AULA DE MATEMÁTICA COMO DISPOSITIVO DE DISCIPLINAMENTO: UMA ANÁLISE DE DESENHOS INFANTIS Fernanda Wanderer UNISINOS



Documentos relacionados
Professoras: Dra. Fernanda Wanderer (PPG/Edu) Ministrante Dra. Daiane Martins Bocassanta (Colégio de Aplicação/UFRGS) Convidada

PRÁTICAS MATEMÁTICAS NO CURSO DE GESTÃO DE COOPERATIVAS

Temática do artigo: Educação Matemática nos Anos Iniciais do Ensino Fundamental

O CURRÍCULO DO PROGRAMA VALE JUVENTUDE E A GOVERNAMENTALIDADE DA SEXUALIDADE DOS JOVENS

Educação matemática, culturas rurais e Etnomatemática: possibilidades de uma prática pedagógica

JOGOS DE LINGUAGEM MATEMÁTICOS EM UM CURSO EM GESTÃO DE COOPERATIVAS

Gelsa Knijnik et al. (2012), Etnomatemática em movimento, Belo Horizonte, Autêntica (Tendências em Educação Matemática)

PRODUÇÕES CULTURAIS SURDAS NO CONTEXTO DA EDUCAÇÃO BILINGUE

O CURRÍCULO ESCOLAR EM FOCO: UM ESTUDO DE CASO

EDUCADOR, MEDIADOR DE CONHECIMENTOS E VALORES

Foucault e a educação. Tecendo Gênero e Diversidade Sexual nos Currículos da Educação Infantil

MEMÓRIA DISCURSIVA DO FEMININO NA PUBLICIDADE DE LINGERIES

Bilhete 084/14. Bilhete 084/14 Santo André, 25 de novembro de Senhores Pais dos alunos da Educação Infantil.

c- Muitas vezes nos deparamos com situações em que nos sentimos tão pequenos e às vezes pensamos que não vamos dar conta de solucioná-las.

Jonatas Pereira de Lima (1); Maria de Fátima Camarotti (2) INTRODUÇÃO

Poder e sociedade: Foucault ( ) Profª Karina Oliveira Bezerra

EDUCAÇÃO E LEITURA: o ensino-aprendizagem da literatura nas escolas municipais e estaduais de cinco municípios do nordeste

Seduc debate reestruturação curricular do Ensino Médio

Pesquisador em Informações Geográficas e Estatísticas A I GEOMORFOLOGIA LEIA ATENTAMENTE AS INSTRUÇÕES ABAIXO.

Objetivo do Portal da Gestão Escolar

O USO DO SOFTWARE LIVRE NA ESCOLA PÚBLICA MUNICIPAL RELATO DE EXPERIÊNCIA

A ANÁLISE DE ERROS NA FORMAÇÃO CONTINUADA DE PROFESSORES DE MATEMÁTICA. Autor: José Roberto Costa 1 (Coordenador do projeto)

PLANO DE AULA/ROTINA DIÁRIA

Universidade Federal Fluminense Curso de Graduação em História Disciplina Professor Responsável Carga Horária Dia/Horário Proposta:

Cento de Ensino e Pesquisa Aplicada à Educação. Subárea de Matemática. Plano de Ensino de Matemática 7º Ano

Dislexia: dificuldades, características e diagnóstico

1 Introdução. 1 Foucault, M. O sujeito e o poder. In: Dreyfus, e Rabinow, P. Michel Foucault. Uma trajetória

Iniciação Científica no Ensino Fundamental: a experiência de participação em feiras de ciências e os impactos na formação

Práticas de linguagem: textos e contextos da escrita na educação infantil

Água em Foco Introdução

SECRETARIA DE ESTADO DA EDUCAÇÃO SUPERINTENDÊNCIA DA EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE EDUCAÇÃO BÁSICA DISCIPLINA DE SOCIOLOGIA. Abril/2016

O ENSINO DE ARTES VISUAIS NA EDUCAÇÃO INFANTIL MUNICIPAL DE JOÃO PESSOA/PB

A PRÁTICA ARGUMENTATIVA DOS PROFESSORES NAS AULAS DE QUÍMICA

Ação Educativa em Museus de Arte: uma proposta para o MUnA

LOGOTIPO OU LOGOMARCA?

