OS ESPAÇOS SAGRADO E PROFANO E AS FORMAS PRIMITIVAS DE CLASSIFICAÇÃO Ensaio sobre o diálogo iniciático



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Transcrição:

1 OS ESPAÇOS SAGRADO E PROFANO E AS FORMAS PRIMITIVAS DE CLASSIFICAÇÃO Ensaio sobre o diálogo iniciático Rosangela Ferreira de Carvalho Borges* Resumo: Carvalho Borges compara os dados teóricos de dois textos clássicos Mauss e Durkheim e Eliade quanto a formas de classificação. Estes autores questionam os modelos simplistas de classificação e passam a dar um valor mais significativo às dimensões psicológicas e ás experiências anteriores à reflexão teórica no âmbito da cultura. Alguns exemplos de experiências religiosas são apresentadas como exemplo. Palavras-Chaves: Espaço sagrado; Sacralização do mundo; Formas primitivas da religião. Abstract: Carvalho Borges deals with a relationship between two classics Mauss and Durkheim and Eliade in what the classification forms is concern. These assays suggest that the classification models are not so simplist and from this point of view they give some space to the psychological dimensions of the culture and to the early experiences even before the theoretical analysis of them. Some religious experiences are presented as examples. Key-words: Sacred space; World sacralization; Early forms of religion. INTRODUÇÃO Marcel Mauss, sobrinho e aluno de Emile Durkheim, teve destacada importância para a história das Ciências Sociais, sobretudo na primeira metade do século XX. As idéias deste francês, que participou ativamente, junto com Durkheim, da fundação do que seria mais tarde a Escola Sociológica Francesa, causaram impacto nos estudos na Psicologia, Lingüística, Filosofia e História, exatamente porque Mauss explorou em suas pesquisas o terreno fronteiriço entre a Sociologia, a Psicologia e a Biologia numa época em que o conhecimento científico para ser legitimado como tal, necessitava de uma vinculação rígida, estanque, centralizadora com uma única área de conhecimento. A fronteira, o transbordamento, a mistura, a miscigenação eram elementos expurgados das ciências. Eram tempos de purismos científicos.

2 O texto Algumas formas primitivas de classificação: contribuição para o estudo das representações coletivas, datado de 1903, foi um dos escritos que Marcel Mauss publicou junto com Emile Durkheim, primeiramente em forma de artigo para o Année sociologique. 1 Nota-se, no decorrer da leitura deste texto que apesar da escrita em conjunto com o tio, o brilhantismo intelectual de Mauss já o libertara do mestre Durkheim e o discípulo, naquela época, já alçava outros vôos nos estudos das Ciências Sociais. Assim, a partir da leitura detalhada de Algumas formas primitivas de classificação nos propusemos a elaborar um pequeno ensaio sobre a função classificadora, a partir de Mauss, e alguns itens classificadores da essência das religiões encontrados do primeiro capítulo de O espaço sagrado e a sacralização do mundo, do O sagrado e o profano: a essência das religiões, de Mircea Eliade, um dos grandes estudiosos da história das religiões no século XX. Os itens selecionados deste capítulo, do referido livro, foram escolhidos por considerarmos os mais pertinentes com a nossa proposta de trabalho. São eles: Homogeneidade espacial e hierofania (p. 35-38); Caos e cosmos (p. 43-46) e Consagração de um lugar repetição da cosmogonia (p. 46-49). 2 ALGUMAS FORMAS PRIMITIVAS DE CLASSIFICAÇÃO E OS ESPAÇOS SAGRADO E PROFANO O primeiro parágrafo do texto Algumas Formas Primitivas de Classificação é iniciado com Durkheim e Mauss constatando que as descobertas da psicologia contemporânea evidenciam que as operações mentais são complexas, portanto as representações que fazemos do mundo também partem de uma complexidade da realidade em que vivemos. 3 Assim, podemos partir da compreensão de que a organização da vida social é complexa e não simples e elementar como alguns estudiosos pensavam anteriormente. Porém, a inovação deste estudo de Durkheim e Mauss está exatamente no entendimento de que a classificação complexa da realidade não é iniciada num entendimento individual, de operações mentais lógicas individuais, mas sim de uma lógica da coletividade das formas de organização social (uma experiência social anterior) que classifica as coisas. A sociedade não foi simplesmente um modelo segundo o qual o pensamento classificador teria trabalhado; foram seus próprios quadros que serviram de quadros ao sistema. As primeiras categorias lógicas foram categorias sociais; as primeiras classes de coisas foram classes de homens nas quais tais classes foram integradas. Foi porque os homens estavam agrupados e viam-se em pensamentos em forma de grupos que agruparam idealmente os outros seres, e as duas maneiras de agrupamento começaram a confundir-se a ponto de se tornar indistintas. As fratrias

