Cidade e trabalho* Publicado em: 08/05/2001



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Transcrição:

Cidade e trabalho* Vera da Silva Telles Professora do Depto. de Sociologia da Universidade de São Paulo, pesquisadora do Centro de Estudos dos Direitos da Cidadania CENEDIC-USP. Integrante do Conselho de Administração do Instituto Pólis. Publicado em: 08/05/2001 Desemprego e precarização do trabalho, vulnerabilidade social e degradação das condições de vida, formas diversas de violência e incivilidades corroendo padrões de sociabilidade e interação social. Fatos conhecidos, evidências de uma crise social que vem transformando as cidades brasileiras no retrato sem retoques das dimensões perversas dos rumos que vem tomando a modernização econômica nos últimos anos. Modernização seletiva, como notam vários analistas, que fragmenta o território nacional entre ilhas de dinamismo e regiões descartadas ou excluídas dos circuitos de uma economia globalizada, que redefine a cartografia da pobreza e amplifica a crise social nas grandes cidades, ao mesmo tempo em que os espaços urbanos são crescentemente atravessados por ilegalismos de todos os tipos, para não falar da violência e seus impactos diruptivos na sociabilidade cotidiana. O cenário é inquietante. Porém, mais inquietante ainda é o estreitamento das perspectivas críticas face a essa situação. Diria que vem ocorrendo algo como um aprisionamento da prática e da reflexão social nos termos como esse quadro se configura, sem aberturas para outros campos de possibilidade. Na convergência entre a perda ou esvaziamento do poder estruturante do Estado e as circunstâncias da reestruturação produtiva nos circuitos de uma economia globalizada, parece que nada mais há a fazer senão a gestão da pobreza através de programas sociais diversos. Na melhor das hipóteses a questão social fica reduzida a um problema de ética e de governabilidade no contexto de cidades em crise, na suposição hoje transformada em lugar comum de que é possível resolver a crise social engendrada por um mercado selvagem através da gestão pragmática de programas sociais compensatórios. O fato é que estamos face a um debate público em grande parte tomado por uma espécie de afirmação ritualística ou protocolar da exigência ética da cidadania, mas que apenas confunde política e bons sentimentos, embaralha as diferenças entre direito e ajuda humanitária, entre cidadania e filantropia, e reativa ou reatualiza o que Topalov (1) define como epistemologia da filantropia que fragmenta a análise social na descrição cientificamente fundada das várias figuras dos excluídos, alvos de políticas focalizadas. O que se perde de vista nisso tudo são as (desde sempre difíceis e problemáticas) relações entre direito e trabalho. Se é verdade que os processos em curso desestabilizam as formas conhecidas de regulação pública do trabalho, isso não quer dizer que as formas pelas quais as relações de trabalho se estruturam sejam indiferentes aos destinos das sociedades em um mundo globalizado. Disso são evidência as várias situações de precariedade econômica, vulnerabilidade social e individualismo negativo que acompanham a desmontagem da mediação pública dos direitos coletivos, bem como as tendências já visíveis de uma refilantropização da pobreza que remete a arranjos particulares o que as regulações coletivas não podem mais comandar. Os desafios que essa situação coloca não são triviais. Se não é mais possível imaginar a

integração de toda a população trabalhadora no modelo de cidadania salarial tal como foi desenvolvida historicamente nos países europeus, o problema político maior é o da possibilidade de uma regulação democrática da economia e sociedade, e o estatuto de uma nova cidadania a ser ainda reinventada. A questão, bem sabemos, não é exclusiva da realidade brasileira. O complicador na situação brasileira é a fragilidade das referências a partir das quais discernir as questões em pauta e imaginar configurações possíveis de uma cidadania a ser ainda reinventada. De um lado, há um problema ao mesmo cognitivo e político, pois as atuais tendências de desregulamentação do mercado e precarização do trabalho só fazem amplificar o desde sempre vasto mercado informal esse mundo sem mediações políticas e sem registros publicamente discerníveis, que escapa até mesmo das medidas estatísticas convencionais para avaliar emprego e trabalho, o que torna os processos em curso pouco lisíveis, e sobretudo torna pouco discerníveis as novas configurações que aí se processam, embaralhando sob a mesma designação a recorrente transgressão das normas trabalhistas (além das outras ilegalidades de que é feita a trama do informal ), a precariedade do trabalho autônomo e os novos circuitos que hoje articulam o formal e o informal ao longo de cadeias produtivas, além dessa zona cinzenta em que operam programas sociais que em nome da