. [2004-05]. Peças soltas. Curso de orientação lacaniana (inédito), aula de 02 de fevereiro de 2005. 4 Neologismo produzido por Lacan, que coloca juntos o trauma e o furo que constituem a especificidade de cada ser falante, e que decorre justamente da inexistência da relação sexual. 5 Cf. LACAN, J. (dezembro, 2011[1974]). A terceira. Opção Lacaniana, (62): 21. 6 STAVY, Y.-C. (2012). Autismo generalizado e invenções singulares. In: Autismo(s) e atualidade: uma leitura lacaniana. BH: Scriptum, p.85. 7 LACAN, J. [1973-74]. Les non-dupes errent. (Seminário inédito). Aula de 11 de junho de 1974. 8 MILLER, J.-A. (2004[1999]). Biologia lacaniana e acontecimentos de corpo. Opção lacaniana (41): 53. 9 LACAN, J. (2003[1976]. Prefácio à edição inglesa do seminário 11. In: Outros escritos. Rio de Janeiro: Zahar, p.568. 10 Idem, ibidem. 11 Idem, ibidem, lição de 11 de junho de 1974. Um comentário parecido pode ser localizado em Televisão (Lacan, J. (2003[1973]), op.cit., p.534: Isso se afirma pelo fato de o discurso científico ter sucesso na alunissagem, na qual se atesta, para o pensamento, a irrupção de um real. E sem que a matemática tenha outro aparelho que não o da linguagem. Foi a isso que reagiram os contemporâneos de Newton. Eles perguntaram como é que cada massa sabia da distância das outras. Ao que Newton retrucou: Deus sabe e faz o que é preciso. 12 LACAN, J. [1973-74]. Op.cit., lição de 11 de junho de 1974. 13 LACAN, J. [1976-77]. L insu que sait de l une-bévue s aile la mourre. (Seminário inédito). Sessão de 15 de fevereiro de 1977. 14 Impossível traduzir com exatidão esse à mourre (que também traz uma homofonia com amour ), jogo de ilusão no qual duas pessoas mostram simultaneamente um certo número de dedos esticados enquanto gritam um número que pode exprimir o montante. Ganha aquele que chegar ao valor mais próximo. 15 Idem, ibidem. 16 LACAN, J. (dezembro, 2011[1974]). Op.cit., p.30. 17 MILLER, J.-A. [2006-07]. O ultimíssimo ensino de Lacan. Curso de Orientação lacaniana, aula 14, de 16/05/07. Inédito. 18 LACAN, J. [1976-77]. Op.cit., aula de 16 de novembro de 1976. 19 MILLER, J.-A. (2010). Perspectivas do seminário 23 de Lacan. O sinthoma. RJ: Zahar, p.124. 11