As Novas Tecnologias no Processo Ensino-Aprendizagem da Matemática

A PRÁTICA DO DEVER DE CASA E A EDUCAÇÃO MATEMÁTICA EM UMA ESCOLA MULTISSERIADA

A IMPORTÂNCIA DA LÍNGUA PORTUGUESA PARA A RESOLUÇÃO DE PROBLEMAS MATEMÁTICOS. Patrícia Cugler 1 Nathalia Azevedo 2, Lucas Alencar, Margareth Mara 4

DANÇA E CULTURA VISUAL: DIÁLOGOS POSSÍVEIS NO CONTEXTO ESCOLAR Lana Costa Faria 1. Palavras chave: diálogo, dança, educação e cultura visual.

PROFUNCIONÁRIO CURSO TÉCNICO DE FORMAÇÃO PARA OS FUNCIONÁRIOS DA EDUCAÇÃO.

BuscaLegis.ccj.ufsc.br

Objectivos Pedagógicos

O ENSINO DE GEOGRAFIA: ALFABETIZAÇÃO CARTOGRÁFICA

Recuperação de Geografia. Roteiro 7 ano

REGULAMENTO DE ESTÁGIO OBRIGATÓRIO DO CURSO DE PSICOLOGIA ESTÁGIO PROFISSIONAL EM PSICOLOGIA (CURRÍCULO 3) I INTRODUÇÃO

INCLUSÃO EDUCACIONAL DE ALUNOS COM DEFICIÊNCIA VISUAL: DESAFIOS E PERSPECTIVAS.

JANAÍNA LARRATE MARISTELA SIQUEIRA VERA LÚCIA VAL DE CASAS. INSTITUTO MUNICIPAL HELENA ANTIPOFF SME/RJ

Já nos primeiros anos de vida, instala-se a relação da criança com o conhecimento

MINISTÉRIO DA EDUCAÇÃO E DO DESPORTO UNIVERSIDADE FEDERAL DO PARANÁ SETOR DE EDUCAÇÃO DEPARTAMENTO DE TEORIA E PRÁTICA DE ENSINO

Análise do questionário de avaliação. Portal do Software Público Brasileiro

FORMAÇÃO CONTINUADA ONLINE DE PROFESSORES QUE ATUAM COM ESCOLARES EM TRATAMENTO DE SAÚDE Jacques de Lima Ferreira PUC-PR Agência Financiadora: CNPq

FORMAÇÃO DIDÁTICO - PEDAGÓGICA DO DOCENTE DO ENSINO SUPERIOR

Horário de Aulas Fundamental II

MICHEL FOUCAULT ( ) ( VIGIAR E PUNIR )

O USO DE FONTES HISTÓRICAS NAS SÉRIES INICIAIS DO ENSINO FUNDAMENTAL 1

SEMIPRESENCIAL SÃO PAULO/SP NA Escola da Vila - unidade Butantã

REGULAMENTO DO SERVIÇO DE PSICOLOGIA (ServPsi)

NOME: Matrícula: Turma: Prof. : Importante: i. Nas cinco páginas seguintes contém problemas para serem resolvidos e entregues.

BULLYING Questão de educação emocional e social

Garantir o direito de aprender, para todos e para cada um.