cidadania promovem a transgressão consentida da lei ou então tentam transfigurar o trabalho precário em exemplos modelares de políticas de emprego alternativas. Por outro lado e para colocar a questão em outro registro há a erosão das próprias referências a partir das quais colocar em perspectiva a realidade social. Entre uma história passada que não nos oferece, ao contrário dos assim chamados trinta gloriosos anos que vigoraram nos países europeus, muito a ser celebrado e defendido contra a devastação neoliberal dos tempos atuais e o desmanche das expectativas de uma cidadania salarial plena projetada para um futuro imaginado como possível, o risco é o de uma análise circular que passa da denúncia da maldição das origens ao lamento nostálgico da perda de um futuro pretérito, do que poderia ter sido mas não foi. Ou ainda: face à erosão de referências futuras e em nome das urgências do presente, o campo fica aberto para um pragmatismo bem fundado que se apóia na pesquisa acadêmica para propor políticas de emprego ou programas sociais voltados aos excluídos do mercado de trabalho nesse registro, a reflexão (e a prática) fica inteiramente cativa do diagrama liberal nas formas possíveis de gestão da pobreza. Diria que temos hoje uma dificuldade (é um desafio colocado) na construção de parâmetros críticos para ordenar a descrição e problematização da situação social brasileira, para além da (justa) denúncia da tragédia social e da crítica (fundada, por certo) do legado excludente de nossa história. A questão está longe de ser simples. A fragilidade de referências comentada acima diz também respeito à uma indefinição ou imprecisão das próprias noções de direitos e cidadania tal como formuladas no debate público brasileiro. Seria possível dizer que isso tem a ver com as dificuldades herdadas de nossa história e às várias incompletudes que tanto caracterizam a modernidade brasileira, de tal modo que são noções se apóiam em um terreno incerto de referências históricas. Numa sociedade que obstruiu historicamente a possibilidade de generalização da relação salarial, a cidadania no Brasil nunca teve um estatuto definido e a reivindicação de direitos sempre transitou numa espécie de polissemia de sentidos não necessariamente convergentes e se realizou nos termos de uma cidadania de geometria variável (2), desde as reivindicações em torno dos direitos do trabalho (sem um princípio de

generalização para além das fronteiras do mercado organizado ), passando (os demais e os movimentos sociais de uma maneira geral) pela reativação de redes clientelísticas e relações tutelares, a transgressão consentida de normas legais, o puro jogo de força entre grupos em conflito ou simplesmente a aleatoriedade de conquistas ou perdas em função de conjunturas políticas locais variáveis, instáveis e sempre reversíveis. Mas também é verdade que a perspectiva de uma cidadania ampliada e a generalização dos direitos esteve na agenda política nos anos 80. De um lado, era uma perspectiva que articulava uma campo político comum de movimentos e reivindicações diversas, do que é registro o amplo debate, articulações e mobilizações que desaguaram na Constituição de 1988. Por outro lado, é preciso também considerar que, nesses anos de construção democrática, cidadania e direitos se constituíram como referência de valor e perspectiva que organiza um modo de descrever a sociedade brasileira colocando em pauta as obstruções e também as possibilidades de uma modernidade pretendida como projeto. Trata-se de descrições polêmicas, mas que se organiza em um espécie de jogo organizado de referências que conferia sentido e inteligibilidade inclusive às diferenças e divergências (nada pequenas, por vezes ferozes) quanto à interpretação e avaliação (teórica, política e normativa) da história passada e dos rumos possíveis da sociedade brasileira. Aqui, a primeira questão que gostaria de propor ao debate. Diria que a desmontagem ou desativação desse conjunto de referências é um dos efeitos da atual reconfiguração do mercado e do trabalho no mundo atual. A perspectiva de uma cidadania salarial plena sempre esteve presente no debate público brasileiro, seja no registro do tema do desenvolvimento e da modernização como processos capazes de incorporar as maiorias no moderno mercado de trabalho, seja no registro da construção democrática que caracterizou os anos 80. Sabemos que essa perspectiva projetada para um futuro idealizado não se fez sem problemas de todos os tipos seja a descrição da sociedade brasileira pela negativa, pelas suas faltas e distâncias em relação à modernidade européia tomada como referência modelar, seja a reiteração do mito do progresso visto como destinação certa e segura desde que superados os obstáculos herdados dos desacertos de nossas origens. Essa crítica não é de hoje e não é bem essa a questão agora em pauta. O que importa aqui chamar a