1 A GESTÃO DO TEMPO NA ATIVIDADE REAL DE TRABALHO ARTICULAÇÕES DE LÓGICAS E IMPOSIÇÕES DE RITMOS Daniel de Souza Costa Daisy Moreira Cunha RESUMO: O trabalho aqui apresentado teve como objetivo discutir o tempo na atividade real de trabalho, visto aqui sob a ótica da Ergoformação. Nessa perspectiva, o trabalhador é percebido como gestor de suas situações de trabalho e construtor de suas competências. Essa percepção dos sujeitos como gestores de seu tempo, permite construir e re-significar as noções de tempo: o tempo da rotina, do trabalho e da expropriação estão relacionados e flexionados sobre a composição da vida. A gestão desses tempos está relacionada diretamente com a oposição às dominações impostas pela racionalidade do tempo produtivo, o que permite influenciar no aumento ou redução do ritmo do trabalho. PALAVRAS-CHAVE: Tempo Trabalho Ergoformação A nossa noção de tempo está vinculada às construções e processualidades históricas que estabelecem os ritmos de nossas vidas sociais, centrada na lógica mercantilista moderna caracterizada e associada por instrumentos (calendários, agendas, horários, relógios), responsáveis pela organização dos ritmos que predominam e determinam a contemporaneidade e a forma de ser e reproduzir o sistema que nos ordena. Significar o que é tempo. Descrever como o compreendemos, como fazemos uso dele, como nos apossamos desse conceito em nosso cotidiano aprimorando nossa experiência individual e coletiva, nos remete a re-significá-lo especialmente na construção de nossa história. Seja na vivência com a família, no diálogo com os amigos ou no atributo do trabalho, a experiência de viver o tempo provoca e permite Mestrando do Programa de Pós-Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha - Belo Horizonte MG - Brasil e-mail: souzacosta@terra.com.br Doutora em Filosofia, pela Universidade de Provence França. Orientadora do Programa de Pós- Graduação em Educação: Conhecimento e Inclusão Social Av. Antônio Carlos, 6627 - Pampulha - Belo Horizonte MG - Brasil e-mail: daisycunha@uol.com.br
2 reflexões, abordagens e apropriações diversificadas, mas sempre sob a perspectiva da construção e das interações estabelecidas entre os homens. Experenciar o tempo na atividade de trabalho. O que é trabalhar? Como compreender o trabalho sob a perspectiva daquele que trabalha, que realiza a atividade, sobrepondo a visão do trabalho associada a uma perspectiva externa centrada em juízos pré-estabelecidos? Qual a relação entre a atividade de trabalho, construída, vivida, experimentada, com o tempo e espaço, que compõem a realidade dos trabalhadores? No contexto e no desenvolvimento de nossos estudos, buscamos nos centrar nas propostas da Ergoformação, que tenta compreender a atividade de trabalho percebendo o universo que se relaciona à saúde dos trabalhadores, privilegiando os saberes construídos e constituídos durante suas atividades e as competências desenvolvidas dessa relação, o que nos permite avançar, ir além, questionando a proposta racional clássica do trabalho que defende o trabalho como simples aplicação de procedimentos já pensados e estabelecidos antes da realização da tarefa. Ou seja, a ação previamente pensada, analisada, elaborada e controlada, impedindo a surpresa do imprevisto e da variabilidade do cotidiano, elementos formadores que compõem a vida e a própria atividade humana no tempo. A proposta racional clássica se apropria (pelo menos em teoria) do próprio tempo para estabelecer, providenciar e realizar as tarefas propostas, definindo o que deve ser feito e em quanto tempo os objetivos e metas industriais devem ser alcançados, não considerando as variabilidades existentes durante o acontecimento das atividades constituintes de trabalho. Devemos ressaltar que num ambiente de trabalho ou mesmo nas mais diversificadas atividades humanas, devemos quando possível, estabelecer planejamentos, regras, formas e meios de fazer, objetivos e metas para conseguirmos o que pretendemos. No entanto, não podemos ignorar a chamada aleatoriedade da vida, com seus imprevistos, suas necessidades de reorganização e de intervenção para conseguir o que foi proposto, o que demonstra que a vida não é uma simples aplicação daquilo que foi antecipadamente combinado. A frenética necessidade de intervir nessas situações instáveis é o que constitui a vida em sua amplitude e que circula pelos mais diversificados contextos dos homens: trabalho, recreação, viagem, etc. Na experiência do tempo e na perspectiva da Ergoformação, buscamos o olhar que privilegia o inesperado, o momento presente nos menores atos de trabalho, as
