Reflexões sobre as competências profissionais para o processo de trabalho nos Núcleos de Apoio à Saúde da Família



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Transcrição:

artigo de revisão / review article / discusión crítica Reflexões sobre as competências profissionais para o processo de trabalho nos Reflections on professional abilities for working in the Nuclei of Support to Family Health Reflexiones a cerca de las capacidades profesionales para trabajar en los Núcleos de Asistencia a la Salud de la Familia Débora Dupas Gonçalves do Nascimento* Maria Amélia de Campos Oliveira** Resumo: Os (NASF), recentemente implantados no Brasil, têm como objetivos apoiar as equipes de saúde da família na efetivação da rede de serviços e ampliar a abrangência e o escopo das ações da Atenção Básica. Sua implantação reflete a busca crescente pela integralidade da atenção e pela interdisciplinaridade das ações em saúde, visando à consolidação da Estratégia Saúde da Família. Este artigo apresenta algumas reflexões acerca das ferramentas utilizadas no cotidiano do trabalho no NASF e as competências profissionais requeridas. Percebe-se um descompasso entre a formação inicial e a realidade concreta dos serviços, que tem como desafio responder a necessidades sociais em saúde. Uma formação pautada nos quatro pilares da educação, propostos por Delors, pode contribuir para a formação de profissionais com conhecimentos, habilidades e atitudes necessários ao trabalho nos NASF. Palavras-chave: Competência profissional. Programa Saúde da Família. Sistema Único de Saúde. Abstract: The Nuclei of Support to Family Health (NASF), recently implanted in Brazil, aim at supporting family health teams in implementing the network of health services and broaden the public and the target of Basic Assistance actions. Its implantation reflects the increasing effort for integrality in assistance and interdisciplinarity of health actions, aiming at the consolidation of the Family Health Strategy. This article presents some reflections concerning the tools used in NASF daily activities and the required professional abilities. An inconsistence between initial training and the concrete reality of services was perceived which challenges us to answer to the social necessities in the health field. A training grounded in the four pillars of education proposed by Delors may contribute to educating professionals with knowledge, abilities and attitudes necessary for working in NASF. Keywords: Professional ability. Family Health Program. Unified Health System. Resumen: Los Núcleos de Asistencia a la Salud de la Familia (NASF), implantados recientemente en Brasil, tienen como objetivo apoyar a los equipos de Salud de la Familia en la implementación de la red de servicios médicos y ampliar el público y la meta de las acciones básicas de asistencia. Su implantación refleja el esfuerzo cada vez mayor a favor de la integralidad en asistencia y el carácter interdisciplinario de las acciones de salud, teniendo como meta la consolidación de la Estrategia Salud de la Familia. Este artículo presenta algunas reflexiones referentes a las herramientas usadas en actividades diarias de los NASF y las capacidades profesionales requeridas. Se percibió una inconsistencia entre el entrenamiento inicial y la realidad concreta de servicios que nos desafía a atender a las necesidades sociales de salud. Un entrenamiento asentado en los cuatro pilares de la educación propuesto por Delors puede contribuir a educar a profesionales con el conocimiento, las capacidades y las actitudes necesarios para trabajar en los NASF. Palabras llave: Capacidad profesional. Programa Salud de la Familia. Sistema Unificado de Salud. * Fisioterapeuta. Mestre em Enfermagem pela Universidade de São Paulo. Preceptora da Residência Multiprofissional em Saúde da Família da Casa de Saúde Santa Marcelina/Faculdade Santa Marcelina/Ministério da Saúde e Assessora Técnica do NASF e Reabilitação da APS Santa Marcelina. E-mail: ddupas@uol.com.br ** Enfermeira. Professora Titular do Departamento de Enfermagem em Saúde Coletiva da Universidade de São Paulo USP. E-mail: macampos@usp.br 92 O Mundo da Saúde, São Paulo: 2010;34(1):92-96.