atenção é que a perspectiva da cidadania salarial operava como referência de valor e parâmetro crítico a partir dos quais se organizava a descrição e problematização da sociedade brasileira. E isso significa dizer que a erosão desse horizonte de futuro também desestabiliza as referências pelas quais a realidade (e drama) social brasileiro é tematizado. A questão do mercado informal é nesse sentido paradigmática. É como se junto com a referência da cidadania salarial como parâmetro de modernidade, fosse também desativado o jogo de oposições formal e informal, Brasil legal e Brasil real, moderno e atrasado que montava o campo do debate (e da polêmica). Sob referências teóricas diferentes e mesmo divergentes, o mercado informal sempre foi figurado como o ponto de fuga da modernidade brasileira, o registro inescapável de suas várias incompletudes, seja como reposição do atraso que mantém a sociedade atada às suas origens, seja como referência que dava a medida de uma legalidade truncada, seja como prova de verdade da comédia do progresso ao expor avesso das coisas, seja enfim como marca diferenciadora do capitalismo periférico. Para colocar em outros termos, há nisso tudo uma relação entre os parâmetros normativos do debate público e o mapa cognitivo que dá plausibilidade às

questões em pauta. E é esse mapa cognitivo que está também em questão, mapa cognitivo que não tem a ver com soma de informações e a qualidade das pesquisas que as fornecem, mas uma certa forma de colocar em perspectiva (um certo modo de desenhar a cartografia das questões, por isso a idéia de um mapa cognitivo) a realidade social, permitindo a crítica, o julgamento e as referências comuns sem as quais as diferenças ou divergências (teóricas, políticas) se reduzem a uma espécie de cacofonia que é exatamente o que parece ter tomado conta do debate(?) público brasileiro nos últimos tempos. Que fique claro: não se está aqui celebrando referências passadas, fazendo delas o recurso cômodo (e seguro) para crítica dos novos tempos. A questão é outra, e diz respeito aos parâmetros pelos quais essa crítica pode ser feita, não apenas como denúncia da barbárie de todos os dias, mas como discernimento de campos de possíveis inscritos na nossa própria atualidade, sem o que é impossível escapar dessa espécie de aprisionamento da reflexão (e da ação política) nos termos do próprio presente, entre a defesa protocolar da cidadania e pragmatismo bem fundado que apenas confunde a política com a gestão eficiente de programas sociais. Aprisionamento que não é inocente, e muito menos desprovido de conseqüências, pois é nisso que, em nome da luta contra a pobreza, é pavimentado um terreno que confere plausibilidade aos arranjos neoliberais hoje propostos (e já praticados) no atual reordenamento da economia e sociedade. Claro, haveria muitos outros aspectos a serem discutidos, e muito se poderia dizer sobre as circunstância políticas que estão presidindo o atual encolhimento de perspectivas alternativas de futuro. Mas não é o caso aqui, nem haveria espaço suficiente nos limites desse artigo, de analisar fundamentos e pressupostos da agenda neoliberal de modernização da economia nos circuitos globalizados do mercado. Na verdade, o que se pretende aqui é tão somente chamar a atenção para o fato de que estamos face à exigência de construir novos parâmetros para descrever as novas realidades sociais que vem se configurando e discernir os campos de força que aí se delineiam. Sem a menor pretensão de encontrar respostas, gostaria de apontar algumas questões que se situam nas fronteiras mesmo desses deslocamentos de referências (cognitivas e normativas) e engendramento de novas realidades que exigem novos parâmetros para serem descritas e problematizadas. Se o assim chamado mercado informal está no centro de nossas atuais inquietações (e hesitações analíticas) é porque é ele que nos dá a cifra da contemporaneidade dos desafios atuais. Diria que essa desestabilização de referências que fazem deslocar ou desfocar o (polêmico) lugar do informal da ordem das coisas (o mapa cognitivo), é algo que também se processa através de uma dinâmica, ainda a ser melhor compreendida, que o projeta no centro da modernidade neoliberal. Mas nesse caso, o próprio jogo de oposições formal/informal, legal/ilegal fica ele também deslocado, se é que não fica esvaziado de seu poder de nomeação para descrever realidades e organizar o trabalho interpretativo. Como mostra Dupas, o funcionamento das cadeias produtivas, que operam por concentração e fragmentação concentração no topo das cadeias globais (fusões, aquisições, joint ventures) e fragmentação nos níveis inferiores (franquias, terceirização, subcontratação, parcerias) - redefine por inteiro as relações entre o formal e o informal pois a tendência é a de clara interrelação entre agentes econômicos formais e informais na medida em que se caminha para a base das cadeias produtivas, o que permite abrigar a lógica das cadeias produtivas espaços

