Ainovação em tecnologia para suprir as necessidades do complexo



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Número 17 - Jan-Mar/2011 EDITORIAL Aterosclerose: estudos recentes apontam causas para além das dislipidemias Menopausa e sistema imune, uma relação a ser desvendada www.revistapesquisamedica.com.br ISSN: 1980-2412 R$ 14,90 Editora responsável: Silvia Campolim Editores contribuintes: Giuliano Agmont e Alice Giraldi Editoração e arte: Cleber Estevam Revisão: Glair Picolo Coimbra e Mônica Ludvich Assistente de redação: Angela Helena Viel Web: Vinicius Patricio Pizzi Colaboraram neste número Cecília Proença, Frances Jones, Julio Zanella, Naylora Troster, Valquiria Dinis, Vanessa Santana e Tomás Troster A revista Pesquisa Médica é uma publicação da Segmento Farma Editores Ltda. Diretor-geral: Idelcio D. Patricio Diretor executivo: Jorge Rangel Gerente financeira: Andréa Rangel Diretor médico: Dr. Marcello Pedreira - CRM 65.377 Gerente comercial: Rodrigo Mourão Editora-chefe: Daniela Barros - MTb 39.311 Comunicações médicas: Cristiana Bravo Relações institucionais: Valeria Freitas Diretor de criação: Eduardo Magno Gerentes de negócios: Claudia Serrano, Eli Proença e Marcela Crespi Produtor gráfico: Fabio Rangel Cód. da publicação: 11830.12.10 O conteúdo publicado na revista Pesquisa Médica é de responsabilidade exclusiva da Segmento Farma Editores Ltda. Rua Anseriz, 27, Campo Belo São Paulo, SP 04618-050 Tel.: (11) 3093-3300 www.segmentofarma.com.br segmentofarma@segmentofarma.com.br Do laboratório à prática clínica Inovação é a palavra de ordem Multiplicam-se as políticas de incentivo à pesquisa voltada ao desenvolvimento de fármacos e novas tecnologias para a saúde Ainovação em tecnologia para suprir as necessidades do complexo industrial de saúde e reduzir o déficit anual que onera o sistema universal de assistência entrou na ordem do dia das políticas públicas. Não faltam verbas para financiar a articulação de redes de pesquisa e desenvolvimento e aproximar os principais atores envolvidos, cientistas, engenheiros e empresas farmacêuticas e de produtos médicos e hospitalares. Mas o caminho da transferência de conhecimento da pesquisa científica para a indústria não está desimpedido, mostra o Especial Inovação publicado nesta edição da Pesquisa Médica. A inadequação da lei de patentes e a lentidão de operação do INPI, o Instituto Nacional da Propriedade Industrial, são os principais obstáculos que afastam os empreendedores, segundo os cientistas. Veja a entrevista com o coordenador do Instituto Nacional de Ciência e Tecnologia para o Desenvolvimento de Fármacos e Medicamentos, o INTC-INOFAR, professor Eliezer J. Barreiro. A falta de pessoal técnico e infraestrutura para as fases de pesquisa pré-clínica, com animais, começa a ser resolvida, informa a reportagem Abrindo a Gaiola, à página 16. Confira. Atos de autoviolência que culminam no suicídio ocupam atualmente o primeiro lugar entre as causas de morte não natural, na maioria dos países desenvolvidos, e esta edição revela como essa tendência já vem sendo observada no Brasil. Além disso, a prática registrada historicamente entre pessoas mais velhas vem se tornando mais incidente entre indivíduos jovens, de 15 a 44 anos. Os índices de depressão e suicídio são, ainda, mais elevados entre médicos e estudantes de medicina, comparativamente às taxas registradas na população em geral, informa o texto A Angústia de Hipócrates. E esses profissionais resistem mais a procurar ajuda. Veja mais à página 39. Boa leitura. Precisamos de sua opinião para melhorar a Pesquisa Médica. Deixe suas observações no site: www.revistapesquisamedica.com.br Silvia Campolim Editora responsável

sumário Neurociência 4 Da ficção à realidade Climatério e sistema imune 6 Relação complexa Referência científica 9 Biblioteca médica online ESPECIAL INOVAÇÃO 14 Chegou a hora de publicar menos e patentear mais O país desenvolveu produção científica e avançou posições no index dos maiores do mundo na pesquisa e publicação de artigos, mas os resultados não atravessaram a fronteira da universidade para o mundo da produção e do mercado de alta tecnologia 16 Abrindo a gaiola O roteiro da inovação no setor de saúde inclui a construção de biotérios, infraestrutura de laboratórios certificados por boas práticas de pesquisa e iniciativas empreendedoras de pesquisadores desconfortáveis com as limitações da academia 22 As pedras no caminho da inovação em fármacos Na falta de normas jurídicas e processos de reconhecimento da propriedade intelectual bem resolvidos, os pesquisadores articulam parcerias para transferência de tecnologia na base da palavra e improvisam soluções para avançar com as pesquisas Errata A chamada de capa do artigo sobre o uso do escore de cálcio na avaliação de risco do paciente cardíaco (Pesquisa Médica Edição n o 15) e o título foram equivocados. O escore de cálcio continua sendo uma certeza, como parâmetro para avaliação do risco, na maioria dos pacientes assintomáticos. Para os sintomáticos, com dor no peito, é que o escore não é um parâmetro tão bom e os médicos precisam usar outros métodos. 26 A história incomum do P-MAPA Um fármaco 100% nacional cujo desenvolvimento seguiu uma trilha alternativa ao tradicional modelo de inovação farmacêutica e foi aprovado em testes clínicos nos renomados Institutos Nacionais de Saúde dos Estados Unidos 31 P&D no complexo industrial de saúde Os órgãos de fomento à pesquisa e desenvolvimento do governo trabalham para recuperar o atraso na produção de tecnologias que levem à independência do país das importações de insumos estratégicos e à superação do déficit na balança comercial

Infectologia 10 Febre sem causa aparente Exames e condutas recomendados para o estabelecimento do diagnóstico e tratamento adequado Psiquiatria 34 A vida por um fio Perto de um milhão de pessoas, entre elas um número crescente de jovens, põe fim à própria vida todos os anos. Medidas simples, como terapia breve e seguimento por telefone, poderiam evitar esse desfecho trágico CÁRDIO-ONCOLOGIA 48 Iniciativa pioneira Especialistas brasileiros saem na frente e criam normas inéditas no mundo para contemplar o risco de problemas cardíacos causados pelo tratamento quimioterápico contra o câncer Conversando com os especialistas 52 Para além da aterosclerose Embora o controle das taxas de LDLcolesterol no sangue ainda represente o tratamento de escolha para conter o avanço das placas ateroscleróticas, responsáveis por cerca de 30% da mortalidade mundial, o entendimento da doença passa por profundas transformações Neurociências 42 Musculação cerebral Pesquisadores investigam as alterações anatômicas e funcionais que a prática da meditação produz no cérebro e mapeiam seus benefícios para a saúde física e mental Cardiologia 46 Interação questionada Novo estudo sobre o uso concomitante de clopidogrel e omeprazol em pacientes com doença coronariana conclui que não há risco de evento cardíaco, ao contrário do que preconiza norma de 2009, estabelecida pelo FDA Vendo por dentro 60 Risco de overdose preocupa especialistas Os médicos sabem pouco sobre os riscos de indução de câncer associados ao uso de tecnologias de imagens para realização de diagnósticos. Diante do problema, o FDA acaba de lançar uma convocação para reduzir os efeitos deletérios de tomografias computadorizadas, fluoroscopias e técnicas de medicina nuclear

