Ensino Religioso e Neutralidade Religiosa: conciliação sem favoritismo



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Transcrição:

Ensino Religioso e Neutralidade Religiosa: conciliação sem favoritismo Paulo Ricardo Rocha Caproni (2014) Contém nota pedagógica A identidade religiosa do povo brasileiro é multifacetada, fruto de influências de diferentes culturas ao longo de sua formação, como a africana, europeia e ameríndia. Visto que cada religião carrega um conjunto de doutrinas e costumes, seria de se esperar que em determinados momentos houvesse conflitos entre suas ideias. Esses conflitos se dão nos núcleos mais fundamentais da sociedade, como a família, e também atingem núcleos mais complexos, como o governo. O contexto escolar não é diferente: nele convivem crianças, pais, professores e funcionários com diferentes crenças religiosas, e a convivência entre essas pessoas muitas vezes traz conflitos que evidenciam a necessidade de leis para saber como lidar com eles. Os parágrafos a seguir são um exemplo de como a legislação brasileira trata o tema da educação religiosa nas escolas públicas do País. A Constituição Federal de 1988 diz o seguinte: Capítulo III - Da Educação, da Cultura e do Desporto Seção I - Da Educação Art. 210. Serão fixados conteúdos mínimos para o ensino fundamental, de maneira a assegurar formação básica comum e respeito aos valores culturais e artísticos, nacionais e regionais. 1º O ensino religioso, de matrícula facultativa, constituirá disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental. A Lei nº 9.475, de 22 de julho de 1997, por sua vez, dá nova redação ao artigo 33 da Lei nº 9.394, de 20 de dezembro de 1996, que estabelece as diretrizes e bases da educação nacional:

Art. 1º O art. 33 da Lei n 9.394, de 20 de dezembro de 1996, passa a vigorar com a seguinte redação: Art. 33. O ensino religioso, de matrícula facultativa, é parte integrante da formação básica do cidadão e constitui disciplina dos horários normais das escolas públicas de ensino fundamental, assegurado o respeito à diversidade cultural religiosa do Brasil, vedadas quaisquer formas de proselitismo. 1º Os sistemas de ensino regulamentarão os procedimentos para a definição dos conteúdos do ensino religioso e estabelecerão as normas para a habilitação e admissão dos professores. 2º Os sistemas de ensino ouvirão entidade civil, constituída pelas diferentes denominações religiosas, para a definição dos conteúdos do ensino religioso. E é nesse contexto que surgem, em todo o País, situações delicadas relacionadas ao ensino religioso, como a enfrentada pelos alunos da escola Caminho de Sol, bem como por seus pais e professores. A escola pública Caminho de Sol está situada em uma cidade satélite do Distrito Federal. O novo quadro de professores da escola não conta mais com José Maria, professor de Educação Cristã, que lecionava no primeiro horário, às terças e quintas-feiras, desde a fundação da escola, em 1992. A mudança foi aprovada pelo conselho diretor da escola em meados de 2013, para vigorar a partir do primeiro semestre de 2014. A razão da remoção do professor José Maria e da matéria Educação Cristã do currículo da escola pública Caminho de Sol era a crescente insatisfação de alguns pais ateístas, agnósticos e muçulmanos com a obrigatoriedade da presença de seus filhos nas aulas de Educação Cristã. Tal obrigatoriedade é, como afirmaram eles, inconstitucional e o fato de tais aulas ocorrerem dentro da grade horária normal (que, por sua vez, é determinado pela Constituição) configura uma perda de tempo para o futuro acadêmico das crianças, já que o ensino religioso está fora dos editais de exames vestibulares das universidades públicas e do Enem. Os primeiros atritos entre a direção da escola e esse grupo de pais começaram a ocorrer em 2013, no início do mês de julho, às vésperas da visita do Papa Francisco ao Rio de Janeiro¹. Os pais foram informados pelos alunos de que a escola estaria promovendo o evento católico denominado Jornada Mundial da Juventude com cartazes fixados nos 1 http://www1.folha.uol.com.br/especial/2013/opapanobrasil/ 2