crescentes para a utilização do trabalho informal e de baixo salários (3) e é nesses termos que processa-se a articulação entre as grandes corporações internacionais e o crescimento do assim chamado mercado informal nos países periféricos. Trata-se aqui de fragmentação do mundo do trabalho que se pulveriza ao longo dos circuitos de cadeias produtivas que transbordam as definições formais de categorias e jurisdição sindical, subvertendo por inteiro as relações entre trabalho e representação e estendendo como nunca esse enorme e multifacetado universo das classes inacabadas, por meio da mobilização de diversas formas de trabalho precário, incluindo na sua ponta até mesmo o antigo e hoje crescente trabalho familiar. Por outro lado, diferente da antiga e conhecida transgressão das normas trabalhistas, é uma nova legalidade legalidade fragmentada, pulverizada que vem se constituindo na trama do trabalho precário: seja por conta da legalização da fraude trabalhista que Krein identifica na nova lei que possibilita a formação de cooperativas profissionais (4); seja, como mostra Balcão, a multiplicação de formas de contrato em que a subtração dos direitos se apóia na desconstrução da figura jurídica do trabalho ou do trabalhador no quadro de formas de terceirização que confundem contrato de fornecimento de produtos ou serviços e contratação de trabalhadores, transfigurando relações trabalhistas em relações inter-empresariais regidas pelo direito comercial, de tal forma que na própria avaliação de juristas a referência à CLT não é mais suficiente para definir o que é legal e o que é fraude à lei, pois suas definições canônicas não dão mais conta de definição e diferenciação de empregado e empregador (5); seja ainda porque essas mesmas formas de terceirização e subcontratação terminam por fornecer um enquadramento legal para as tradicionais e ilegais práticas de marchandagem de mão de obra e uso fraudulento do trabalho temporário essa forma clássica de se burlar a lei, agora transfigurados (ou talvez mais correto seria dizer disfarçados) sob as formas modernas de prestação de serviços. Finalmente, altera-se também as relações entre o Estado e o informal em um cenário no qual o Estado deixa de ser referência ou o agente de um projeto de integração nacional que, mito ou realidade, fazia a associação entre interesses nacionais, empresas estatais e serviços públicos. A atual (mas não tão recente) celebração das virtudes empreendedoras do assim chamado mercado informal por parte de agências governamentais e do Banco Mundial é evidência de que, no cenário atual, pobreza e miséria passam a ser reconhecida como dados inelutáveis da realidade social. O fato é que as chamadas políticas de emprego, agora desconectadas de um projeto de desenvolvimento, transformam-se em procedimentos de gestão da pobreza assumidos por agências governamentais e o assim chamado Terceiro Setor comprometido em programas sociais voltados aos excluídos. Isso já é fato bastante conhecido e debatido já literatura sobre o tema. Mas não é ocioso chamar a atenção para o fato de que nesse redesenho do informal é a própria ação do Estado que, em nome de políticas de emprego ou em nome da ação social voltada aos excluídos, termina por promover a precariedade nessa zona cinzenta que articula, como mostra Lima em seu estudo as cooperativas no Nordeste, os lucrativos negócios da China com base em mão de obra barata e sem custos trabalhistas, grupos comunitários, agências governamentais e também, em alguns dos casos estudados, os representantes canônicos do mercado organizado Federação das Indústrias, Senai e Sesi (6). Essa situação coloca algumas questões a serem discutidas, questões pertinentes a todas as

ambivalências que atravessam as políticas da cidade, para retomar a discussão do começo desse artigo. Se é verdade que precarização do trabalho, informalização da economia e desemprego crescente compõem a realidade social das nossas cidades, é preciso que se diga que a referência genérica a esses processos não é suficiente para o deciframento das novas configurações do trabalho e seus impactos nos espaços urbanos. E é nisso que importa identificar e compreender as novas figuras de trabalho que vem se desenhando nas tramas de uma nova normatividade, fragmentada e pulverizada, nas quais se inscrevem formas diversas de precariedade e vulnerabilidade social. E é precisamente isso que coloca as cidades no centro nevrálgico dos dilemas atuais. Sabemos que os problemas pertinentes ao trabalho e emprego dizem respeito a processos e políticas que ultrapassam em larga escala a jurisdição das cidades. Mas ainda será preciso conhecer melhor o lugar das cidades nas atuais reconfigurações do mundo do trabalho. Arriscaria dizer que o que hoje é proclamado e realizado em nome