O ATUAL PAPEL DO MUNICÍPIO NO FEDERALISMO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA



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Transcrição:

Daniel Abreu de Azevedo Universidade Federal do Rio de Janeiro UFRJ dangeo@ig.com.br O ATUAL PAPEL DO MUNICÍPIO NO FEDERALISMO BRASILEIRO: UMA ANÁLISE COMPARATIVA Este trabalho tem como objetivo compreender o papel que o município possui no federalismo brasileiro, inserindo-se dentro de um propósito maior a produção de uma dissertação de mestrado em Geografia na Universidade Federal do Rio de Janeiro. Cabe ressaltar que ao final de 2011, proponho defender a dissertação intitulada Emancipação Municipal e o Exercício da Democracia no Brasil e, por isso, a discussão do papel do município como escala de gestão política será fundamental. Todavia, nesse ponto, cabe uma pergunta: qual a importância, para a Geografia, de analisar o município na política brasileira? Acreditamos que um trabalho sobre os municípios no Brasil seja de vital importância para a Geografia Política, pois a partir da promulgação da Constituição de 1988, o município torna-se um espaço político por excelência (CASTRO, 2003) e, por essa razão, cremos justificar o caráter dessa atual pesquisa, pois o poder público que se ancora nos níveis locais de administração do Estado deve ser entendido como um verdadeiro agente modelador do espaço (RODRIGUES, 2004, p.7). Almeida (2005) destaca ainda que, no Brasil, os municípios são executores e gestores de uma política definida no plano federal. Castro (2005) nos lembra, ainda, que é no município que todos habitamos e exercemos nossos direitos e deveres da cidadania, onde buscamos os serviços a que temos direitos como cidadãos, onde votamos e candidatos são votados; também é nele que são concretizadas as políticas públicas. Portanto, a importância do município no Brasil é significativa, a partir do momento que ele é também o lugar do aprendizado da cidadania e da democracia do exercício do direito político e do acesso às políticas publicas (CASTRO, 2005, p.136). A autora ainda destaca que a Geografia Política deve resgatar o estudo sobre o município como conteúdo e não apenas como continente, pois um novo olhar permitirá perceber melhor, através do município, tanto as diferenças territoriais e sociais no país como algumas das suas causas, obscurecidas em um debate que teima em não ver o espaço mais banal e mais fundamental da nossa sociedade (op cit, p.137). Mas, a 1 1

importância municipal é uma excepcionalidade brasileira, ou melhor dizendo, do federalismo brasileiro. Em Federalismo: uma introdução, George Anderson (2009) afirma que quarenta por centro da população mundial vive em federações. Os 28 países que adotam o sistema federativo são incrivelmente diversificados, incluindo, tanto a nação mais rica do mundo, os EUA, quanto minúsculos Estados insulares, como a Micronésia e Saint Kitts e Nevis. Seis dos 10 países mais populosos e oito dos 10 de maior extensão territorial são federações (op.cit. p.10). Percebemos, com isso, que o federalismo tem-se tornado cada vez mais importante, assim como o entendimento de suas origens, fundamentos e características. Entender como o federalismo se estrutura, é compreender a maneira pela qual o poder está dividido em um país e, conseqüentemente, os conflitos de interesses entre os entes federativos e suas conseqüências. Dessa maneira, o pacto federativo é um formato político institucional que tem como objetivo a difícil tarefa de preservar a diversidade, unificando e conciliando objetivos, muitas vezes opostos. No Brasil, compreender o federalismo, significa entender os papéis desempenhados pelo Governo Federal, o Distrito Federal, os estados e também os municípios. MUNICÍPIO BRASILEIRO: ENTE DA FEDERAÇÃO OU ENTE FEDERATIVO? Andrada (2003), em seu livro O Município na federação brasileira: uma proposta, levanta a questão se o município pode ser considerado um ente federativo ou um ente da federação. Sem dúvida, esse questionamento é relevante, a partir do momento que essa discussão é colocada como pronta em diversos trabalhos acadêmicos. Para citar como exemplo, Rodrigues (2004) e Cigolini (2003), afirmam que o município é aqui, no Brasil, um ator político importante, diferente de qualquer outra federação no mundo, pois, a partir da Constituição de 1988, ele se tornou em ente federativo. Outros autores como Selcher, Leme, Souza, Mello (apud ALMEIDA, 2005, p.32), dizem que a federação foi redesenhada em benefícios dos estados e, sobretudo, dos municípios transformados em entes federativos. 2 2

