A ALDEIA NA CASAI: considerações sobre o atendimento de saúde na CASAI Tehtehar-Guajajara em Amarante MA.



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Transcrição:

1 UFMA UNIVERSIDADE FEDERAL DO MARANHÃO PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM POLÍTICAS PÚBLICAS III JORNADA INTERNACIONAL DE POLÍCAS PÚBLICAS QUESTÃO SOCIAL E DESENVOLVIMENTO NO SÉCULO XXI A ALDEIA NA CASAI: considerações sobre o atendimento de saúde na CASAI Tehtehar-Guajajara em Amarante MA. Bruno Leonardo Barros Ferreira * Elizabeth Maria Beserra Coelho ** RESUMO Este trabalho apresenta os resultados da pesquisa sobre o atendimento à saúde do índio na Casa de Saúde Indígena (CASAI) Tentehar-Guajajara em Amarante - MA, levando em consideração a estrutura e o funcionamento deste local. Para isso, utilizo como referencia as novas políticas indigenistas de saúde, e também, algumas categorias analíticas, como nação, (KYMLICKA, 1996), diálogo intolerante (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998) e violência simbólica (BOURDIEU, 1998). Palavras-chave: Índios, Saúde e Políticas Indigenistas. ABSTRACT This paper presents the results of the research about the indigenous health assistance at Casa de Saúde Indígena (CASAI) Tentehar-Guajajara in Amarante. It discusses the organization of this place. Therefore, I use as a reference the new indigenist health policies and categories such as nation (KYMLICKA, 1996), intolerant dialogue (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998) and symbolic violence (BOURDIEU, 1998). Keywords: Indians, Health and Indigenist Policies 1 INTRODUÇÃO Com a promulgação da Constituição Federal Brasileira em 1988, o Estado reconheceu oficialmente aos povos indígenas, o direito de viverem suas próprias organizações sociais, reconhecendo a diversidade existente no Brasil. Conforme o artigo 231 (BRASIL, 1988): São reconhecidos aos índios sua organização social, costumes, línguas, crenças e tradições, e os direitos originários sobre as terras que tradicionalmente ocupam, competindo à União demarcá-las, proteger e fazer respeitar todos os seus bens. * Graduando em Ciências Sociais-Universidade Federal do Maranhão-UFMA. ** Doutor em Sociologia-Departamento de Sociologia e Antropologia da Universidade Federal do Maranhão-UFMA

2 No entanto, percebemos que o discurso de respeito às diversidades se dá de forma ambígua, pois esta mesma Constituição, quando trata da questão da saúde, no artigo 196, afirma que A saúde é direito de todos e dever do Estado (BRASIL, 1988), expressando uma universalização do atendimento de saúde no Brasil. O atendimento à saúde dos povos indígenas foi, dessa forma, inserido no Sistema Único de Saúde, ou seja, suas especificidades foram desconsideradas em nome de um modelo de atenção nacional. Levando-se em consideração a idéia de nação trabalhada por Kymlicka (1997), que a considera como una comunidad histórica, más o menos completa institucionalmente, que ocupa un territorio o una tierra natal determinada y que comparte una lengua y una cultura diferenciadas (p. 26), não podemos trabalhar com a noção de que os povos indígenas que aqui vivem, fazem parte da nação brasileira, ou que formam uma única nação indígena. Caberia sim, considerarmos a idéia de minorias nacionais 1, pois o Estado brasileiro se construiu numa relação de subalternização das nações indígenas que aqui se encontravam. Para contornar essa situação da atenção à saúde dos índios, o Estado procura adaptar o sistema universal existente, às especificidades dos povos indígenas, através de inúmeras medidas que podem ser encontradas de forma mais sistematizada na Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas PNASPI (MS, 2002). Esta pretende tornar especifico, diferenciado e intercultural o modelo de saúde direcionado aos índios. Sendo assim, a PNASPI (MS, 2002), apresenta as diretrizes e responsabilidades da estrutura criada, no âmbito da Fundação Nacional de Saúde FUNASA, com os Distritos Sanitários Especiais Indígenas DSEI, os Pólos-Bases e as Casas de Saúde Indígenas CASAI e etc., para adaptar o atendimento de saúde às realidades indígenas. Através da análise PNASPI, procuro perceber como os Tentehar-Guajajara atendidos pela CASAI (Amarante - Ma) estão vivenciando essa nova estrutura, ressaltando a participação dos Agentes Indígenas de Saúde AIS - nesse sistema diferenciado. O trabalho de campo foi dividido em duas etapas, uma na CASAI Guajajara localizada no interior do Maranhão, na cidade de Amarante e, a outra, em seis aldeias (Juçaral, Chupe, Lagoa Quieta, Tarumã, Bacabal e Mucura) Tentehar-Guajajara que têm esta casa como referência. Os Tentehar-Guajajara são falantes da língua Tentehar, classificada no tronco lingüístico Tupi e são remanescentes, segundo Wagley e Galvão (1955), dos povos Tupi- Guarani que se localizavam espalhados pelo território brasileiro. Atualmente, os Tentehar- Guajajara que habitam no estado do Maranhão, estão presentes em onze das dezesseis terras indígenas demarcadas no estado. 1 Segundo Kymlicka (1996, p.26) as minorias nacionais são decorrentes da incorporação de culturas que antes desfrutavam o autogoverno e estavam territorialmente concentradas a um estado maior.