do laboratório à prática clínica Neurociência Da ficção à realidade Como o aprendizado de leitura modifica redes neurais relacionadas à visão e à linguagem? Faz diferença o aprendizado precoce das letras, na infância, ou tardio? Novos estudos têm a resposta Po r Naylora Troster* Recentemente, ao terminar a leitura voraz de um exemplar da cuidada edição americana de Solar, o último livro do escritor britânico Ian McEwan, fui agradavelmente surpreendida pelo apêndice, que coroa o livro como a cereja do bolo. A nota comenta a origem renascentista do padrão tipográfico Bembo, usado na impressão da novela, que me encantou ao longo das quase 300 páginas pela simplicidade e elegância na sustentação do texto moderno e rocambolesco. O fato de uma tipografia arcaica ainda ser eficiente nos dias atuais corrobora a teoria de Mark Changizi, neurobiologista evolucionista norteamericano que, entre outras coisas, estuda por que as letras têm a forma que têm. Changizi acredita que os sistemas de escrita são formados por marcas ou traços, como um repertório de caracteres, e que sinais visuais de todos os idiomas têm a forma de elementos da natureza. Analisando a combinação de traçados na formação de caracteres, em mais de 100 sistemas de escrita usados ao longo da história da humanidade, Changizi encontrou dois aspectos semelhantes, que julga fundamentais para facilitar a comunicação escrita: o número médio de traços por caractere é relativamente pequeno (três) e os caracteres têm cerca de 50% de redundância, independentemente do sistema de escrita, o que possibilita sua identificação, mesmo quando metade de seus traços é removida. Outra área interessante da pesquisa neurobiológica está relacionada ao processo de aquisição de habilidades de leitura e seu impacto no desenvolvimento cerebral. Como a escrita foi inventada há apenas 5 mil anos, pressupõe-se que não tenha havido tempo para o desenvolvimento de um sistema neural de leitura e que aprendamos a ler por reúso ou reciclagem de algumas partes do cérebro que evoluíram para outros propósitos. O aprendizado da leitura, um evento fundamental na vida da criança, é reconhecidamente capaz de modificar tanto a anatomia como a ativação cerebral. A alfabetização desenvolve a audição, expandindo o reconhecimento de fonemas (as menores unidades da linguagem falada), o discurso e a visão. Estudos de neuroimagem em crianças normais e disléxicas demonstram que, com a aquisição da leitura, uma área cerebral específica no córtex occipitotemporal esquerdo, denominada área visual da forma da palavra, começa a responder a estímulos ortográficos no aprendizado da escrita. Como o aprendizado da leitura modifica redes neurais relacionadas à visão e à linguagem? Até recentemente, a maioria dos estudos relacionados à alfabetização apenas comparava analfabetos com adultos alfabetizados. Como não incluíam ex-analfabetos indivíduos alfabetizados na idade adulta, que não frequentaram escolas, os efeitos da alfabetização confundiam-se com os da escolaridade. Um estudo internacional, recém-publicado no perió dico Science, separou os efeitos funcionais da escolaridade e da alfabetização, comparando analfabetos com adultos alfabetizados na infância e adultos recentemente alfabetizados (ex-analfabetos). 4 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

O objetivo do estudo foi medir a atividade cerebral, por ressonância magnética funcional, em indivíduos que não frequentaram escola nem aprenderam a ler, e compará-la com a de indivíduos alfabetizados. O propósito da investigação era identificar se o aprendizado precoce (na infância) ou tardio (na idade adulta) faz diferença. A pesquisa foi conduzida na França, com pacientes de Portugal, em colaboração com o pesquisador Paulo Ventura e colegas da Bélgica (Régine Kolinsky e José Morais) e, simultaneamente, no Brasil, por Lucia Braga, do Centro Internacional de Neurociências da Rede Sarah (em Brasília), onde foram recrutados pacientes de diferentes níveis de alfabetização. Foram escaneados 63 pacientes portugueses e brasileiros. A amostra incluiu 32 adultos sem escolaridade (10 analfabetos e 22 ex-analfabetos, com habilidade variável de leitura) e 31 adultos alfabetizados, com boa escolaridade. A habilidade de leitura foi verificada por testes de identificação de caracteres, leitura de palavras, falsas palavras e frases. A pesquisa concluiu que a alfabetização, quer adquirida na infância, quer na idade adulta, aumenta as respostas cerebrais de três formas distintas: estimula a organização dos córtices visuais, principalmente por indução da área visual da forma da palavra no córtex occipitotemporal esquerdo e por aumento de respostas visuais precoces no córtex occipital; ativa, virtualmente, por sentenças escritas, toda a área da fala no hemisfério esquerdo; e refina o processamento da palavra falada por estimulação da região fonológica, o planum temporale. Pode-se dizer, assim, que aprender a ler muda as conexões cerebrais nas áreas da visão e linguagem. Embora aprender a ler na idade adulta não pareça ser tão eficiente como na infância, os ex-analfabetos apresentaram todas as alterações cerebrais características da alfabetização, o que significa que a eficiência pode apenas depender da quantidade de treino. Houve apenas duas exceções, com menor intensidade de ativação cerebral entre os adultos: a competição na área visual com faces; e no córtex pré-frontal, área relacionada aos gestos de escrever, que, intuitivamente, deve ser mais ativada pelo treino de escrever na infância. De qualquer forma, a maior contribuição desse estudo pode ter sido provar que a ideia de que aprender a ler na idade adulta é mais difícil do que na infância é pura ficção... Fontes Changizi MA, Shimojo S. Character complexity and redundancy in writing systems over human history. Proc Biol Sci. 2005;272(1560):267-75. Dehaene S, Pegado F, Braga LW, et al. How learning to read changes the cortical networks for vision and language. Science. 2010;330(6009):1359-64. Ian McEwan. Solar: a novel. 1.ed. New York: Nam A. Talese; Doubleday, 2010. * Médica psiquiatra pela Associação Brasileira de Psiquiatria (ABP-TEP). Thinkstock N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 5

do laboratório à prática clínica Climatério e sistema imune Relação complexa A queda hormonal na menopausa tem impacto na atividade das células de defesa do organismo feminino e torna as mulheres mais vulneráveis às infecções virais, entre outras afecções, como as doenças inflamatórias e cardiovasculares Po r Silvia Ca m p o l i m 6 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