3 relações mais sutis entre os homens, aquilo que constitui a história se fazendo. Por mais que se tente enquadrar a tarefa, que se tente planejar e cercar todos os imprevistos, sempre haverá algo que não se poderá evitar jamais, ou seja, a infiltração da vida, que derruba todas as previsões e planejamentos estabelecidos. Essa consciência, esse entendimento é que permite compreender o trabalhador como o gestor de suas situações de trabalho e que define suas competências, ou seja, sua capacidade de traduzir o que se pede, o que é solicitado a ele, seja num procedimento ou planejamento de trabalho, aplicando-o e obtendo os resultados esperados em ambientes humanos e materiais diversificados que apresentam mudanças permanentes. Trabalhar é mais que aplicar procedimentos baseados em lógicas exatas. O trabalho é um momento da vida onde o homem se envolve, se cria, se constrói, se reconstrói, se relaciona com outros homens e com os meios, se constitui. A crença de que a técnica em toda sua amplitude (procedimentos, automação, robótica, etc.) reduziria e até eliminaria a intervenção humana na efetivação do trabalho é desmistificada com a intervenção da Ergonomia que provou o valor das relações humanas como chave do sucesso nas relações industriais. A EXPERIÊNCIA NO TEMPO Os nossos ritmos e padrões são regidos pelo tempo dos relógios que expressam nossas práticas e experiências, frutos de uma caracterização coletiva e normativa de uma sociedade. Compreender a experiência no tempo interagindo as práticas sociais com o desenvolvimento da natureza em todos os seus ciclos, demonstra a multiplicidade da noção de tempo, dialeticamente diversificada e singular, histórica e socialmente construída. O tempo como experiência pessoal (uso de si) e coletiva (interações e articulações) com os outros nas mais variadas instâncias, sejam elas institucionais, oficiais ou mesmo na coletividade informal, permite uma elasticidade entre as possibilidades expostas pelo passado, presente e futuro, o que permite a construção de uma proposta histórica diversificada. O que nos interessa e permite uma reflexão provocativa, é a relação contraditória entre o controle e a organização do tempo mercantil característico dos contextos industriais e organizacionais do capitalismo, que busca uma uniformização, racionalização e apropriação dos tempos para teoricamente alcançar resultados
4 econômicos e produtivos mais significativos e crescentes com a contraposição e resistência dos trabalhadores às vezes explícita ou até mesmo implícita das cadências e apropriações dos tempos durante o seu trabalhar. Centrado numa lógica de mensuração que qualifica, conduz e reduz a noção de tempo a dinheiro, de acumulação e capacidade de produzir e gerar valores quando bem empregado, utilizado e investido, o tempo está simbolicamente representado e gerido por instrumentos que determinam e controlam o cotidiano das pessoas. Não significando a total submissão e alienação daqueles que estão inseridos no contexto, pois diversas formas de contestação, negociação, resistência e arranjos são estabelecidos por alguns daqueles que estão submetidos a essa lógica. Compreender essa experiência moderna no tempo com perspectivas antagônicas, ora buscando a uniformização e racionalização do tempo via lógica mercantil, ora percebendo as multiplicidades históricas construídas em tempo real pelas pessoas, permite vislumbrar e elaborar inúmeras significações das realidades existentes. AÇÃO DOS SUJEITOS E AS CONSTRUÇÕES HISTÓRICAS As relações, as ações, os conflitos e diferenças que as pessoas elaboram e desenvolvem nas suas relações, seja nos contextos individuais ou coletivos, determinam nas práticas cotidianas uma construção histórica que vai além da perspectiva mecânica e uniforme de uma razão que acredita poder controlar e direcionar os comportamentos das pessoas. Isso é muito claro nas relações organizacionais onde se acredita que a prática restrita de procedimentos pré-estabelecidos possa garantir resultados previamente antecipados e decididos. Essa idéia anula e desconsidera completamente a participação decisiva e fundamental do trabalhador, uma pessoa repleta de história, com valores, sentimentos e desejos, parte essencial e fundamental para garantir a efetivação dos resultados desejados. Os resultados esperados pelas organizações para serem obtidos, precisam da convergência de algumas variáveis fundamentais que remetem diretamente aos aspectos individuais e coletivos das pessoas em suas interações com os ambientes a que estão inseridos. Isso demanda compromissos, responsabilidades e sentimentos próximos a idéias do tipo devo estar convencido de que isso realmente tem valor para mim.