3 O contato dos Tentehar-Guajajara com os brasileiros é bastante freqüente e é datado desde a época que os franceses chegaram ao Maranhão, servindo aqueles de mãode-obra barata, como escravos ou servos (há mais de 400 anos). Atualmente, muitos falam o português, mas continuam a falar a sua própria língua, evidenciando a força que as culturas indígenas têm em resistir a intervenção do Estado. Segundo Wegley e Galvão (1955: 30), os Tentehar-Guajajara: Acreditam em sobrenaturais de sua própria conceituação do universo, e nos pajés que os controlam. Costumes e idéias importados foram modificados e adaptados aos seus padrões tradicionais.... Ao adquirirem novos objetos e novas necessidades, modificaram algumas de suas instituições, valores e atitudes, que os diferem agora dos Tenetehara de algumas gerações atrás. A relação com a sociedade brasileira tem provocado muitas alterações no cotidiano Tentehar, sem que essas transformações ponham em questão seu sentimento de constituir uma nação diferenciada. Pretendo, no desdobramento deste artigo, abordar sistematicamente as mudanças ocorridas nas políticas indigenistas de saúde, até a elaboração da PNASPI (2002), quando foram criadas as CASAI, para enfim abordar a situação da CASAI Tentehar-Guajajara, localizada em Amarante MA. 2 UM BREVE COMENTÁRIO SOBRE A SAÚDE INDIGENISTA Como conseqüência da Constituição de 1988, houve a transferência de responsabilidade do atendimento à saúde dos povos indígenas da Fundação Nacional do Índio (FUNAI) 2, para Fundação Nacional de Saúde (FUNASA), concentrando esses serviços em um Sistema Único de Saúde (SUS). Em 1999, a lei 9.836 ou lei Arouca, instituiu o Subsistema de Atenção à Saúde Indígena, componente do SUS, recebendo recursos diretamente da União, tendo como base os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI). Este subsistema se propõe a levar obrigatoriamente em consideração: A realidade local e as especificidades da cultura dos povos indígenas e o modelo a ser adotado para a atenção à saúde indígena, que se deve pautar por uma abordagem diferenciada e global, contemplando os aspectos de assistência à saúde, saneamento básico, nutrição, habitação, meio ambiente, demarcação de terras, educação sanitária e integração institucional, apesar de ter o dever de ser como o SUS, descentralizado, hierarquizado e regionalizado. 2 Órgão criado em substituição ao Serviço de Proteção ao Índio (lei nº. 5.371 de 1967), que detinha o controle sobre a organização e implementação de ações destinadas aos povos indígenas, abrangendo questões de educação e saúde.