Para mais casos: http: //casoteca.enap.gov.br corredores e em salas de aula, palestras promovidas por clérigos em horário de aula e orações realizadas por alguns professores no início de cada dia letivo, pedindo pelo sucesso do evento. Imagem de divulgação da Jornada Mundial da Juventude Do debate sobre a legitimidade dessas ações promovidas pela escola, surgiu uma nova discussão a respeito do ensino religioso em escolas públicas. Uma vez finda a visita do Papa e o evento da Jornada Mundial da Juventude, o foco das críticas feitas à escola foi sua suposta falta de neutralidade religiosa. O debate foi reforçado semana após semana, à medida que mais pais se juntavam ao grupo de ateus, agnósticos e muçulmanos que protestavam com cartazes na frente dos portões da escola e por meio de ligações telefônicas e reuniões oficiais com a diretoria. Esse grupo, entretanto, sofreu uma cisão logo no final de agosto, porque as reivindicações dos muçulmanos envolviam a criação de mais uma matéria, denominada Educação Islâmica, enquanto os ateus e agnósticos defendiam a eliminação de qualquer matéria de ensino religioso. A diretoria, pressionada, reconheceu em outubro a inconstitucionalidade da obrigatoriedade do ensino religioso e passou a liberar os alunos que não quisessem assistir às aulas do professor José Maria. Os alunos que não quiserem assistir à aula de religião devem ficar no pátio, jogando bola, descansando ou estudando até o final da aula, afirmou Fátima, a diretora-chefe, em reunião com os pais. Como assim, minha senhora? bradou um dos pais, indignado, e continuou: Então meu filho vai poder faltar às aulas de religião, mas não vai poder faltar às aulas de Matemática, se ele quiser? Que mensagem você acha que isso passa para as crianças? Que religião é coisa secundária, que não é um assunto tão importante quanto os outros. Ou você acha que se vocês dessem a opção para elas de faltarem aula de qualquer matéria, elas não iam adorar?. 3

Aproveitando o ensejo, uma das mães também se expressou: E como é que você acha que as crianças dentro de sala vão conseguir ficar motivadas sabendo que os amiguinhos delas estão jogando bola, enquanto elas estão tendo aula? Elas vão começar a odiar as aulas de religião!. Outra mãe disse: Também não concordo com essa alternativa, não. Horário de aula é horário de aula. Vocês têm é que arranjar um professor para dar aula de outra coisa para aqueles que não vão assistir à aula de religião. E essa escolha nem deve ser dos meninos, não, tem de ser dos pais mesmo, por escrito. Vai deixar a criançada escolher se quer assistir aula? Coisa mais ridícula. Um pai muçulmano concordou: Essas crianças têm de aprender disciplina fora de casa também. Não têm maturidade para escolher o que aprender ainda. E acho um absurdo que a única alternativa que a escola ofereça seja um tempo livre, em vez de oferecer um ensino islâmico para os filhos de muçulmanos. Fátima, acuada, percebeu as dificuldades levantadas pelos pais, ouviu mais alguns comentários e encerrou a reunião. Como previsto pelos pais, o efeito da liberação dos alunos das aulas de ensino religioso foi a insatisfação dos próprios alunos, cujos pais queriam que eles frequentassem as aulas. Desanimados e desejosos de terem mais tempo livre, os poucos alunos que restaram nas aulas de José as transformavam em uma verdadeira algazarra. Os pais cristãos (católicos e evangélicos, que compunham cerca de 90% do total de pais) continuaram reclamando da decisão da diretoria de permitir que os alunos ausentes tivessem mais tempo de recesso que seus filhos. A essa altura, já havia, portanto, três grupos de pais contra a diretoria da escola, e cada grupo tinha um interesse diferente. O número de pais cristãos era condizente com as estatísticas do IBGE 2, que afirma que 86,8% dos brasileiros professam uma fé cristã, sendo 64,6% deles católicos e 22,2% evangélicos. O senso, realizado em 2010, apontou também que o crescimento dos evangélicos superou, em grande proporção, o crescimento dos que não professam nenhuma religião. Entre os não 2 http://veja.abril.com.br/blog/reinaldo/geral/o-ibge-e-a-religiao-%e2%80%93- cristaos-sao-868-do-brasil-catolicos-caem-para-646-evangelicos-ja-sao-222/ - Acesso em 29/07/14. 4