do laboratório à prática clínica Thinkstock discute o efeito protetor da terapia hormonal, da alimentação e do exercício na menopausa, considerando esse quadro e a complexidade do sistema imune, que na mulher madura se mostra mais do que nunca vulnerável. Pe s q u i s a Mé d i c a O que é possível afirmar sobre o impacto do hipoestrogenismo no sistema imunológico feminino? Já existem estudos epidemiológicos sobre isso? Medeiros A forma de interação entre esteroides sexuais e sistema imune tem ainda hiatos a serem preenchidos. Mas tem relevância científica o achado de receptores para estrogênios e androgênios em várias células do sistema imune e a descoberta da modulação da atividade dessas células por parte desses esteroides. Pode-se afirmar que o hipoestrogenismo está associado à menor atividade das células de defesa (macrófagos, linfócitos T), o que aumenta a vulnerabilidade da mulher, na pós-menopausa, às infecções virais e inibe sua capacidade de atacar as células tumorais ou de estimular o processo de cicatrização. A menopausa ainda está associada a níveis elevados de substâncias pró-inflamatórias envolvidas na gênese da aterosclerose e da osteoporose. Estudos epidemiológicos são escassos e têm focado mais a imunidade humoral relacionada às atividades pró e anti-inflamatórias. Os hormônios estrogênios interagem com vários mecanismos do sistema imune feminino e sua ausência, na menopausa, afeta esse sistema, reafirmam estudos e revisões recentes dos brasileiros Maitelli e Medeiros e do português Camilo Castelo-Branco, de 2010. A questão é examinada desde meados do século passado no mundo. Primeiro em estudos in vitro e em camundongos, experimentalmente. Nos últimos 30 anos, em ensaios clínicos com mulheres na pós-menopausa, observa Medeiros, professor do Departamento de Ginecologia e Obstetrícia da Faculdade de Ciências Médicas da Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), Cuiabá, MT. Na entrevista a seguir, o pesquisador Pe s q u i s a Mé d i c a Mulheres têm maior prevalência de doenças autoimunes como lúpus, artrite reumatoide, tireoidite etc., o que deixa claro o papel dos hormônios femininos na gênese dessas condições, segundo os estudos. Mas as doenças autoimunes refletem hiperatividade e não declínio do sistema imunológico. Se os estrogênios participam dessa gênese, essas doenças deveriam acabar após a menopausa, mas não é isso que ocorre. Por quê? Medeiros A maior ocorrência de doenças autoimunes na mulher tem mesmo relação com os esteroides sexuais. Esse fato sugere então hiperatividade do sistema imune na mulher, quando comparado ao do homem. Os mecanismos são complexos e não explicam por que, com a menopausa, a artrite reumatoide, o lúpus e O hipoestrogenismo aumenta a vulnerabilidade da mulher, na pós-menopausa, às infecções virais e inibe sua capacidade de atacar as células tumorais ou estimular o processo de cicatrização (Medeiros) N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 7

do laboratório à prática clínica A menopausa está associada a níveis elevados de substâncias próinflamatórias envolvidas na gênese da aterosclerose e da osteoporose (Medeiros) a esclerose múltipla evoluem de modo distinto. Por exemplo, a artrite reumatoide tende a piorar porque o estrogênio suprime a proliferação dos leucócitos T, inibe a maturação dos linfócitos B na medula óssea e a produção de células NK. Essas modificações parecem favoráveis à melhoria do lúpus, ainda que nessa condição o estradiol tenha ação dependente dos níveis circulantes. A reposição hormonal é segura no lúpus. A esclerose múltipla pode piorar com a menopausa e melhorar com a tera - pia hormonal. Pe s q u i s a Mé d i c a Estudos animais mostram a exacerbação da artrite reumatoide quando os ovários dos modelos são extraídos. A doença melhora quando os animais são tratados com reposição de estrogênios. A reposição hormonal na pós-menopausa em mulheres com artrite também parece ter efeito benéfico. Tendo em conta os estudos feitos sobre o tema, já se sabe quais formulações são mais eficazes, ou que tipo de TH funciona melhor? Medeiros Embora haja melhora da artrite reumatoide com a TH, não se pode dizer que determinada combinação seja melhor que outra. Tanto estradiol como estrogênios conjugados e medroxiprogesterona ou noretisterona têm sido usados com resultados parecidos. Os novos progestogênios hoje disponíveis tendem a ganhar espaço nos próximos estudos. Em nosso centro, estamos estudando a combinação de estradiol com drospirenona. Pe s q u i s a Mé d i c a Para avaliar e tratar as doen ças autoimunes na mulher em cada fase da idade reprodutiva à perimenopausa e pósmenopausa, os médicos devem levar em conta o papel dos estrogênios? Como? Medeiros Os protocolos disponíveis para controlar as doenças autoimunes na mulher em idade reprodutiva já consideram a modulação dos esteroides sexuais. Reumatologistas não têm orientação específica para os diferentes períodos de vida da mulher. Mas é importante que o ginecologista tenha conhecimento do papel desses esteroides no curso dessas condições. As diretrizes recomendam hoje o uso da menor dose eficaz e de estrogênios naturais. Pe s q u i s a Mé d i c a Seus estudos mostram que o equilíbrio do sistema imune é alterado por um conjunto de variáveis na menopausa. Poderia resumir em linhas gerais as principais alterações que elevam a suscetibilidade do organismo feminino às infecções e aos ataques virais? Medeiros Mulheres tendem a ter níveis mais elevados de imunoglobulinas e maior resposta imune humoral do que os homens. Assim respondem melhor às infecções bacterianas e virais ou a antígenos não próprios. Essa diferença tende a diminuir após a menopausa. O hipoestrogenismo resulta em menor secreção de IL-10 (potente citocina anti-inflamatória) pelos monócitos, menor secreção de interferon gama e interleucina-2, responsáveis pela indução da imunidade celular, que é responsável pela defesa contra agentes estranhos. Pe s q u i s a Mé d i c a É possível melhorar o sistema imune depois da menopausa para além da TH? Com quais terapias ou esquemas, como vitaminas, prática de atividade física etc.? Medeiros Há evidências suficientes para afirmar que a resposta imune no período pós-menopausa pode ser beneficiada também por atividade física associada à reposição hormonal. Atividade de moderada intensidade melhora a imunocompetência. Deve-se assegurar o fornecimento adequado de energia, proteínas, vitaminas e minerais. Dietas ricas em aminoácidos essenciais e antioxidantes melhoram a resposta imune. A ingestão de produtos derivados de soja pode atenuar a resposta imune ao diminuir a formação de anticorpos e leucócitos. No entanto, nesse tópico os estudos são ainda inconsistentes. Fontes Gameiro CM, Romão F, Castelo-Branco C. Menopause and aging: changes in the immune system A review. Maturitas. 2010 Ago 31. doi:10.1016/j. maturitas.2010.08.003 Maitelli A, Medeiros SF. Cellular and humoral immune responses after short-term oral hormone therapy in post-menopausal women. A pilot cohort study. Disponível em: www.clinicaintro.com.br/index.php?option=com. Acessado em: 29 Nov 2010. Medeiros SF, Maitelli A, Nince APB. Efeitos da terapia hormonal na menopausa sobre o sistema imune. Rev Bras Ginecol Obstet. 2007;29(11):593-601. 8 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