Estágio Curricular em Geografia e a Educação para além da visão

Paternidade: Missão e Dever. Dora Rodrigues

APRESENTANDO O GÊNERO DIÁRIO

Associação Catarinense das Fundações Educacionais ACAFE

Dificuldades no atendimento aos casos de violência e estratégias de prevenção

Thaís Salgado Silva Graduanda em Geografia Bolsista do Programa de Educação Tutorial - PETMEC thais.salgado_geo@yahoo.com.br

MANUAL e-sic GUIA DO SERVIDOR. Governo do Estado do Piauí

AVALIAÇÃO FORMATIVA NO ESPAÇO DE APRENDIZAGEM DIGITAL: UMA EXPERIÊNCIA NO FACEBOOK

O CORAÇÃO DO DRAGÃO: O QUE DIZEM E COMO DIZEM DOCENTES-MESTRES DE JOGOS DE RPG

IFRN - Campus Parnamirim Curso de eletricidade turma de redes de Computadores Figura 35 Relé eletromecânico

ENSINO-APRENDIZAGEM DA CARTOGRAFIA: OS CONTEÚDOS COM BASES MATEMÁTICAS NO ENSINO FUNDAMEANTAL 1

O campo de investigação

Helena Dória Lucas de Oliveira

O PAPEL DA EDUCAÇÃO EM PROCESSOS DE TUTELA DE MENORES DESVALIDOS. Alessandra David Moreira da Costa

ANÁLISE DISCURSIVA DA IMAGEM: UM OLHAR FOUCAULTIANO PARA AS IMAGENS DA EDUCAÇÃO

PRÁTICAS PEDAGÓGICAS NA DISCIPLINA MARISTA

Resenha. Fanzines: autoria, subjetividade e invenção de si (MUNIZ, Cellina Rodrigues (Org.). Fortaleza: Edições UFC, p.)

A MATEMÁTICA NA COPA: EXPLORANDO A MATEMÁTICA NA BANDEIRA DO BRASIL

O SENTIDO DE INDISCIPLINA NO DISCURSO DA COMUNIDADE ESCOLAR

Resumo Aula-tema 08: Nova Sociologia da Educação: uma Visão sobre Michel Foucault

AGRUPAMENTO DE ESCOLAS DE S. PEDRO DO SUL CRITÉRIOS DE AVALIAÇÃO EXPRESSÃO ARTÍSTICA (1.º CICLO)

com o trabalho e, portanto, evidenciadas na escola e na prática educativa imbuída do proceder cotidiano. A análise implicada com a realidade de uma

ANALISANDO A HERMENÊUTICA JURÍDICA

GOVERNAMENTALIDADE NEOLIBERAL E A PRODUÇÃO DE SUJEITOS PARA A DINÂMICA INCLUSIVA

ProEaD - PRÓ-REITORIA DE EDUCAÇÃO À DISTÂNCIA NIEP-EAD - NÚCLEO INTEGRADO DE ESTÁGIO PROFISSIONALIZANTE - EAD

PEQUENAS EMPRESAS E PRÁTICAS SUSTENTÁVEIS TENDÊNCIAS E PRÁTICAS ADOTADAS PELAS EMPRESAS BRASILEIRAS

Sumário APRESENTAÇÃO...7 LER E ESCREVER: A ESPECIFICIDADE DO TEXTO LITERÁRIO...11 A PRODUÇÃO ESCRITA...35 A CRÔNICA...53 O CONTO...65 A POESIA...

PLANEJAMENTO (LIVRO INFANTIL) NOME DO LIVRO: O MENINO QUE APRENDEU A VER

ESCOLA ESTADUAL DR. MARTINHO MARQUES VERA LUCIA DOS SANTOS GIVANILZA ALVES DOS SANTOS MARIA APARECIDA CRIVELI SIRLEI R. C. DO P.

"O problema são as fórmulas": um estudo sobre os sentidos atribuídos à dificuldade em aprender matemática

Campus de Presidente Prudente PROGRAMA DE ENSINO. Área de Concentração EDUCAÇÃO. Aulas teóricas:08 Aulas práticas: 08

Recursos Humanos para Inovação

Disciplina: Português Data da realização: 30/09/2013

CADA PAÍS TEM UMA LÍNGUA DE SINAIS PRÓPRIA E A LIBRAS É A LÍNGUA BRASILEIRA DE SINAIS

O USO DE SOFTWARE DE GEOMETRIA DINÂMICA: DE PESQUISAS ACADÊMICAS PARA SALA DE AULA

1 Sobre os aspectos legais da abrangência da Lei de 29/07/2013

Michel Foucault. Uma trajetória filosófica. Para além do estruturalismo e da hermenêutica, p. 262.