Introdução O SUS e a Estratégia Saúde da Família O Sistema Único de Saúde (SUS) foi instituído no país por meio da Constituição de 1988, incorporando os princípios doutrinários de universalidade, equidade, integralidade e participação popular, postulados pelo movimento da Reforma Sanitária e expressos VIII Conferência Nacional de Saúde de 1986. Está estruturado sob a forma de uma rede de serviços descentralizados, hierarquizados e regionalizados, para atender com resolubilidade as necessidades de saúde dos grupos sociais 1. Fundado no direito universal à saúde e priorizando a Atenção Básica como porta de entrada do sistema, passou a requerer um modelo de saúde integral e resolutivo em todos os níveis de atenção. A partir de 1994, a Atenção Básica foi reestruturada e reorganizada com a implantação do Programa de Saúde da Família (PSF), recentemente denominado Estratégia Saúde da Família (ESF). Com a ESF, a família passou a ser considerada uma unidade de intervenção e firmou-se a premissa da reorientação das práticas profissionais a partir da Atenção Básica, no desenvolvimento de ações de promoção, prevenção e recuperação da saúde, de forma integral e contínua. O papel da ESF foi reafirmado na Política Nacional da Atenção Básica 2, que definiu como prioridades sua consolidação e qualificação, tomando a Atenção Básica centro ordenador das redes de atenção à saúde no SUS. A ESF preconiza a territorialização e a delimitação das áreas de abrangência das equipes, tendo em vista a identificação das necessidades e dos problemas de saúde da população, o monitoramento das condições de vida e de saúde das coletividades, facilitando a programação e a execução das ações sanitárias 3. Preconiza ainda a abordagem e a intervenção nos determinantes sociais da saúde e nos condicionantes culturais, étnicos, comportamentais, entre outros, que influenciam as necessidades e os problemas de saúde 4. As equipes da ESF são compostas por médicos, enfermeiros, auxiliares de enfermagem, agentes comunitários de saúde e equipe de saúde bucal. Seu trabalho focaliza áreas estratégicas de atuação, que incluem a eliminação da hanseníase, o controle da tuberculose, da hipertensão arterial e do diabetes mellitus, a saúde bucal, a eliminação da desnutrição infantil, a saúde da criança, da mulher e do idoso 5. Em que pesem os bons resultados alcançados pela implantação da ESF no território nacional, verifica-se que, para alcançar a integralidade da atenção e a interdisciplinaridade das ações, é necessária a presença de outros profissionais de saúde integrando as equipes da ESF. Como esse propósito, o Ministério da Saúde criou os Núcleos de Apoio à Saúde da Família (NASF), por meio da Portaria GM n.154, de 24 de janeiro de 2008, republicada em 4 de março de 2008. Seus objetivos são apoiar as equipes da ESF na efetivação da rede de serviços e ampliar a abrangência e o escopo das ações da Atenção Básica, bem como sua resolubilidade. Núcleo de apoio à saúde da família No contexto da Atenção Básica, o NASF busca qualificar e complementar o trabalho das equipes de Saúde da Família, atuando de forma compartilhada para superar a lógica fragmentada ainda hegemônica no cuidado à saúde, visando à construção de redes de atenção e cuidado, e colaborando para que se alcance a plena integralidade do cuidado físico e mental aos usuários do SUS 6. O NASF constituído por uma equipe de apoio, integrada por profissionais de diferentes áreas de conhecimento, como fonoaudiólogos, fisioterapeutas, terapeutas ocupacionais, nutricionistas, psicólogos, assistentes sociais, educadores físicos, farmacêuticos, médicos acupunturistas e homeopatas, dentre outros, eleitos em função das necessidades de saúde, vulnerabilidades socioeconômicas e perfil epidemiológico dos diversos territórios onde se encontram os serviços de saúde. Pode ser considerado como retaguarda das equipes da ESF, por atuar em conjunto com esses profissionais, compartilhando com eles saberes e práticas de saúde no cotidiano dos serviços de cada território. A atuação dos NASF está dividida em nove áreas estratégicas: atividade física e práticas corporais; práticas integrativas e complementares; reabilitação; alimentação e nutrição; saúde mental; serviço social; saúde da criança, do adolescente e do jovem; saúde da mulher e assistência farmacêutica 6. Em contraste com os modelos convencionais de prestação de cuidados, que primam pela assistência curativa, especializada, fragmentada e individual, a proposta de trabalho do NASF busca superar essa lógica, em direção à co-responsabilização e gestão integrada do cuidado, por meio de atendimentos compartilhados e projetos terapêuticos que envolvam os usuários e que sejam capazes de considerar a singularidade dos sujeitos assistidos. A proposta do NASF tem na clínica ampliada o conceito norteador das ações, não para reduzir os usuários a um recorte diagnóstico ou por áreas profissionais, mas como uma ferramenta para que os O Mundo da Saúde, São Paulo: 2010;34(1):92-96. 93