do laboratório à prática clínica Referência científica De médico para médicos O site brasileiro MedWebPesquisa, de acesso livre para profissionais da área médica, tem conteúdos e orientação de busca organizada de material científico na internet Uma biblioteca médica online, organizada por especialidade, com informações para facilitar a pesquisa e o uso imediato de referências científicas na prática clínica, é a proposta do site www.medwebpesquisa.com.br, organizado e mantido pelo cardiologista Paulo Fernando Leite, de Belo Horizonte (MG). A proposta do portal é oferecer aos médicos brasileiros um atalho para a busca de referências científicas em outros catálogos livres de jornais médicos, como o PubMed e a biblioteca SciELO. Atualizamos mensalmente o site, sempre com novos artigos e links de interesse científico, diz o cardiologista. Um dos diferenciais do portal é a veiculação de artigos de revistas médicas brasileiras que não são indexadas em outras bibliotecas virtuais, como o PubMed. O recurso é particularmente útil para mais da metade dos médicos brasileiros, que não leem artigos em inglês, explica Paulo Fernando Leite, especializado em educação médica online. No ar desde 2008, com acesso gratuito mediante cadastro, o MedWebPesquisa disponibiliza online cerca de 3 mil artigos de revisão e diretrizes médicas, em mais de 20 especialidades. Oferece, ainda, de forma organizada, os endereços (links) para, aproximadamente, 1.200 revistas médicas online. Quatro botões no menu indicam os conteúdos de livre acesso. São eles: Diretrizes Médicas, MedWebGuia, Publicações Médicas Online e Jornal MedWebPesquisa. Além de ter acesso ao conteúdo, os médicos cadastrados podem solicitar informações e sugerir novos conteúdos à equipe do site. Recebemos recentemente a sugestão para incluir sites de medicina reprodutiva e da família. Também temos pedidos mais específicos, como de artigos sobre neurofibromatose e sobre dor e acupuntura, estes encaminhados por fisiatras, conta o médico Paulo Fernando Leite. Ele menciona que pesquisas feitas no portal têm mostrado que o médico internauta busca conteúdos relacionados a casos clínicos e farmacologia clínica, por doença. Vamos caminhar para atender a essa demanda. Também queremos incrementar a parte de imagem do site, oferecendo vídeos e imagens médicas acompanhadas de conferências e casos clínicos. Guidelines por especialidades A seção Diretrizes Médicas reúne publicações de quase todas as áreas, que foram divulgadas a partir de 2009. Ao todo, há normatizações para a prática clínica de 36 especialidades, de alergia a imunopatologia, passando por hematologia e infectologia, até oncologia, pediatria e radiologia. No item Med WebGuia, o internauta encontra uma seleção de sites de referência classificados por associações médicas, doenças e condições clínicas. São quase 40 itens com subdivisões. Na área dedicada a publicações médicas online, estão relacionados links para busca de conteúdos eletrônicos com textos completos, os chamados free fulltext. Os artigos podem ser localizados nas próprias publicações médicas, no menu de arquivos (archive), edições anteriores (past issues) ou mecanismo de busca (search). Quando há menção a algum artigo específico, seu link é destacado na página do MedWebPesquisa. O portal produz, ainda, seu próprio jornal, com características de blog, atualizado quinzenalmente por categorias. São notícias, internet médica, informática, agenda, assuntos clínicos, livraria e farmacologia. N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 9

INFECTOLOGIA Febre sem causa aparente Doenças comuns que acometem a população com frequência, mas cuja apresentação clínica se dá de forma atípica, estão por trás da maioria dos casos de febre de origem indeterminada ou FOI, como é abreviada. A seguir, os exames e condutas recomendados para o estabelecimento do diagnóstico e tratamento adequado Po r Valquiria Dinis Doenças inflamatórias, infecciosas, malignidades, drogas, distúrbios hipotalâmicos e doença factícia podem ser causas de febre. Mas há também uma entidade clínica denominada febre de origem indeterminada, cujo nome já indica que sua etiologia é de difícil elucidação mesmo após intensa busca diagnóstica. Os critérios que a caracterizam são temperatura corpórea superior a 37,8 C, medida em diversas ocasiões, com duração superior a três semanas e diagnóstico incerto após uma semana de investigação hospitalar. A prevalência da FOI em pacientes hospitalizados é de 2,9%, segundo estudo publicado em 2003 por Mourad e colegas na revista Archives of Internal Medicine, que aponta entre as principais etiologias as doenças infecciosas, neoplásicas e inflamatórias. A avaliação diagnóstica pode falhar na identificação da etiologia em cerca de 30% a 50% dos casos, informa Mourad, embora a maioria dos adultos que permanecem sem diagnóstico apresente bom prognóstico. A investigação mínima hospitalar para que se caracterize a FOI deve conter história e exame físico, hemograma completo com diferencial, hemoculturas (três pares de amostras retiradas de diferentes sítios com intervalo de coleta entre as amostras de algumas horas e sem a administração de antibióticos), além de bioquímica, função hepática, urina I e urocultura, radiografia de tórax, fator antinuclear (FAN), fator reumatoide, sorologia para HIV, hepatites virais e pesquisa de IgM para citomegalovírus (CMV). Caso exista algum sinal ou sintoma que aponte para o acometimen- 10 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

INFECTOLOGIA Thinkstock casos, geralmente em decorrência de anergia cutânea, e a pesquisa de BK no escarro é positiva em apenas 25%. Em razão de tais dificuldades, o diagnóstico é estabelecido apenas após a coleta de biópsia de linfonodos, medula óssea ou fígado. Quanto aos abscessos ocultos, usualmente se localizam no abdômen e na pelve. Algumas condições que predispõem sua formação incluem cirrose, esteroides, medicações imunossupressoras, cirurgia recente e diabetes. Os locais mais comuns de abscessos ocultos são o espaço subfrênico, omento, saco de Douglas, pelve e retroperitônio. Outras infecções que podem causar FOI são osteomielite e endocardite bacteriana. Na endocardite, os critérios de Duke apresentam uma especificidade de 99% para o diagnóstico, embora em 2% a 5% dos casos as hemoculturas possam vir negativas, printo de determinado órgão, mais exames devem ser solicitados de acordo com a suspeita clínica. Tuberculose e abscessos A maioria das causas de FOI são doenças comuns, que acometem a população com frequência, mas cuja apresentação clínica se dá de forma atípica. Por exemplo, entre as causas infecciosas mais comuns de FOI, apesar da grande diversidade de patologias, estão abscessos ocultos e tuberculose, sendo esta última a origem mais comum. Entre as apresentações clínicas que escapam da detecção precoce, estão a tuberculose extrapulmonar, a miliar e a tuberculose de pacientes com imunodeficiência ou com história de doença pulmonar preexistente. O teste de PPD (do inglês purified protein derivative) é positivo em menos de 50% dos pacientes, nestes N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 11