4 Em 2002, a PNASPI (MS,2002) foi criada, através de uma adaptação do modelo de atenção à saúde já existente, para a realidade dos povos indígenas, já que os mesmo princípios de descentralização, universalidade, equidade e participação comunitária, presentes na lei Nº. 8080 de 19 de setembro de 1990, estão presentes nesta Política. Os índios são encaixados no que o Estado considera a única ordem possível (CASTRO- GÓMES, 2005), onde a aquisição da cidadania é, então um funil pelo qual só passaram aquelas pessoas cujo perfil se ajuste ao tipo sujeito requerido pelo projeto da modernidade (173). Os Distritos Sanitários Especiais Indígenas (DSEI) passam a ter um papel de modelo de organização de serviços, onde as atividades técnicas 3 visam medidas racionalizadas e qualificadas de atenção à saúde (PNASPI [MS], 2002: 157), para dessa forma promover uma reordenação da rede de saúde e das práticas sanitárias e desenvolver atividades administrativo-gerenciais necessárias à prestação da assistência aos povos indígenas. Dessa forma, para organizar a assistência médica aos índios, a Política Nacional de Atenção à Saúde dos Povos Indígenas (MS, 2002), dispõe que o atendimento médico de baixa complexidade fica a cargo dos Pólos-Base que se localizam nas aldeias ou nos municípios de referência, tendo uma relação direta com os Agentes Indígenas de Saúde (AIS), ficando os atendimentos de média e alta complexidade sob a responsabilidade da rede do Sistema Único de Saúde (SUS). Os índios que se encontrarem neste último caso, devem contar com serviços de apoio prestados pela Casa de Saúde Indígena (CASAI) 4. A PNASPI (2002: 17) recomenda que as CASAI: Deverão estar em condições de receber, alojar e alimentar pacientes encaminhados e acompanhantes, prestar assistência de enfermagem 24 horas por dia, marcar consultas, exames complementares ou internação hospitalar, providenciar o acompanhamento dos pacientes nessas ocasiões e o seu retorno às comunidades de origem, acompanhados das informações sobre o caso. Além disso, as Casas deverão ser adequadas para promover atividades de educação em saúde, produção artesanal, lazer e demais atividades para os acompanhantes e mesmo para os pacientes em condições para o exercício dessas atividades. A Casa de Saúde Indígena (CASAI) que serve de referencia para os Tentehar- Guajajara, está localizada no município de Amarante MA e atende as aldeias Tentehar situadas na Terra Indígena Araribóia. 3 Respondendo então pela execução deste modelo 4 Com a mudança do atendimento médico da FUNAI para FUNASA, a Casa de Apoio ao Índio que era de administração da primeira, passou a ser responsabilidade da segunda, com o nome de Casa de Saúde Indígena

5 3 A CASAI TENTEHAR-GUAJAJARA EM AMARANTE MA A infra-estrutura física da CASAI é formada por uma casa com quatro ambientes. Um funciona como local de atendimento aos pacientes (consultório), com a presença do único banheiro da Casa, que se encontra interditado. Outro cômodo funciona como farmácia, e os outros dois, a varanda e uma sala, são utilizados pelos índios para armar suas redes, quando pernoitam. O local não possui água encanada, nem água potável, além de ser distante dos hospitais de referencia do município, localizando-se na área próxima a entrada da cidade de Amarante. Através do acompanhamento dos serviços prestados pela CASAI Tentehar- Guajajara, pudemos perceber que os índios que por lá transitavam ou pernoitavam 5, reclamavam, constantemente, da infra-estrutura da casa. Em um dos depoimentos, um índio afirmou: ao invés das crianças virem ficar boa aqui (CASAI), vem é pra piorar, num lugar que nem água tratada tem. Afirmam a necessidade do respeito aos pacientes e acompanhantes, através de uma CASAI em condições de recebê-los, aloja-los e alimentalos. Na CASAI de Amarante trabalham o chefe 6, que é o mesmo do Pólo-base, uma enfermeira, um dentista, três auxiliares de enfermagem, seis agentes indígenas de saúde AIS (equipe multidisciplinar). A ausência de um médico na equipe, segundo o chefe da CASAI, justifica-se pelo baixo salário oferecido e, além disso, o recorrente atraso no pagamento. Outro motivo alegado é a insegurança no trabalho, pois a prefeitura não efetiva contrato com os funcionários que prestam atendimento à saúde dos Tentehar-Guajajara em Amarante. A Casa mantêm suas portas abertas 24 h, em regime de revezamento entre os vigilantes que são contratados de uma empresa terceirizada que tem contrato com a FUNASA. Estes são responsáveis por salvaguardar a estrutura física da CASAI, e, também, por não permitir a entrada de bebidas alcoólicas, o que gera muita confusão no local, já que é recorrente, segundo os seguranças, a presença de índios alcoolizados. A CASAI funciona conforme um ambulatório, pois neste local são realizadas consultas pela enfermeira, que atende um número que se aproxima a trinta índios por dia. Essa profissional realiza o atendimento de pacientes que poderiam ser feito nas aldeias, mas a ausência de profissionais na área dificulta esse procedimento. Nas seis aldeias pesquisadas, somente em duas encontramos a presença do auxiliar de enfermagem e em quatro detectamos o AIS de forma permanente. Há um AIS que é locado em uma aldeia, 5 AIS, conselheiros, pacientes e acompanhantes. 6 O Chefe do Pólo-base é responsável pelas duas CASAI que existem em Amarante: a Tentehar-Guajajara e a Gavião.