profissionais e gestores dos serviços de saúde possam enxergar e atuar na clínica para além dos pedaços fragmentados, sem deixar de reconhecer e utilizar o potencial desses saberes 7. De acordo com a Política Nacional de Humanização 8, a clínica ampliada ajuda trabalhadores e usuários dos serviços de saúde a lidar com a complexidade dos sujeitos e dos problemas de saúde da atualidade, o que significa que os ajuda a trabalhar em equipe, reconhecendo a interdependência do trabalho em saúde. Outra ferramenta utilizada com esse fim é apoio matricial, também conhecido como matriciamento, que pode ser definido como um arranjo tecno-assistencial que visa à ampliação da clínica das equipes da ESF, alterando a lógica de encaminhamentos indiscriminados para uma lógica de co-responsabilização territorial, buscando maior resolubilidade em saúde, com o objetivo de assegurar, de uma forma dinâmica e interativa, retaguarda especializada às equipes 9. O matriciamento apresenta duas dimensões: a assistencial, relacionada ao cuidado direto aos indivíduos, e a técnico-pedagógica, que diz respeito ao suporte para as equipes, com vistas à ampliação das possibilidades de intervenção, propiciada por um novo olhar e um novo saber que se estabelece durante as discussões dos casos e os atendimentos compartilhados 9. No dia-a-dia do trabalho das equipes da ESF, observa-se que muitas vezes o processo de trabalho limita-se a alcançar de metas numéricas e procedimentos pré-determinados, sem a devida reflexão acerca da qualidade do serviço prestado. O NASF busca romper esta lógica e colaborar para a implementação de ações qualificadas, aumentando a capacidade resolutiva das equipes e problematizando com as equipes e os usuários dos serviços os determinantes do processo saúde-doença e as possibilidades de enfrentamento das condições que levam ao adoecimento e à morte. Por se tratar de um processo ainda em construção, a implantação do NASF implica a necessidade de estabelecer espaços rotineiros de reunião, planejamento e discussão de casos para definição de projetos terapêuticos compartilhados por toda a equipe, de forma validada e significativamente reconhecida sob o ponto de vista dos gestores, na forma de projetos terapêuticos singulares (PTS) e projetos de saúde no território (PST). O PTS designa o movimento de co-produção e co-gestão do cuidado, em busca de um conjunto de propostas e condutas terapêuticas articuladas, para sujeitos individuais ou coletivos, que se processa em quatro momentos não estanques: diagnóstico, definição de metas, divisão de responsabilidades e reavaliação 7. É constituído especialmente nas reuniões de equipe, a partir da discussão dos casos, enfocando os determinantes do processo saúde-doença. O PST é uma estratégia para o desenvolvimento de ações compartilhadas entre os serviços de saúde do território e outros setores e políticas, visando impacto na produção da saúde territorial, que tenham foco investir na qualidade de vida e na autonomia de sujeitos e comunidades 9. As ações desenvolvidas pelo NASF visam imprimir mais qualidade ao serviço prestado e não apenas suprir a demanda assistencial no seu aspecto meramente numérico. Seu principal desafio é a mudança de uma cultura organizacional no SUS, que historicamente vem priorizando a quantidade em detrimento da qualidade, o referenciamento em detrimento da resolubilidade na Atenção Básica e a avaliação de impacto e de indicadores de saúde por meio de ações meramente quantitativas, em detrimento das qualitativas. Para o desenvolvimento do trabalho interdisciplinar nos moldes em que o NASF propõe, é preciso que haja uma revisão crítica acerca dos processos educativos e formativos que vem sendo desenvolvidos pelas Instituições de Ensino Superior. Requer, portanto, a efetivação das Diretrizes Curriculares Nacionais (DCN) para os cursos de graduação em saúde, que postulam a formação dos profissionais da saúde voltada para o sistema de saúde vigente no país, ou seja, para o SUS, tendo como eixos a atenção integral à saúde e o trabalho em equipe 10. Para responder aos desafios atuais do trabalho em saúde, faz-se necessário refletir sobre a formação e sobre o perfil de competências desejado aos profissionais da saúde, com enfoque não apenas no conhecimento técnico especializado, mas, principalmente, nas habilidades e atitudes a serem desenvolvidas em prol da saúde da população, com a consciência da responsabilidade social envolvida na ação profissional. Desenvolvimento de competências profissionais na formação em saúde O desenvolvimento de competências apresenta-se como uma nova perspectiva para a formação dos profissionais de saúde, não só por incentivar a reflexão crítica, mas por ser capaz de responder às exigências impostas pelo atual cenário de mudanças sociais e favorecer o desenvolvimento da cidadania 11. A formação dos profissionais da saúde ainda está pautada no modelo biomédico, fragmentado e especializado, o que dificulta a compreensão dos determinantes do processo saúde-doença e também 94 O Mundo da Saúde, São Paulo: 2010;34(1):92-96.