INFECTOLOGIA Ponto-chave na investigação sobre a origem da febre, história clínica deve avaliar viagens, contato com animais, presença de imunossupressão, uso de medicações, exposição a produtos tóxicos e questionamento sobre localização de sintomas cipalmente quando os pacientes fizeram uso prévio de antibióticos. Alguns microrganismos que podem levar ao aparecimento de culturas negativas porque necessitam de meios especiais para cultivo, ou apresentam período de incubação mais prolongado, são Coxiella burnetii (febre Q), Tropheryma whipplei, Brucella, Mycoplasma, Chlamydia, Histoplasma, Legionella, Bartonella, Haemophilus spp., Actinobacillus, Cardiobacterium, Eikenella e Kingella. O ecocardiograma transesofágico é positivo em mais de 90% dos casos de endocardite que se apresentam como FOI. Entre as doenças inflamatórias, as duas principais causas por trás de FOI são a doença de Stil do adulto e arterite de células gigantes esta última é responsável por 15% das ocorrências em idosos. A doença de Stil do adulto se caracteriza por febre, artrite e erupções na pele. A arterite de células gigantes se apresenta com cefaleia, déficit visual, sintomas de polimialgia reumática, aumento do VHS (velocidade de hemossedimentação) e claudicação de mandíbula; a biópsia de artéria temporal é sugerida em casos suspeitos. Outras doenças reumáticas causadoras de FOI são a poliarterite nodosa, a arterite de Takayasu, granulomatose de Wegener e crioglobulinemia mista. FEBRE DE ORIGEM INDETERMINADA: PRINCIPAIS VARIÁVEIS» Idade» Crianças um terço das FOI é decorrente de doenças virais autolimitadas» Adultos as causas incluem doenças reumatológicas, vasculites, arterite de células gigantes, polimialgia reumática, sarcoidose, infecções e neoplasias» Lugar de origem as doenças causadoras da FOI variam entre as regiões do mundo» Suscetibilidade do hospedeiro a infecções» Aids as causas de FOI variam de acordo com o grau de imunossupressão» Neutropenia as causas mais comuns de episódios febris são as infecções bacterianas, mas podem também ser decorrentes de infecções fúngicas, medicações e pela própria doença de base Causas neoplásicas As malignidades responsáveis pela FOI incluem leucemias, linfoma, especialmente não Hodgkin, carcinoma de células renais, carcinoma hepatocelular e tumores metastáticos do fígado, mieloma múltiplo e mixoma atrial. Mas vale lembrar que algumas medicações também podem causar febre mediante efeitos alergênicos, reações idiossincráticas ou por afetarem o centro termorregulador. Nesses casos, a eosinofilia e as erupções acompanham o quadro em apenas 25% das vezes, e a ausência desses achados não exclui drogas como causa da febre. A reação tem início geralmente após a introdução da droga, embora existam casos de reações após anos de uso. O diagnóstico é feito por meio de prova terapêutica, com a retirada da medicação e o desaparecimento dos sintomas, que na maioria dos casos se dá nas primeiras 72 horas. Em uma minoria, os sintomas podem demorar semanas para desaparecer. As medicações mais relacionadas a episódios febris são os antimicrobianos (sulfonamidas, penicilina, nitrofurantoína, vacomicina, antimaláricos), anti-histamínicos bloqueadores dos receptores H1 e H2, anticonvulsivantes (barbitúricos e fenitoína), anti-inflamatórios não esteroides (AINEs), anti-hipertensivos (hidralazina e metildopa), anti-arrítmicos (quinidina e procainamida), antitireoidianos e quinino. Causas menos comuns de FOI incluem febre factícia, alteração da termostase, abscesso dentário, hepatite alcoólica e infecções como febre Q, leptospirose, tularemia, entre outras. As principais variáveis associadas com a frequência das doenças causadoras de FOI são descritas no quadro Febre de origem indeterminada, ao lado. Diagnóstico e tratamento Alguns pontos-chave são essenciais na investigação sobre a origem da febre, como a história clínica, que deve incluir investigação de viagens, contato com animais, presença de imunossupressão, uso de medicações, entre elas, antibióticos, exposição a produtos tóxicos e questionamento sobre localização de sintomas. A revisão da história clínica, em diferentes momentos, pode fornecer novas pistas diagnósticas. O grau de febre, a característica, a presença de toxemia e a resposta aos antipiréticos parecem não mostrar tanta especificidade para o diagnóstico, embora sirvam para o estabelecimento de parâmetros de piora ou melhora do doente. 12 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

INFECTOLOGIA Testes laboratoriais adicionais, como o VHS, além dos testes básicos que estabelecem a presença de FOI, são recomendáveis. Um estudo publicado por Zacharski e Kyle entre 263 pacientes com FOI revelou que elevações acima de 100 mm/h apresentavam relação com a presença de malignidade em 58% dos casos. As mais comuns foram linfomas, mieloma, câncer metastático de cólon ou mama. Em 25% dos casos, havia processo infeccioso, como endocardite ou doenças inflamatórias, artrite reumatoide e arterite de células gigantes. O uso do teste VHS tem um papel importante ao revelar doenças potencialmente graves, embora algumas condições de base, como hipersensibilidade a drogas, tromboflebites e doenças renais, possam ser responsáveis pelo aumento da VHS. Os testes laboratoriais recomendados para o diagnóstico da FOI estão no quadro ao lado. A tomografia computadorizada (TC) de tórax e abdômen é um bom exame de imagem para procura de abscessos ocultos e hematomas. A presença de linfonodomegalias abdominais pode sugerir a presença de linfomas ou doenças granulomatosas. Além disso, na TC de tórax é possível identificar pequenos nódulos e adenomegalias em hilo ou mediastino. O uso de testes de medicina nuclear ainda é controverso na literatura. Tais exames são inespecíficos para localização do lugar acometido, daí os especialistas recomendarem como primeira investigação a TC de tórax e abdômen. Na falta de elucidação da causa, são indicados os testes de medicina nuclear de corpo inteiro. A biópsia pode ser uma modalidade útil e os sítios mais utilizados para amostragem são linfonodos, medula óssea e fígado. Segundo artigo publicado por Lambertucci e colegas na Revista da Sociedade Brasileira de Medicina Tropical, em 2005, deve ser feita biópsia de linfonodos sempre que estes estiverem com tamanho aumentado. A de medula óssea também deve ser realizada, mesmo na ausência de alterações do sangue periférico. A biópsia hepática fica reservada apenas para os casos de evidência de doença do fígado. O Doppler de membros inferiores pode ser, ainda, uma boa opção, visto que 2% da trombose venosa profunda é apontada como responsável por 6% dos casos de febre sem diagnóstico. No tratamento, o uso de antimicrobianos e glicocorticoides como tentativa de resolução do quadro pode trazer mais prejuízo do que solução. Tais drogas diminuem o rendimento de culturas e biópsias. Além Testes laboratoriais recomendados no diagnóstico da FOI» Proteína C-reativa» DHL» PPD» Sorologia para o HIV OU pesquisa do vírus em paciente de alto risco» Hemoculturas, caso não tenham sido solicitadas» Fator reumatoide, FAN» CPK» Anticorpos heterófilos» Eletroforese de proteínas séricas» Hemograma completo com diferencial» Hemoculturas: três pares de amostras retiradas de diferentes sítios com intervalo de coleta entre as amostras de algumas horas e sem a administração de antibióticos» Bioquímica, função hepática, urina I e urocultura» Radiografia de tórax, fator antinuclear (FAN), fator reumatoide, sorologia para HIV, hepatites virais e pesquisa de IgM para citomegalovírus (CMV) disso, os antibióticos podem tratar infecções não relacionadas com a causa da FOI. Portanto, o uso de antibioticoterapia empírica não é recomendado somente para tratamento da febre. E a terapia com glicocorticoides não deve substituir a realização de biópsias, uma vez que pode alterar o material no caso de patologias como sarcoidose, doenças granulomatosas e vasculites. Diante desses fatores potencialmente confundidores, o tratamento só deve ser instituído após o estabelecimento do diagnóstico definitivo. Fontes Lambertucci JR, Ávila RL, Voieta I. Febre de origem indeterminada em adultos. Rev Soc Bras Med Tropl. 2005;38(6):507-13. Nunes MPT, et al. Clínica médica: grandes temas na prática. São Paulo: Atheneu; 2010. Mourad O, Palda V, Detsky AS. A comprehensive evidence-based approach to fever of unknown origin. Arch Intern Med. 2003;163:545-51. Petersdorf RG, Beeson PB. Fever of unexplained origin: report on 100 cases. Medicine (Baltimore). 1961;40:1-30. Zacharski LR, Kyle RA. Significance of extreme elevation of erythrocyte sedimentation rate. JAMA. 1967;202:264-6. N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 13