6 mas durante a semana realiza visitas a CASAI e somente nos finais de semana visita seu local de trabalho. Os AIS, nesta Casa, têm a função de organizar a entrada dos pacientes no consultório e também agendam os exames com o médico do SUS, marcam consultas e acompanham pacientes ao hospital. As auxiliares de enfermagem também exercem essas funções, mas com menor freqüência. Atuam mais ministrando a medicação recomendada pelas enfermeiras e fazendo o controle das pessoas presentes na CASAI. O dentista da Casa é recém contratado e não dispõe do material necessário para exercer sua função. O Chefe do Pólo-Base, por acumular a administração de duas CASAI Tentehar- Guajajara e Gavião, ambas em Amarante, acaba tendo seu trabalho mais relacionado a problemas administrativos, ou seja, serve de elo entre Amarante e o DSEI em São Luís. Todo o pessoal alocado na CASAI trabalha no horário de oito da manhã às seis da tarde, com intervalo para almoço (12:00h 14:00h). Nos finais de semana, feriados e fora do horário de trabalho, permanecem em regime de plantão, em suas próprias casas. As visitas da Equipe Multidisciplinar de Saúde da CASAI às aldeias da Terra Indígena Araribóia, fica impedida, segundo seus membros, por não haver tempo disponível, já que realizam consultas diariamente na CASAI. Somente em época de vacinação quase todos os funcionários da CASAI se deslocam para as aldeias. Considerando essas características do atendimento à saúde indígena, pudemos perceber que existe um desvirtuamento das funções da CASAI. Esta deveria servir somente para receber, alojar e alimentar pacientes encaminhados à rede do Sistema Único de Saúde e acaba. Incorpora o trabalho, que segundo a PNASPI (MS, 2002), deveria ocorrer nas Aldeias por intermédio dos Agentes Indígenas de Saúde (AIS), nos postos de saúde, e pelas visitas periodicamente planejadas da equipe multidisciplinar. Dessa forma, a CASAI acaba assumindo funções que não de sua responsabilidade. É interessante destacar, também, a presença do Agente Indígena de Saúde -AIS - na CASAI, já que conforme a portaria Nº 70/2004: A estrutura do Distrito Sanitário Especial Indígena fica composta pelos Postos de Saúde situados dentro das aldeias indígenas, que contam com o trabalho do agente indígena de saúde (AIS) e do agente indígena de saneamento (Aisan); pelos Pólos - Base com equipes multidisciplinares de saúde indígena e pela Casa do Índio (CASAI) que apóia as atividades de referência para o atendimento de média e alta complexidade; Os AIS são considerados uma das referencias assistenciais de saúde dos índios na aldeia, como forma de exercer um atendimento primário. A presença de agentes trabalhando na cidade tem sido defendida pelo corpo de funcionários da CASAI como

7 essencial à sua manutenção. Argumentam que devido ao crescimento do número de índios morando na cidade de Amarante e por estes utilizarem os serviços da CASAI, faz-se necessária a presença dos desses agentes. No entanto, existem AIS que moram na cidade e não exercem suas funções. O cargo de AIS é um dos meios para o sustento de determinadas famílias que moram na cidade, sendo de extrema importância sua permanência nestes cargos. Essas famílias realizam esta migração em função de acreditarem que na cidade terão melhores oportunidades no âmbito da educação e no atendimento à saúde também. O trabalho que o auxiliar de enfermagem ou o AIS poderiam fazer em casos mais simples nas aldeias, acaba sendo impedido por esse movimento para a cidade. Dessa forma, qualquer dor de barriga é motivo para ir a CASAI 7. Atualmente, um dos AIS que trabalha na CASAI, tomou para si as responsabilidades de gerenciamento da casa que, segundo a Portaria Nº 852 de 30 de setembro de 1999, seriam do chefe. Isso ocorreu à revelia do DSEI, que acabou por acatar a situaçao. Atualmente, o chefe oficial da CASAI, pouco entende de sua função. Sempre que solicitado a prestar informações, recomenda que seja procurado o AIS/ chefe, por considerá-lo mais experiente. Reafirmou que a presença desse AIS era essencial ao funcionamento daquela casa. O fato de um índio exercer a função de chefe da CASAI gera problemas internos como, por exemplo, a cobrança por parte de sua família extensa na prioridade de atendimento. O sistema de saúde direcionado aos índios, com referencia no SUS, ignora esse aspecto de suas culturas, gerando o que Roberto Cardoso de Oliveira chama de diálogo intolerante, pois índios e brasileiros pertencem a campos semânticos diferentes, culturas diferentes. Pode-se dizer que a etnografia, não só no Brasil, mas no mundo, registra de forma bastante eloqüente dificuldades interessantes que parecem ser inerentes ao tipo de diálogo comumente observável no interior de sistemas interétnicos. Nesse sentido, não há nenhuma novidade em reconhecermos que existem dificuldades nas relações sociais que neles têm lugar; e que engendram representações preconceituosas e profundamente discriminadoras do outro particularmente quando este outro mais se distancia dos parâmetros culturais do pólo dominante da sociedade global (CARDOSO DE OLIVEIRA, 1998: 196). Um sistema de saúde que ignora a compreensão da organização social e da cosmologia Tentehar-Guajajara, expressa o que Pierre Bourdieu (1998: 12) chama de violência simbólica, ou seja, o poder de impor e mesmo inculcar instrumentos de 7 Relato de um paciente que estava acompanhando seu filho.