3 foram os primeiros gêneros; os clãs, as primeiras espécies. Pensava-se que as coisas faziam parte integrante da sociedade e foi seu lugar na sociedade que determinou seu lugar na natureza. 4 No que se refere ao espaço religioso, no livro O sagrado e o profano, de Mircea Eliade, 5 nota-se que, para autor, a construção de um tratado sobre o homem religioso, a fundação do mundo e os espaços sagrado e profano, tema desta obra, na medida em que considera que uma experiência religiosa primária precede toda a reflexão sobre o mundo tem também como ponto partida a idéia de que o lugar das coisas na sociedade é o que determinou o lugar dessas coisas na natureza. 6 Assim, para Mircea Eliade 7 a classificação das coisas na questão religiosa a qual se refere, a separação entre o sagrado e o profano e as coisas que compõem estes espaços e a própria fundação do mundo são frutos de uma experiência religiosa primordial que utilizou para a criação do que é o nosso mundo um modelo exemplar a partir de relações sociais anteriores tecidas pelos Deuses. O que deve tornar-se o nosso mundo, deve ser criado previamente, e toda a criação tem um modelo exemplar: a Criação do Universo pelos Deuses. Quando os colonos escandinavos tomaram posse da Islândia (land-nóma) e a arrotearam, nem consideraram este empreendimento como uma obra original, nem como um trabalho humano e profano. Para eles, o seu labor não era mais do que a repetição de um acto primordial: a transformação do Caos em Cosmos, pelo acto divino da Criação. 8 A oposição entre o caos e o cosmos, características das sociedades tradicionais, revela o que o homem classifica como o nosso mundo, no caso, o cosmos. O outro mundo é classificado como um espaço estrangeiro, caótico, desconhecido. O nosso mundo Cosmos foi consagrado previamente, porque é um território da obras dos Deuses, criado a partir de um modelo exemplar de uma experiência de organização social primordial, fundadora do mundo. Este ato primordial é um ato repetitivo dos homens que tem a função de transformar o caos em cosmos: o ato divino da criação organiza, classifica e transforma o caos em cosmos para fundar o mundo. Por isso, no nosso mundo o sagrado se manifestou numa relação íntima entre cosmisação e consagração de um espaço. Diante desta organização da criação coletiva primordial, para Eliade, é fácil compreender porque é que o momento religioso implica o momento cosmogónico: O sagrado revela a realidade absoluta, e ao mesmo tempo torna possível a orientação, portanto funda o mundo, neste sentido que fixa os limites e por conseqüência estabelece a ordem cósmica. 9