ESPECIAL INOVAÇÃO Chegou a hora de publicar menos e patentear mais O país desenvolveu produção científica e avançou posições no index dos maiores do mundo na pesquisa e publicação de artigos, mas os resultados não atravessaram a fronteira da universidade para o mundo da produção e do mercado de alta tecnologia Po r Silvia Campolim e Tomás Troster Não é de hoje que políticos e lideranças empresariais sabem da importância de produzir conhecimento para enfrentar a competitividade, neste mundo global, pautado economicamente por quem domina novas tecnologias. Mas há uma década, apenas, que se praticam políticas efetivas para a criação de programas de pesquisa e desenvolvimento no setor produtivo, industrial e de serviços no país, lembram Carlos Henrique de Brito Cruz e Hernan Chaimovich, autores do capítulo sobre o Brasil, do recém-divulgado Relatório de Ciência da Unesco, em 2010 1. O documento tem impacto no momento político atual, em que a transferência de tecnologia da universidade para a indústria, nos vários ramos de produção, em particular, no de saúde, tornou-se estratégica para o governo. O país, afinal, tem recursos e massa crítica na universidade, produzindo conhecimento de alto nível em várias áreas. O número de mestres e doutores formados, de cerca de 5 mil em 1987, saltou para quase 50 mil em 2009. O país passou a ocupar o 13º lugar no ranking dos maiores produtores de ciência, medido pela quantidade de artigos publicados (ver gráfico, à página ao lado). Chegou a hora de publicar menos e patentear mais e transferir tecnologias, no caso da pesquisa médica para o bem da saúde da população e também da balança comercial, cada vez mais deficitária (ver texto, à página 31). Entre as medidas concretas que favorecem a decolagem dessa política voltada para o desenvolvimento de P&D na indústria, os autores do relatório da Unesco-2010/Brasil mencionam providências, como a Lei de Inovação, aprovada em 2004 pelo Congresso Nacional. O lançamento, em 2003, da Política Industrial, Tecnológica e de Comércio Exterior (PITCE) estabeleceu áreas prioritárias para as ações de incentivo, entre elas, o desenvolvimento de fármacos, medicamentos, imunobiológicos, vacinas, kits de diagnóstico. A chamada Lei do Bem, de 2005, que incentiva o investimento em P&D na indústria, também faz parte dessa escalada em prol da inovação. No artigo sobre os desafios do desenvolvimento de medicamentos no Brasil 2, o professor 14 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

ESPECIAL INOVAÇÃO do Departamento de Farmacologia da Universidade Federal de Santa Catarina (UFSC), João B. Calixto, menciona a criação do Programa de Apoio ao Desenvolvimento da Cadeia Produtiva Farmacêutica (Profarma) pelo Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social (BNDES), em 2004, e sua renovação e ampliação, como outra providência importante de apoio à inovação na área farmacêutica e de saúde. A criação dos fundos setoriais e o lançamento posterior de inúmeros editais para financiamento de projetos de pesquisa em parceria entre universidades e empresas são outras providências cruciais. O crescimento da economia nesta última década foi responsável pela multiplicação desse elenco de medidas, uma vez que a autonomia financeira do país e a criação de riquezas dependem, de agora em diante, mais do que nunca, da inovação tecnológica, como as lideranças políticas, empresariais e universitárias sabem. Infraestrutura a caminho O ambiente mais favorável à interação entre universidades e empresas para criação, desenvolvimento e transferência de tecnologias, na prática, está em formação. Há obstáculos a serem removidos, gargalos a serem resolvidos, resistências a serem superadas ou vencidas, principalmente quanto à falta de tradição de cooperação entre esses dois importantes setores (ver gráfico, à página 20). Mas há esperança, em construção acelerada, como o Centro de Referência em Farmacologia Pré-Clínica, de Florianópolis, Santa Catarina, dedicado à busca de inovações e à integração entre a indústria e a pesquisa, que terá laboratório certificado para o desenvolvimento de linhagens de roedores SPF sigla do inglês specific pathogen free. O Laboratório Nacional de Biociências, LNBio, em Campinas, é outra solução em fase de consolidação. Trata-se de uma organização social, ou facilidade (do inglês facility), voltada para a prestação de serviços e o desenvolvimento de parceria com a indústria. O LNBio dispõe de recursos para a pesquisa de ponta em medicamentos, como o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS), que permite o estudo da estrutura molecular de proteínas, ou o Laboratório de Modificação de Genoma (LMG), em desenvolvimento, um biotério de Artigos científicos escritos por autores afiliados a instituições brasileiras, 1992 2008 Número de artigos % científicos Mundo 1992 4.301 0,8 1994 4.363 0,8 1996 5.723 0,9 1998 7.860 1,2 2000 10.521 1,5 2002 12.573 1,7 2004 15.436 1,9 2006 18.473 2,1 2008 26.482 2,7 Fonte: Thomson Reuters (Scientific) Inc. Web of Science. UNESCO Science Report 2010 roedores knock-out para servir de modelo de doenças, entre outros. O compromisso de pesquisadores com essa causa, da transferência de tecnologia do laboratório para a prática clínica, é condição sine qua non para que a operação de transferência deslanche. Atores dispostos a correr o risco de empreender fazem diferença nesse processo. O químico especializado em biologia molecular João Bosco Pesquero é um exemplo construtivo nesse sentido. Ele criou o primeiro biotério de roedores knock-in do país, o Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais (Cedeme), da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), e acabou de montar a Helixxa, a primeira empresa da América Latina de prestação de serviços em análises de DNA e RNA, baseada em plataformas de última geração, para investigação de SNPs, do inglês Single Nucleotide Polymorphisms, e sequenciamento genético e detecção de doenças autoimunes, erros inatos do metabolismo, oncogenes ligados à formação de tumores, de mama, gástrico, de útero, entre outros (ver página 20). Os alunos altamente qualificados que temos aqui, no Brasil, dentro das universidades, precisam empreender mais. O país tem uma demanda muito grande, reprimida, em muitas áreas, tanto que a nossa empresa está indo às mil maravilhas, porque não existe nada nessa área, diz Pesquero, empolgado com as iniciativas possíveis e em verdadeira cruzada de convencimento. Em todo lugar que vou dar palestras, na UERJ [Universidade do Estado do Rio de Janeiro], na Unicamp [Universidade Estadual de Campinas], no interior de São Paulo, falo sobre isso. Como coordenador de área na FAPESP [Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo], eu insisto, precisamos incentivar os pesquisadores a empreender, dentro e fora da universidade, em parceria com empresas do setor de saúde, do contrário nunca seremos competitivos. Fontes 1. Unesco Science Report, 2010. The Current Status of Science around the World. Disponível em: http://www. unesco.org/science/psd/publications/ science_report2010.shtml 2. Calixto JB, Siqueira Jr JM. Desenvolvimento de medicamentos no Brasil: desafios, Gazeta Médica da Bahia, 2008;78 (Supl 1):98-106. N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 15