8 conhecimento e de expressão (taxinomias) arbitrários embora ignorados como tais da realidade social. Dessa forma, torna-se fundamental essa compreensão, para melhor perceber suas concepções sobre saúde e doença, inclusive para efetivação de medidas específicas e diferenciadas, que respeitem aspectos sócio-culturais de cada povo. 4 CONCLUSÃO O movimento de adaptar o modelo de atenção à saúde dos povos indígenas à única ordem possível (CASTRO-GÓMES, 2005), ou seja, ao modelo dos brasileiros, desconsidera as especificidades das diversas nações (Kymlicka, 1997) indígenas que aqui se encontram. Pudemos perceber que as determinações oficiais estão inseridas num processo constante de modificação e adaptação às realidades indígenas, mas ainda não conseguem se desprender da referencia ao modelo do SUS. Essa dependência se dá numa tentativa de diálogo que considero intolerante, entre essas duas lógicas, onde este o modelo dos brasileiros tenta suprimir o do índio, através da ausência de determinações que levem em consideração a organização social e a cosmologia das nações indígenas. Considerando o que os documentos oficiais dizem a respeito do atendimento à saúde indígena, observo uma distância entre o discurso legal e o que se efetiva, como no caso da infra-estrutura da CASAI, que não oferece condições adequadas para receber, alojar e alimentar os pacientes e seus acompanhantes, conforme a PNASPI (MS, 2002). A presença dos Agentes indígenas na CASAI Tentehar-Guajajara na cidade de Amarante, faz com que o papel destes AIS seja repensado, já que na PNASPI (2002), fica claro que o trabalho deste indígena deve ser realizado na aldeia. Verificando o funcionamento da CASAI, identificamos que o atendimento de primeira referencia dos índios Tentehar-Guajajara da Terra Indígena Araribóia, que deveria ocorrer na Aldeia, acaba se efetivando na CASAI, desvirtuando suas funções e criando novas responsabilidades. REFERÊNCIAS BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico. Rio de Janeiro: Bertrand Brasil, 1998. BRASIL. Constituição da República Federativa do Brasil: promulgada em 5 de outubro de 1988, São Paulo: Saraiva, 1999.

9. Lei nº 9.836 de 23/11/1999. Institui o Subsistema de Atenção A Saúde Indígena.Legislação Indigenista Brasileira e normas correlatas. Edgard Dias Magalhães (org.). Brasília: FUNAI, DEDOC, 2002. CARDOSO DE OLIVEIRA, Roberto. Sobre o diálogo intolerante. In: O trabalho do antropólogo. Brasília : Paralelo 15, São Paulo. Editora UNESP, 1998. CASTRO-GOMÉZ, Santiago. Ciências sociais, violência epistêmica e o problema da invenção do outro. In: A colonialidade do saber: eurocentrismo e ciências sociais: perspectivas latino-americanas. Organizador: Edgardo Lander. CLACSO, Consejo Latinoamericano de Ciencias Sociales, Ciudad Autónoma de Buenos Aires, Argentina. Setembro. 2005. KYMLICKA, Will. Ciudadanía multicultural. Paidós: Buenos Aires, 1996. MS (Ministério da Saúde). Política nacional de atenção à saúde dos povos indígenas. Brasília: Fundação Nacional de Saúde, Ministério da Saúde, 2002.. Portaria nº 70, de 20/01/2004. Aprova as Diretrizes da Gestão da Política Nacional de Atenção à Saúde Indígena. Diário Oficial da União, de 22/01/04. Seção 1.. Portaria 852, de 30 de setembro de 1999. Dispõe sobre a criação dos DSEI. Brasília: Fundação Nacional de Saúde, Ministério da Saúde, 1999. WAGLEY, Charles; GALVÃO, Eduardo. Os indios Tenetehara: uma cultura em transição. Rio de Janeiro: SEMEC, 1955.