de políticas de combate à pobreza e exclusão social na verdade circunscreve um terreno multifacetado de reconfiguração do mundo do trabalho, reconfiguração que é desenhada por novas formas de intervenção pública que acompanham, na outra ponta da (des)regulação do trabalho, a flexibilização da legislação trabalhista. Entre programas de qualificação de mão de obra, linhas de crédito para o estímulo do emprego e auto-emprego, ou então do trabalho cooperativado, além das formas variadas de Banco do Povo, configura-se um nada desprezível elenco de instrumentos de políticas voltadas ao mercado de trabalho e que, em nome do combate à pobreza, esvazia o próprio sentido político da cidadania, reeduzida que é à capacidade de acesso ao mercado e à gestão eficiente de cada um de sua própria empregabilidade nas brechas possíveis da economia. Seria possivel argumentar que a eficácia desses programas é mais do que duvidosa, e que, apesar do enorme volume de recursos (e fundos publicos) que mobilizam, não deixam de ser residuais face à realidade social estampada nas grandes cidades. No entanto, circunscrevem um campo politico que precisa ainda ser melhor compreendido. E sendo assim, é o caso de de se interrogar pelas novas institucionalidades que vem sendo construídas em torno dos programas de geração de renda ou de requalificação que vem se disseminando em várias cidades. Trata-se aqui de um terreno atravessado por ambivalências de todos os tipos, em que nem sempre são nítidas as proximidades e diferenças entre programas de combate à pobreza e estratégias inclusivas de desenvolvimento local, entre a reconfiguração (ou invenção) de espaços de direitos e formas de trabalho precário travestidas sob o discurso edificante de defesa da cidadania. É esse o fio da navalha em que transcorrem parte considerável dos programas sociais hoje em operação em várias cidades do país. Mas isso também significa dizer que será preciso ainda apreender e colocar em perspectiva as tensões (e indeterminações) que atravessam a cidade em suas novas configurações, discernir os campos políticos que aí se configuram e as possibilidades de novas regulações. Mais do que questões pertinentes ao problema de governabilidade no contexto de cidades em crise, são nesses campos políticos que são tramadas as relações entre modernidade e mercado, e são definidas as obstruções mas também as possibilidades para a invenção política de formas de regulação democrática capazes de construir alternativas à lógica segregadora do movimento dos capitais que capturam a cidade nos circuitos mundializados da economia. E é por esse ângulo que será preciso decifrar as possibilidades de futuro descortinadas no horizonte das experiências e

experimentos democráticos que se desenvolvem em várias regiões do país. Pois, ao revés do princípio gestionário que regem hoje grande parte dos programas sociais, suas promessas dependem grandemente da refundação da política e da própria noção de direitos e cidadania, porém nos termos que o mundo contemporâneo está a exigir. NOTAS 1 - TOPALOV, C. La naissance du chômeur. 1880-1910.Paris, Albin Michel,1994. 2 - LAUTIER, B.. Les travailleurs n ont pas de forme. Informalité des relations de travail et citoyenneté en Amerique Latine. In. LAUTIER, Bruno et MORICE, Alain (eds.). L État et l informel.paris, Harmattan,1991. 3 - DUPAS, G. Economia Global e Exclusão Social Pobreza, Emprego, Estado e o Futuro do Capitalismo. São Paulo, Paz e Terra, 1999. 4 - Como mostra Krein, esta lei possibilita que os trabalhadores se organizem numa cooperativa de prestação de serviços e executem o trabalho dentro de uma empresa, sem caracterização de vinculo empregatício. Na pratica, legaliza a função do gato da construção civil ou do campo. O antigo gato vira gerente da cooperativa. É a legalização da fraude trabalhista: a empresa incentiva determinado grupo de pessoas a organizar uma cooperativa, contrata seu serviço e não tem responsabilidade pelos encargos trabalhistas. Os trabalhadores não são mais funcionários, mas sócios de uma cooperativa. Com isso não tem registro em carteira de trabalho, não tem os direitos trabalhistas inscritos na lei, tais como férias, 13o salário e previdência social. Esses trabalhadores, dentro da proposta de reformulação previdenciária terão imensas dificuldades de se aposentar. KREIN, J.D. Reestruturação produtiva e sindicalismo.in: CARLEIAL, L. e VALLE, R.(orgs.). Reestruturação produtiva e mercado de trabalho no Brasil. São Paulo: Hucitec-ABET, 1997. 5 - BALCÃO, N. Terceirização e desmontagem do contrato de trabalho. Tese de doutorado, USP, 2000 6 - LIMA,J.C. Negócios da China: a nova industrialização no Nordeste. Novos Estudos, no. 49, novembro de 1997. *Artigo publicado originalmente no Caderno Especial "Um Outro Mundo Urbano é Possível", co-edição Instituto Pólis e Le Monde Diplomatique, por ocasião do Fórum Social Mundial - 2001.