ESPECIAL INOVAÇÃO Abrindo a O roteiro da inovação no setor de saúde inclui a construção de biotérios, infraestrutura de laboratórios certificados por boas práticas de pesquisa e iniciativas empreendedoras de pesquisadores bem-sucedidos na academia Po r Silvia Campolim e Tomás Troster OBrasil ocupa posição de destaque no mercado mundial de medicamentos. É o nono colocado, com movimento estimado em 12 bilhões de dólares, só em medicamentos, segundo o instituto especializado em estatísticas do setor, o IMSHealth. Como o país ainda importa grande parte dos insumos para o setor e com as drogas biológicas que o Sistema Único de Saúde (SUS) consome, por não dominar essas tecnologias, acaba amargando déficit na balança comercial de saúde de quase 8 bilhões de dólares. Comparado a um país de industrialização recente como a Coreia do Sul, a fragilidade tecnológica brasileira é apreviável, lembra Carlos Morel, diretor do Centro de Desenvolvimento Tecnológico em Saúde (CDTS), em fase final de construção no campus da Fundação Oswaldo Cruz (Fiocruz) em Manguinhos (Rio de Janeiro). O objetivo principal do CDTS será combater esse Vale da Morte, declarou ele, em entrevista recente à revista FACTO 1, da Associação Brasileira das Indústrias de Química Fina, Biotecnologias e suas Especialidades (ABIFINA), referindo-se à dificuldade do país de transformar conhecimento em produto e levar para o leito do paciente uma descoberta originada em bancada de laboratório. A comparação com a Coreia do Sul permite entender melhor o problema. Enquanto os coreanos têm quase 100 mil cientistas e engenheiros produzindo inovação na indústria, o Brasil tem menos de 29 mil. A baixa quantidade de C&E na indústria brasileira afeta o potencial competitivo das empresas e reduz a capacidade do país em transformar ciência em tecnologia e em riqueza, escreve Brito e colaboradores 2,3, o mesmo autor do relatório de ciência da Unesco-2010, citado nas páginas anteriores, sobre o Brasil. Os artigos informam, baseados em dados de 2000 em diante, que 73% dos cientistas e engenheiros brasileiros trabalham para instituições de ensino superior, como docentes, em regime de dedicação exclusi- 16 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

ESPECIAL INOVAÇÃO va, enquanto apenas 23% trabalham para empresas. Em todo o mundo, o lugar privilegiado da inovação é a empresa, escreve Brito. E isso tem razão de ser, completa. A transformação do conhecimento em produto de prateleira não é tarefa para a universidade, obviamente. Mas, por incrível que pareça, falta pessoal técnico para ocupar esse espaço, diz o farmacologista João Batista Calixto, responsável pela implantação do Centro de Referência em Farmacologia Pré-Clínica, no Sapiens Parque em Florianópolis (SC), um projeto previsto para ser inaugurado em 2012, que terá de 60 a 80 pesquisadores e 13 empresas incubadas, voltado para as parcerias público-privadas em pesquisa e desenvolvimento de fármacos e medicamentos. Pesquisador nível IA do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico (CNPq), membro da Academia Brasileira de Ciências, Calixto é referência no desenvolvimento de parcerias com a indústria no país. Já desenvolveu 40 projetos com indústrias farmacêuticas nacionais e internacionais e tem N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 17

ESPECIAL INOVAÇÃO em seu currículo o registro de 18 patentes, além do desenvolvimento de produtos que foram para o mercado, como o anti-inflamatório Acheflan, do Aché. Falta pessoal técnico, porque os doutores são clones de seus orientadores e estes não estão voltados para o desenvolvimento de tecnologia, ele declarou à Pesquisa Médica, na véspera de uma viagem aos Estados Unidos, onde visitaria um centro de pesquisa semelhante ao seu e assinaria convênio de intercâmbio de pesquisadores. Vamos mandar gente pra lá, fazer treinamento, ele disse. O centro de referência terá laboratório certificado para o desenvolvimento de linhagens de roedores SPF sigla do inglês specific pathogen free inicialmente roedores (ratos e camundongos), e também canil próprio de criação de cães beagles para ensaios de toxicologia. O gargalo dos biotérios A infraestrutura de biotérios é indispensável à pesquisa de fármacos e medicamentos e se constitui em um dos gargalos que as políticas atuais de incentivo tentam eliminar. Não existem biotérios privados, no país, por falta de demanda. Cada grupo de pesquisa faz o seu, nas universidades. Resta ao governo financiar a expansão e oferecer às empresas a prestação de serviço. A iniciativa de desenvolvimento de um laboratório de modificação do genoma no Laboratório Nacional de Biociências, em Campinas, com o estatuto de uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), atende a essa proposta atual de agregar valor à pesquisa biológica, sem burocracias como licitações, e contribuir para a transferência de tecnologia à indústria. Em outros países, as técnicas de modificação do genoma estão muito bem estabelecidas. Com elas, é possível produzir animais transgênicos e estudar modelos de doenças, reproduzindo em camundongos a mesma mutação que ocorre em seres humanos, explica o pesquisador encarregado de criar e manter o biotério de transgênicos do LNBio, José Xavier Neto, que vem de experiências de trabalho anteriores no biotério da Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo (FMUSP) e do Instituto do Coração (InCor) do Hospital das Clínicas da mesma instituição, onde estudou a produção dos transgênicos. Esse procedimento já foi bastante utilizado para compreender doenças cardíacas. Uma vez identificado no corpo humano o nucleotídeo alterado por determinada doença genética, é possível trazer essa mutação para um camundongo, fazendo com que ele expresse a proteína defeituosa e sirva de modelo para o estudo da doença, diz o pesquisador. Demanda reprimida O LNBio pretende produzir e fornecer animais gratuitamente para pesquisadores do Brasil e da América Latina e realizar parcerias com o setor privado, que possam estimular o desenvolvimento tecnológico nacional. Segundo dados coletados na plataforma Lattes, 1.200 pessoas, relacionadas a um universo potencial de seis mil pesquisadores, que investigam temas adjacentes, estão trabalhando com animais transgênicos no Brasil. Além disso, Xavier estima que 642 empresas podem se beneficiar de estudos com animais transgênicos fornecedores de material odontológico, equipamentos médicos, hospitalares e laboratoriais (372), empresas relacionadas à medicina veterinária (101) e empresas farmoquímicas e de biotecnologia (169). A produção dos camundongos transgênicos seguirá as principais técnicas de manipulação genética utilizadas mundialmente: o método clássico de injeção do DNA selecionado no prónúcleo, por quimera e lentivírus. O método clássico tem eficiência máxima de 21% em geral, sua eficácia oscila entre 8% e 10%, explica Xavier. Mas o tempo necessário para desenvolver animais a partir dele é menor, em relação aos demais. Quimeras são animais criados para estudar a influência de um determinado gene. São os chamados camundongos knock-out (com um gene inativado) e knock-in (com algum gene acrescentado substituindo um original). Para entender a função de um determinado gene, não existe melhor experimento do que anular esse gene, observa o pesquisador. O lentivírus é um vírus da família do HIV, modificado para servir de vetor de um determinado DNA. A vantagem do lentivírus é a região em que atua. Basta inseri-lo no espaço que envolve o embrião. Não é preciso injetá-lo no pró-núcleo do embrião, comenta Xavier, destacando a alta eficiência do lentivírus. Xavier Neto ressalta que embora esses procedimentos sejam quase rotina em outros países, no Brasil eles ainda não ocorrem de forma regular. A pesquisa nacional acabou se resignando a não 18 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011