5 Isso nos remete parcialmente à noção de experiência abordada por Dubet, onde os sujeitos precisam articular e relacionar diversas lógicas de ação para interagir com os mais variados eixos da sociedade em seus sentidos e apresentações heterogêneas. E ainda, como os sujeitos se apresentam, se emocionam e se relacionam no espaço entre o individual e coletivo da sociedade. Dessa forma podemos perceber as subjetividades dos sujeitos e a obrigatoriedade de gerir inúmeras lógicas de ação, sendo este o ponto que nos interessa e que concentramos, para identificar as recusas e estratégias estabelecidas pelos próprios trabalhadores no seu ambiente de trabalho a fim de não cumprirem e até reproduzirem efetivamente aquilo que lhe é antecipado, prescrito, verticalizado. Não estando familiarizado com o que lhe é pedido e dividido entre o cumprir as exigências estabelecidas pelo sistema da organização, onde existe um universo de normas, regulamentos, prazos, objetivos e metas, muitas vezes criados por circuitos e pessoas que pouco ou nada compreendem do seu contexto real de seu trabalho e entre os seus saberes construídos e constituídos e das competências desenvolvidas ao longo de sua experiência profissional e mais ainda pessoal e histórica, esse sujeito vai se desenvolvendo e construindo suas possibilidades, seus espaços e os seus tempos, caracterizando todo seu patrimônio individual. Como define Dubet, o sujeito não é um ser, mas uma obra que os atores realizam sobre eles mesmos, constituindo sua experiência enquanto sujeitos definidos por um jogo de tensões. As relações, as ações, os conflitos e as diferenças que as pessoas elaboram e desenvolvem em seus contextos individuais e coletivos permitem a sua construção histórica, constituindo-se, desenvolvendo-se, determinada nas práticas cotidianas. A experiência é a atividade do sujeito combinando e dialogando com as diversas lógicas de ação existentes nos mais variados contextos. Dessa forma, o sujeito torna-se autônomo através da análise, crítica e reflexão de sua realidade, associando a isso, comportamentos opostos às situações de dominação e opressão existentes. O sujeito torna-se dissidente, autônomo, histórico, não submisso à ordem vigente. Perceber os sujeitos como gestores de seu tempo, dentro de suas possibilidades, permite construir e re-significar as noções de tempo. O tempo da rotina, do trabalho, da expropriação, todos esses tempos estão relacionados e flexionados sobre a composição da vida. A gestão desses tempos está relacionada diretamente com a oposição às dominações impostas pela racionalidade
6 do tempo produtivo, o que permite influenciar no aumento ou redução do ritmo de trabalho. REFERÊNCIAS CUNHA, Daisy Moreira. Atividade humana e produção de saberes no trabalho docente, Brasil: Faculdade de Educação, Universidade Federal de Minas Gerais, Belo Horizonte, 2005. DANIELLOU, François (coord.) A ergonomia em busca de seus princípios: debates epistemológicos. Trad. Maria Irene Stocco Betiol (coordenadora da tradução). São Paulo: Edgard Blücher, 2004. DUBET, François. Sociologia da Experiência. Lisboa, Portugal. Coleção Epistemologia e Sociedade. Instituto Piaget, 1994. GUÉRIN, F., et.al. Compreender o trabalho para transformá-lo: a prática da ergonomia. Trad. GilianeM. J. Ingratta, Marcos Maffei. São Paulo: Edgard Blücher: Fundação Vanzolini, 2001. SCHWARTZ, Yves, DURRIVE, Louis (Orgs.) Trabalho e Ergologia: conversas sobre a atividade humana. Trad. Jussara Brito e Milton Athayde. Niterói:Ed.UFF, 2007. TEIXEIRA, Inês Assunção de Castro. Tempos enredados: teias da condição professor. Belo Horizonte. Faculdade de Educação UFMG, 1998. (Tese de Doutorado).