O PAPEL DAS INTERAÇÕES PROFESSOR-ALUNO NO PROCESSO DE ENSINO-APRENDIZAGEM DA MATEMÁTICA

Transcrição:

AULA DE MATEMÁTICA COMO DISPOSITIVO DE DISCIPLINAMENTO: UMA ANÁLISE DE DESENHOS INFANTIS Fernanda Wanderer UNISINOS Introdução Este pôster apresenta resultados parciais de um projeto investigativo cujo objetivo é examinar processos de disciplinamento de corpos e saberes instituídos na escola, mais pontualmente, nas aulas de matemática. Apoiado nas formulações de Michel Foucault sobre disciplina e poder disciplinar, o projeto abrange, do ponto de vista empírico, diferentes tempos-espaços escolares, nos quais serão analisados materiais pedagógicos envolvendo a matemática escolar ali presentes. De modo específico, o pôster examina um conjunto de 30 desenhos elaborados por crianças que freqüentavam, no ano letivo de 2007, o 4º ano do Ensino Fundamental de uma escola pública municipal localizada na região metropolitana de Porto Alegre (RS). Esse conjunto foi reunido mediante a realização de uma atividade pedagógica de sala de aula, na qual a professora solicitou aos estudantes que produzissem um desenho relativo à matemática. Ao tomar como objeto de análise esse material de pesquisa, o estudo acompanha a reflexão apresentada por Bocasanta (2009) sobre a produção de desenhos infantis. A autora destaca que a escola está diretamente implicada na geração de uma conduta dos escolares em relação à produção artística. Ou seja, os alunos não desenham qualquer coisa, mesmo quando solicitados a realizar um desenho livre, uma vez que o ato de desenhar constitui-se em uma prática social composta por regras que vão sendo assimiladas pelas crianças. Seguindo Bocasanta, ao analisar o conjunto de desenhos sobre a matemática, foi levado em conta que tais desenhos carregavam consigo as marcas de um trabalho solicitado pela professora, no período destinado às aulas de matemática. Talvez isso explique o fato de todas as crianças terem feito um desenho sobre a matemática reportando-se ao contexto de sala de aula, mesmo que a atividade solicitada não apresentasse, de modo explícito, tal limitação. Dos aportes teórico-metodológicos do estudo Em consonância com os aportes foucaultianos do projeto, em termos metodológicos, a estratégia utilizada para examinar os desenhos orientou-se pela análise do discurso no sentido atribuído por Foucault. Em Arqueologia do Saber, o filósofo expressa que os discursos, constituídos por um conjunto de enunciados, podem ser compreendidos como práticas que formam sistematicamente os objetos de que falam, afastando-se do entendimento de que seriam um puro e simples entrecruzamento de coisas e palavras: trama obscura das coisas,