Para mais casos: http: //casoteca.enap.gov.br cristãos (13,2% do total de entrevistados), mais de dois terços declararam não ter nenhuma religião. O terço restante é composto por espíritas e membros da umbanda, candomblé, muçulmanos, testemunhas de Jeová, entre outras religiões. A decisão de exonerar José Maria veio em dezembro do mesmo ano. Houve uma proposta de se contratar um professor muçulmano para dar início à matéria de Educação Islâmica, mas não foram encontrados, dentro da rede pública, professores capazes de oferecer essa disciplina. Na tentativa de se evitar qualquer aparência de favoritismo e de resolver os problemas com o horário livre dos alunos faltantes, a diretoria optou por não promover nenhum ensino religioso, satisfazendo o grupo de ateístas e agnósticos, mas agravando o conflito com o grupo muçulmano e cristão. Uma nova reunião foi marcada com os pais cristãos e muçulmanos. Às três da tarde, a sala estava tão cheia quanto na reunião anterior, embora nenhum pai ateu ou agnóstico estivesse presente. Mal entrou na sala, Fátima ouviu um dos pais dizendo: Olha aí, chegou o capeta de saia!. Fingindo não ter escutado, ela se sentou e deu início à reunião, logo percebendo que o grupo de ateus e agnósticos, que tanto a elogiou pela exclusão da matéria de ensino religioso, não estava presente para apoiála. Os pais presentes, mais exaltados que da primeira vez, iniciaram uma gritaria, cheios de indignação, dizendo: Você não quer nem saber se metade da sua escola é crente, né? Filho de ateu é filho de advogado, empresário, gente importante. Filho de crente é filho de pobre. Minha filha está me perguntando por que é que o professor José não vem 5

mais. Agora ela fica me pedindo a noite inteira para eu ensinar a Bíblia para ela, porque o professor foi embora. Eu trabalho o dia todo. Não tenho tempo para ensinar criança, não, minha filha!. Olha, eu nem sei por que a senhora marcou essa reunião junto com os pais católicos e evangélicos. Eu sou muçulmano, se a senhora ainda não aprendeu. Não estou nem aí se o José Maria veio ou deixou de vir. O que eu tenho pedido há muito tempo é que a senhora dê opções para nossos filhos que não são cristãos. E o que é que a senhora fez até agora? Nada! Aliás, fez sim: deixou a criançada com menos opção ainda. Meus parabéns!. A diretora não aguentou a pressão e gritou Eu só exijo um mínimo de respeito!, e deixou a sala. Enquanto isso, uma confusão se iniciou entre os pais muçulmanos e os cristãos, com gritarias e insultos. Os muçulmanos se retiraram, e os pais que permaneceram fizeram um abaixo-assinado pedindo a remoção de Fátima do seu cargo. Esses últimos também passaram a criticar o ensino do darwinismo 3 e não do criacionismo nas aulas de ciências naturais, alegando, também, que a desvalorização da linha teórica criacionista era uma ação inconstitucional. Esse drama trouxe consigo alguns motivos de consideração: Visto que a maioria dos pais da escola Caminho de Sol são cristãos, a decisão de se retirar a matéria de Ensino Cristão do currículo da escola foi a melhor? Seria realmente possível estudar as diferentes religiões, valorizando, assim, a diversidade em termos de fé? Seria possível remover as aulas de ensino religioso, sem que isso representasse uma desvalorização das religiões? E, ao contrário, seria possível promover aulas de ensino religioso, sem que isso representasse uma desvalorização das posições agnósticas e ateístas? Seria possível ensinar mais de uma linha teórica dentro das ciências naturais (ex.: teoria do design inteligente 4 e darwinismo)? Caso seja possível, como garantir que o ensino de duas teorias diferentes e divergentes seja promovido com o máximo de competência? 3 O Darwinismo é a corrente teórica que explica a origem dos seres humanos como tendo os mesmos ancestrais que os primatas de hoje; enquanto o Criacionismo defende que o primeiro homem não foi fruto de um processo evolutivo, mas foi criado por Deus, maduro e com racionalidade semelhante à do criador. 4 Teoria científica que pressupõe a ação de um criador inteligente do universo, justificando assim a complexidade da vida. 6