4 Para Durhkeim e Mauss, existem na concepção das origens relações de perfeita identidade entre os animais, os homens, os objetos inanimados. 10 Um bom exemplo destas relações apontadas por ambos nos é apresentado por Eliade, quando ele relata a relação íntima entre cosmisação e consagração existente entre os nômades australianos, na qual a economia se encontra ainda no estágio de colheita e de caça miúda, e conforme as tradições da tribo Arunta, os Achilpa, o Ser divino Numbakula cosmisou o futuro território da tribo, criou-lhe o antepassado e fundou-lhes as instituições. E, assim, nesta cultura, do tronco de uma árvore da goma, Numbakula afeiçoou o poste sagrado e, após tê-lo ungido com sangue, trepou por ele e desapareceu no Céu. O poste representa um eixo cósmico, já que foi em volta dele que o território se tornou habitável e, portanto, se transformou num mundo. Portanto, a quebra do poste é de certa maneira o fim do mundo e a volta do caos. 11 O exemplo de Eliade sobre os Achilpa e sua fundação de mundo legitimam o que Durkheim e Mauss 12 consideram em As formas primitivas de classificação como a existência de afinidades sentimentais anterior a um pensamento puramente lógico entre as coisas e os indivíduos no ato da classificação. Ou seja, a partir das reflexões de Durkheim e Mauss, no texto Algumas formas primitivas de classificação contribuição para o estudo das representações coletivas, no qual constata que há elementos afetivos, fortemente perceptíveis, concebidos num ato primordial coletivo que caminham paralelamente com um pensamento lógico no ato da classificação das coisas, podemos dizer que estes mesmos elementos afetivos também foram os responsáveis pelas classificações das coisas no ato primordial de fundação do nosso mundo (cosmos) e do outro mundo (caos). CONTINUAR REVISITANDO MARCEL MAUSS Parece-nos que falar da atualidade e abrangência da obra de Marcel Mauss torna-se desnecessário, já que tantos estudiosos têm se debruçado nesta tarefa, porém, neste início de século XXI, os atos de compreender e apreender a contribuição de Marcel Mauss para a construção de uma ciência que se quer comprometida com o processo de um saber científico contínuo, mais próximo à essência do homem, que segundo ele, é a humanidade, é imprescindível, seja para a classe dos cientistas ou não. Assim, o que se buscou neste pequeno ensaio, foi, sem maiores pretensões, assinalar a riqueza do estudo da obra de Mauss na iluminação para o entendimento de tantos outros pensadores e suas diversas pesquisas nos dias de hoje.. Na Introdução do livro Sociologia e Antropologia (2003), de Marcel Mauss, Claude Lévi-Strauss pronuncia as seguintes palavras, sobre a importância da obra de Mauss: Ninguém melhor que Mauss, que se comprazia em ler os limites da expansão céltica na forma de pães expostos nas padarias, podia ser sensível a essa

5 solidariedade do passado e do presente, inscrita nos mais humildes e nos mais concretos de nossos costumes. Mas, ao sublinhar a importância da morte mágica ou das técnicas do corpo, ele pensava também estabelecer um outros tipo de solidariedade, que fornece o tema principal a uma terceira comunicação publicada neste volume: Relações reais e práticas entre a psicologia e a sociologia. Em todos esses casos, estamos em presença de um gênero de fatos que deveriam ser estudados com urgência: aqueles em que a natureza social conflui muito diretamente com a natureza biológica do homem. 12 Apesar dos evidentes limites deste ensaio que o próprio estilo já diz sobre seus limites: um ensaio, o que é mais importante para nós é reconhecer como um grande ganho para as Ciências Sociais continuar revisitando cada vez mais a obra de Marcel Mauss. * Mestre em Ciências da Religião (PUC-SP) e doutoranda em Ciências Sociais (PUC-SP) 1 MAUSS, M. - DURKHEIM, E., Algumas formas primitivas de classificação, contribuições para o estudo das representações coletivas. In MAUSS, M., Ensaios de Sociologia. São Paulo, Perspectiva 2001, pp. 399-455. As referências deste artigo segue esta publicação. Ao que parece, também publicado em DURKHEIM, E. MAUSS, M., Algumas formas primitivas de classificação: contribuição para o estudo das representações coletivas. In DURKHEIM E., Sociologia. São Paulo, Ática, 1984, pp. 183-203. 2 A bibliografia utilizada neste ensaio é a seguinte: EVANS-PRITCHARD, E. E. História do Pensamento Antropológico. Lisboa, Edições 70; ELIADE, M., O sagrado e o profano: A essência das religiões. Lisboa, Livros do Brasil, [s.d.]. MAUSS, M., Ensaios de Sociologia. São Paulo, Perspectiva, 2001. 3 Cf. M. MAUSS, - DURKHEIM, E., Algumas formas primitivas de classificação, contribuições para o estudo das representações coletivas, op. cit., p. 339. 4 Ibidem, p. 451. 5 Cf. M. ELIADE, O sagrado e o profano, op. cit., p. 36. 6 Cf. M. MAUSS, - DURKHEIM, E., Algumas formas primitivas de classificação, contribuições para o estudo das representações coletivas, op. cit., p. 451. 7 Cf. M. ELIADE, O sagrado e o profano, op. cit., p. 35. 8 Ibidem, p. 45. 9 Ibidem, p. 44. 10 Cf. M. MAUSS, - DURKHEIM, E., Algumas formas primitivas de classificação, contribuições para o estudo das representações coletivas, op. cit., p. 402. 11 Cf. M. ELIADE, O sagrado e o profano, op. cit., pp. 46-47. 12 Cf. C. LÉVI-STRAUSS, Introdução. In MAUSS, M., Sociologia e antropologia. São Paulo, Cosac & Naify, 2003, p. 12.