cadeia manifesta, visível e colorida das palavras (FOUCAULT, 2002a, p.56). Assim, ao operar sobre os desenhos, busquei analisá-los por aquilo que diziam e pelas regras que os geraram, não me prendendo aos significados dos signos que os compunham. Em termos teóricos, os conceitos foucaultianos de disciplina e poder disciplinar se constituíram nas ferramentas centrais que sustentam a análise empreendida. Para Foucault (2002b), ao longo da época clássica emergem técnicas de poder centradas no corpo individual caracterizando o poder disciplinar, objetivando ampliar sua força útil por meio de instrumentos como a vigilância, a sanção normalizadora e o exame, além de procedimentos como a distribuição espacial dos corpos e o controle sobre suas atividades e gestos, visando a torná-los produtivos e dóceis. Ao analisar o poder disciplinar, Veiga-Neto (1996) destaca que nele estão presentes tanto a disciplina-corpo, quanto a disciplina-saber. Para o autor, a disciplina-corpo relaciona-se ao disciplinamento da conduta, já a disciplina-saber refere-se às próprias unidades, a cada um dos compartimentos nos quais se dividem os saberes ou às maneiras como se fracionam e se articulam os saberes (IBIDEM, p.56-57). Ambas são consideradas como faces de uma mesma moeda, ou seja, eixos que se complementam para produzir os sujeitos disciplinares. O exame do material de pesquisa permite afirmar que os desenhos produzidos pelas crianças evidenciam práticas disciplinares sendo postas em ação na escola, vinculadas tanto à disciplina-corpo, quanto à disciplina-saber. Essa análise será realizada na próxima seção. Aulas de matemática disciplinando saberes e corpos dos escolares Os desenhos reunidos mostram que, para as crianças, matemática refere-se a um conhecimento estritamente escolar, uma vez que todas se reportaram à escola, registrando situações de sala de aula onde se fazem presentes uma professora, alguns alunos, um quadronegro com exercícios ou símbolos matemáticos e demais móveis típicos desse ambiente: ventilador, relógio e lixo. Observando mais atentamente, pode-se dizer que a aula de matemática atua como um dispositivo de disciplinamento do saber e dos corpos dos escolares:

Desenho 1

Desenho 2

Desenho 3 Os desenhos acima constituem a matemática como um campo do conhecimento escolar, marcado pela escrita, pelo formalismo e pelo cumprimento de regras, que passa a disciplinar o pensamento de professores e alunos. O primeiro desenho mostra a tabuada do número um ao número cinco e a fala de um dos alunos que busca pela certeza de sua inquietação: Prof! Quanto é 32 + 32? É 64?. O segundo desenho evidencia a resolução de um problema de matemática tipicamente escolar: Ontem, mamãe e eu fomos ao mercado. Queríamos comprar 24 laranjas. Quando chegamos no caixa, haviam 9 laranjas estragadas, deixamos elas lá e levamos o resto. Quantas levamos?. E, abaixo, está expresso o algoritmo da subtração com a resposta: Levamos 15 laranjas. Já o terceiro desenho apresenta, no quadro, os sinais das quatro operações fundamentais, uma professora disposta no centro da sala e em frente a uma turma de alunos que, sentados em fila, aparentemente escutam suas

explicações, além do ventilador, do lixo e de uma espécie de cartaz onde está escrito: aviso para os alunos: não correr no recreio. A análise dos desenhos mostrou que eles evidenciam uma matemática escrita, constituída pelos conteúdos usualmente trabalhados nas Séries Iniciais do Ensino Fundamental: tabuada, frações, problemas e as quatro operações. Além disso, pode-se dizer que há nos registros das crianças regras que estabelecem modos específicos de se lidar com a matemática, como a importância de decorar a tabuada e de efetuar os problemas e as operações de determinadas maneiras por meio dos algoritmos escritos engendrando critérios de racionalidade específicos para o pensamento dos alunos. Essa regulação e disciplinamento do pensamento operada por técnicas de calcular é discutida por Rose (2001). Para o autor, assim como a invenção da escrita gerou um conjunto de técnicas, como elaborar listas, registrar informações específicas ou gerais, enviar e receber mensagens, tabular dados que permitam acompanhar as mudanças de um dado fenômeno ou situação etc., fazendo com que se engendrem mecanismos capazes de treinar a mão e o olho, tornando os humanos máquinas escreventes (IBIDEM, p.158), as técnicas que desenvolvem a capacidade de calcular possibilitam a produção de novas coisas, mas também atuam como disciplinador do pensamento ao instituírem uma racionalidade específica para sua realização. Seguindo o autor, diria que os algoritmos e os problemas de matemática que possuem uma organização específica, composta por uma situação-problema envolvendo quantidades e uma pergunta que passa a ser respondida por meio de algoritmos escritos podem ser tomados como mecanismos disciplinadores que regulam as formas de realizar operações e o próprio pensamento dos estudantes. Examinando marcas que constituem a matemática acadêmica, Lizcano (2004, p.126) destaca que esta pode ser compreendida como o desenvolvimento de uma série de formalismos característicos da maneira peculiar que tem certa tribo de origem européia de entender o mundo. Tal série condensa um modo muito particular de conceber o tempo e o espaço, de classificar, de instituir o que é possível e o que é impossível, constituindo-se em um conjunto de crenças muito particulares que se impôs com as marcas da exatidão, pureza e universalidade. Seguindo o autor, diria que nos desenhos aqui analisados há vestígios de uma linguagem matemática formal e ordenada 1, que acaba por disciplinar os modos de pensar e de fazer matemática tanto de alunos como de professores. 1 Estudos como o de Knijnik e Silva (2008), situados na perspectiva da Etnomatemática, examinam as linguagens que constituem a matemática acadêmica e a escolar, destacando as marcas da escrita, do formalismo e da abstração presentes nessa área do conhecimento.