a intervenção sobre seus condicionantes. Segundo Feuerwerker 12, a fragmentação do conhecimento que caracteriza a formação inicial na maior parte dos cursos da área da saúde predispõe que o mesmo ocorra na prática assistencial, o que cria obstáculos para a construção da integralidade. O trabalho no NASF solicita que a formação inicial e a educação permanente dos profissionais da saúde favoreçam o desenvolvimento de habilidades e competências para realizar um diagnóstico situacional das condições de vida e de saúde dos grupos sociais de um dado território, assim como para planejar intervenções em saúde capazes de enfrentar os determinantes do processo saúde-doença, prestar assistência e desenvolver ações educativas estimulando o auto-cuidado e emancipação 13. Dentre as dificuldades que estão sendo identificadas no processo de trabalho do NASF está a formação dos profissionais que não atende às necessidades do SUS, muito menos da Atenção Básica. O distanciamento dos serviços na formulação das propostas pedagógicas para formação inicial, assim como a iniciativa crescente de educação à distância na pósgraduação, não contempla questões tão singulares como vínculo, acolhimento, escuta e o próprio trabalho em equipe, indispensáveis para a proposta do NASF. A avaliação dos processos formativos para os trabalhadores do NASF indica que a Residência Multiprofissional em Saúde da Família (RMSF) é uma das estratégias positivas para a formação de profissionais com perfil para trabalhar com as ferramentas propostas pelo NASF, pela imersão no contexto da prática ao longo do processo de formação. A RMSF fundamenta-se na interdisciplinaridade como facilitadora da construção de um conhecimento ampliado de saúde, que precisa qualificar os trabalhadores para o desafio de trabalhar na coletividade visualizando as dimensões objetivas e subjetivas dos sujeitos 14. Nascimento e Oliveira 15, em um estudo que tomou como objeto a formação dos profissionais da saúde para o SUS em um programa de RMSF, discutiram essa formação a partir dos quatro pilares da educação proposto por Delors 16 : conhecimentos (saber conhecer), habilidades (saber fazer) e atitudes (saber ser e saber conviver). Verificaram que o trabalho na ESF, além do conhecimento técnico específico adquirido na formação inicial, requer dos profissionais conhecimento sobre as políticas públicas de saúde, território, perfil epidemiológico da população e rede de cuidados. Dentre as habilidades requeridas, identificaram a necessidade de ter habilidade técnica específica, habilidade para abordar o paciente, acolher, ouvir, comunicar-se e trabalhar em equipe. Esta última é essencial para o desenvolvimento do trabalho no NASF, uma vez que é uma importante diretriz para reorganização do processo de trabalho na ESF. A articulação dos saberes por meio de uma interação comunicativa e horizontal é um requisito indispensável no cotidiano do trabalho em equipe, com vistas à interdisciplinaridade. Flexibilidade, pró-atividade, resiliência, respeito, vínculo e comprometimento são atitudes fundamentais aos profissionais do NASF, face às dificuldades vivenciadas na implantação de um novo modelo de cuidado em saúde. Para o trabalho em saúde, e especialmente no NASF, o foco da formação em saúde deve ser o usuário e o processo de cuidado. O trabalho no NASF tem o propósito de resgatar o cuidado contínuo, com toda abrangência e singularidade que o termo possibilita pensar, o que envolve desde o processo interativo entre quem cuida e é cuidado até o estabelecimento de parcerias intersetoriais. Considerações finais O NASF propõe repensar a formação e as práticas em saúde vivenciadas até o momento pela ESF. Traz como ferramentas instituídas a clínica ampliada, o matriciamento, o projeto terapêutico singular e o projeto de saúde no território para a realização do cuidado ao usuário e qualificação das ações das equipes. Sabe-se que a transformação da formação e das práticas é um desafio a ser superado em várias instâncias, pois implica mudanças de paradigmas já estruturados nos serviços, nas instituições de ensino e nas relações interpessoais. Apenas o diálogo e a aproximação das práticas e das concepções vigentes de atenção à saúde poderão minimizar o descompasso entre a formação e a realidade concreta dos serviços. Somente assim será possível construir um novo modo de trabalho em saúde, centrado no usuário, com qualidade, resolubilidade e equidade. O Mundo da Saúde, São Paulo: 2010;34(1):92-96. 95

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