ESPECIAL INOVAÇÃO Desafios para inovação em P&D Transformar as melhores universidades brasileiras em centros de excelência de nível internacional e incentivar a produção científica de qualidade para além de São Paulo, Rio de Janeiro e demais centros urbanos do sul e sudeste, até regiões menos privilegiadas do norte, nordeste e Amazônia estão entre os principais desafios das políticas atuais de inovação Contribuição do Estado de São Paulo para o Investimento em P&D. (US$ bi PPC) 20.259 Artigos científicos publicados pelas principais universidades brasileiras Universidade 2000 2003 2006 2009 Universidade de São Paulo (USP) 2.762 3.888 6.068 7.739 9.205 5.346 Universidade do Estado de São Paulo (UNESP) 772 1.104 2.065 2.782 Universidade Estadual de Campinas (Unicamp) 1.190 1.498 2.386 2.582 Universidade Federal do Rio de Janeiro (UFRJ) 1.080 1.253 1.778 2.357 Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) 557 792 1.374 1.797 Universidade Federal de Minas Gerais (UFMG) 597 810 1.392 1.685 Universidade Federal de São Paulo (Unifesp) 433 659 1.251 1.561 2.659 Brasil Estado de México Argentina Chile São Paulo Fonte: FAPESP Indicadores de CT&I em SP e Brasil 2010; para outros países: RICYT database, junho 2010. 1.233 Total das sete universidades acima 7.391 10.004 16.314 20.503 Total Brasil 11.978 15.125 23.061 34.172 Participação das sete universidades acima (%) 62% 66% 71% 60% Fonte: SCOPUS, search restricted to articles, notes and reviews, August 2010. UNESCO Science Report 2010. fazer uso desses animais, por serem difíceis de obter. Eram importados, morriam na burocracia da alfândega, devido à lentidão dos trâmites para liberação. Os pesquisadores se acostumaram a utilizar células in vitro, pois eram mais acessíveis e rápidas de trabalhar, comparativamente. Habituados a esse tipo de estudo, acabaram esquecendo que poderiam usar animais transgênicos e agregar maior valor à sua pesquisa. Infraestrutura para estudos moleculares O termo Laboratório Nacional, embutido na sigla LNBio, não está ali por fantasia. Traduz o conceito de laboratório aberto para usuários do país inteiro, com instrumental e pessoal altamente sofisticado para estimular o desenvolvimento de pesquisa e tecnologia para a indústria. Esta é a razão de ser do LNBio, que foi criado em dezembro de 2009, formalmente, mas já operava há dez anos dentro do Centro de Biologia Molecular e Estrutural (CeBiMe), em Campinas (SP), que treinou dezenas de pesquisadores em biologia estrutural, na última década. Hoje, ele faz parte do Centro Nacional de Pesquisa em Energia de Materiais (CNPEM), junto com o Laboratório Nacional de Luz Síncrotron (LNLS) e o Laboratório Nacional de Ciência e Tecnologia do Bioetanol (CTBE). Cada um tem suas próprias linhas de pesquisa. O LNLS, por ser uma facility, trabalha de acordo com a demanda dos usuários. A área de biotecnologia, por exemplo, tem duas linhas do LNLS, a MX1 e a MX2, utilizadas para análise de cristais de proteínas, obtidos da cristalização por ressonância magnética. São estudos que baseiam provas de conceito de funcionamento de uma nova molécula, como os realizados pelo pesquisador Kleber Franchini, que conseguiu demonstrar os mecanismos de ação de seu objeto de estudo, inibidores da enzima adenosina kinase (AK), na insuficiência cardíaca. O médico já patenteou a molécula capaz de inibir a ação dessa enzima, que em condições adversas, como, por exemplo, inflamação, estimula a proliferação das células do músculo liso, levando à hipertrofia do coração, típica da insuficiência cardíaca. Pense num sistema hidráulico. O coração funciona como uma bomba, conectada a um sistema de vasos elásticos, por meio da aorta. A cada minuto cinco litros de sangue são bombeados pelo cora- N o 17 Jan/Mar 2011 PESQUISA MÉDICA 19

ESPECIAL INOVAÇÃO Distribuição de pesquisadores, em equivalência de tempo integral, por setor institucional 2008 Realização de P&D 100% Empresas Governo Universidade 80% 60% 40% 20% 0% China Coreia do Sul Japão Alemanha França Reino Unido EUA Canadá Brasil Fontes: (i) OECD Main Science and Technology Indicators, Volume 2009 Issue 2. (ii) Ministério da Ciência e Tecnologia: http://www.mct.gov.br/index.php/content/view/73236.html. Acesso em 30 de novembro de 2010. Elaboração própria. http://ifile.it/sxjaw5q/mainscitechnind09is2.rar ção nesse sistema hidráulico. Evidentemente, lá na ponta encontra uma certa resistência. A hipertensão arterial é uma doença que causa aumento nessa resistência. Não é uma doença do coração. Franchini terá apoio da indústria para avançar nas pesquisas de viabilidade e estudos pré-clínicos. Do laboratório à prática clínica A proposta de parceria do laboratório nacional para as empresas prevê várias modalidades, inclusive o investimento em novos equipamentos. A biologia estrutural é o denominador comum das pesquisas realizadas. Entre os programas próprios do LNBio se destacam as linhas de pesquisa em doenças cardiovasculares, câncer, doenças negligenciadas, plantas e microrganismos. Mas as instalações estão disponíveis para quem tiver um projeto bem estruturado e souber utilizar as plataformas tecnológicas oferecidas. O usuário acadêmico não paga, mas deve mencionar em sua publicação que utilizou o laboratório, lembra o diretor-geral do LNBio. ESPÍRITO EMPREENDEDOR A flexibilização da lei de inovação para que os pesquisadores possam empreender no setor privado sem perder o vínculo com a pesquisa acadêmica poderia contribuir para acelerar o avanço tecnológico brasileiro O cientista João Bosco Pesquero, sócio-proprietário da primeira empresa de serviços genômicos do país e da América Latina, a Helixxa, criada há três meses em Campinas (detalhes mais adiante), acha que o governo incentivaria ainda mais o empreendedorismo com essa flexibilidade. Pesquero foi responsável pela criação do biotério da Universidade Federal de São Paulo (Unifesp), na década de 1990, o Centro de Desenvolvimento de Modelos Experimentais (Cedeme), primeiro do país a produzir um camundongo transgênico knock-in. Vivenciou os percalços que a pesquisa acadêmica enfrenta no dia a dia com a falta de insumos, reagentes, problemas com a alfândega, financiamento descontínuo. Reuniu experiência e coragem e aproveitou a onda favorável do momento atual para fundar a Helixxa. O pesquisador tem medo de largar o ganha-pão e, de repente, não dar certo no mercado, fica inseguro de empreender, e o país perde com isso, ele diz. A iniciativa foi planejada com a ajuda de investidores angels, como se diz em inglês quando o dinheiro vem de familiares e amigos, sem verba de start-up o termo usado para empresas que estão começando no ramo de tecnologia, que recebem apoio de investidores ou do governo. Pesquero e o sócio, o administrador de empresas Ma- 20 PESQUISA MÉDICA N o 17 Jan/Mar 2011