Além de marcas específicas sobre a matemática escolar, pode-se dizer que nos desenhos estão presentes também mecanismos de disciplinamento dos corpos dos escolares. Neles fica evidente a organização de um espaço específico na escola, produzido por uma arquitetura própria que posiciona alunos e professoras em lugares fixos e determinados. Observa-se, principalmente no primeiro e terceiro desenhos, que os alunos ao longo das aulas permanecem sentados, cada um em sua classe. A professora também é localizada em um local definido: na frente dos alunos, ao lado do quadro. E, de forma bem visível, estão as regras de conduta a serem seguidas pelas crianças, como está escrito no cartaz presente no terceiro desenho: aviso para os alunos: não correr no recreio. Ao analisar os processos de disciplinamento dos corpos, Foucault (2002b) enfatiza que para o funcionamento da disciplina, há a necessidade da produção de um espaço útil onde se saiba a posição definida de cada indivíduo para melhor exercer o controle sobre suas atitudes e ações, como os desenhos selecionados apresentam. Esse espaço se torna um dispositivo para a transformação do comportamento dos indivíduos, agindo sobre aqueles que abriga e levando até eles os efeitos do poder. Em síntese, os resultados preliminares do estudo, aqui discutidos, mostram, em primeiro lugar, que para as crianças participantes da investigação, matemática é um conhecimento unicamente escolar. Além disso, na fase em que se encontra o projeto de pesquisa, há indicações de como, na especificidade da matemática escolar, a escola engendrase como um aparelho eficiente de disciplinamento, produzindo efeitos de subjetivação nos alunos e alunas ao longo de suas vidas.

Referências bibliográficas: BOCASANTA, Daiane M. A gente não quer só comida : processos educativos, crianças catadoras e sociedade de consumidores. Dissertação (Mestrado em Educação). São Leopoldo: Universidade do Vale do Rio dos Sinos, 2009. FOUCAULT, Michel. Arqueologia do saber. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2002a.. Vigiar e punir: nascimento da prisão. Petrópolis: Vozes, 2002b. KNIJNIK, Gelsa; SILVA, Fabiana. O problema são as fórmulas : um estudo sobre os sentidos atribuídos à dificuldade em aprender matemática. Cadernos de Educação, FaE/PPGE/UFPel. Pelotas: [30]: 63-78, janeiro/junho 2008. LIZCANO, Emmanuel. As matemáticas da tribo européia: um estudo de caso. In: KNIJNIK, Gelsa; WANDERER, Fernanda; OLIVEIRA, Cláudio José de (org.). Etnomatemática, currículo e formação de professores. Santa Cruz do Sul: EDUNISC, 2004. p. 124-138. ROSE, Nikolas. Inventando nossos eus. In: SILVA, Tomaz Tadeu da (org.). Nunca fomos humanos nos rastros do sujeito.belo Horizonte: Autêntica, 2001. p.137-204. VEIGA-NETO, Alfredo. A ordem das disciplinas. Tese (Doutorado em Educação). Porto Alegre: Universidade Federal do Rio Grande do Sul, 1996.