Portanto, percebemos que devemos nos questionar a respeito dessa suposta veracidade de considerar o município como ente federativo. Essa discussão gira em torno, claramente, da própria definição do que é o federalismo. Para George Anderson (2009, p.20), se existe um elemento essencial ao federalismo, este vem a ser a presença de duas ordens de governo constitucionalmente instituídas, cada qual dotada de genuína autonomia uma em relação à outra e responsáveis perante os respectivos eleitores. Nesse sentido, nos perguntamos: será que a Constituição brasileira de 1988 coloca nosso país como um caso singular no mundo, pois, de acordo com o artigo 1, a República Federativa é formada pela união indissolúvel dos Estados, Municípios e do Distrito Federal (BRASIL, 1988)? Ou seja, o Brasil, portanto, possui três unidades federativas (União, Estados e Municípios)? Acreditamos que não. Para nós, os municípios não funcionam como entes federativos completos, mas como entes federativos híbridos. O federalismo, na visão de Paulo Lopo Saraiva (1982), tem por escopo a união de realidades desiguais e, para tanto, assenta-se em dois princípios nucleares : autonomia e participação. Sem os dois pressupostos metodológicos, ele considera que seria impossível a dinâmica federalista, pois haveria regressão ao unitarismo. Nesse sentido que existe o Senado, ou seja, para servir como participação dos Estados na União. Mas, e os municípios? Qual seria o órgão para representá-lo? Nenhum. Trata-se, portanto, de uma autonomia limitada e sem a participação no pacto federativo. José Nilo de Castro (2006) ainda levanta o artigo 60 da Constituição para defender a idéia de que o município é um ente da federação e não um ente federativo. Esse artigo confere a possibilidade de intervenção do Estado-membro nos municípios, e, para ele, se o município fosse um ente federativo, quem iria intervir nele não seria o Estado-membro, mas a União. Portanto, claramente, a particularidade da federação brasileira está na autonomia municipal, em relação, inclusive, à questão fiscal. Affonso (2000) mostra como essa autonomia cedida pela Constituição aos municípios gerou uma verdadeira guerra entre eles. Este autor defende ainda a idéia que essa maior autonomia gerou uma crise na federação brasileira, a partir das disputas entre estados e municípios para a instalação de indústrias em seus territórios, como mostra Schäffer (2000) no estado do Rio Grande do Sul na década de 90. 3 3

Almeida (2005) ainda distingue dois tipos de federalismo: o federalismo centralizado e o federalismo cooperativo. Aquele consistiria em um governo nacional com grande envolvimento nos assuntos subnacionais, transformando estados e municípios quase em agentes administrativos do governo central; enquanto o federalismo cooperativo, como é o caso do Brasil, é caracterizado por formas de ação conjunta entre esferas de governo, em que as unidades subnacionais mantêm significativa autonomia decisória e capacidade de autofinanciamento (op cit, p.31). Nesse sentido, o município aparece como também uma entidade nesse federalismo, pois possui autonomia para tomar decisões e, também, capacidade fiscal, como o IPTU principal imposto municipal. Por fim, a Constituição de 1988 ampliou as atribuições dos municípios, conferindo-lhes novos deveres e direitos. Abrúcio (1998) destaca que houve um esvaziamento de obrigações dos estados, e uma sobrecarga nos municípios. Em nossa Constituição, podemos destacar diversas competências municipais, como I - legislar sobre assuntos de interesse local; II - suplementar a legislação federal e a estadual no que couber; III - instituir e arrecadar os tributos de sua competência, bem como aplicar suas rendas, sem prejuízo da obrigatoriedade de prestar contas e publicar balancetes nos prazos fixados em lei; IV - criar, organizar e suprimir Distritos, observada a legislação estadual; V - organizar e prestar, diretamente ou sob regime de concessão ou permissão, os serviços públicos de interesse local, incluído o de transporte coletivo, que tem caráter essencial; VI - manter, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, programas de educação infantil e de ensino fundamental; VII - prestar, com a cooperação técnica e financeira da União e do Estado, serviços de atendimento à saúde da população; VIII - promover, no que couber, adequado ordenamento territorial, mediante planejamento e controle do uso, do parcelamento e da ocupação do solo urbano; IX - promover a proteção do patrimônio histórico-cultural local, observada a legislação e a ação fiscalizadora federal e estadual. (BRASIL, Constituição Federativa do. Cap IV, art. 30). Mas, paradoxalmente, José Nilo de Castro (op cit, p.11) afirma que ao lado da autonomia, não se ampliou a participação do município na federação, deixando-o fora do pacto federativo [...]. A verdade é que nossos municípios não participam do Poder Central, não atuam no âmbito da União Federal, não detêm parcela nem tampouco atributos da soberania, ao contrário dos Estados membros, que são representados pelo Senado Federal. 4 4

Todavia, apesar dessa discussão, não podemos negar o caráter diferenciado que o federalismo brasileiro possui mundialmente, por causa dessa maior autonomia municipal. Para demonstrar isso, resolvemos fazer uma comparação com outro país federalista: Argentina. A comparação com esse país servirá para entender como um outro país federalista da América do Sul trata a questão dos municípios em sua política e, com isso, lançar luz ao papel do município no Brasil. O MUNICÍPIO NA ARGENTINA A divisão política-administrativa brasileira compreende, como sabemos, a União, Estados, Distrito Federal e os municípios. Estes, como já demonstramos, apresentam-se como um ente federativo híbrido. A Argentina apresenta uma organização parecida, com a União, províncias (equivalentes aos estados brasileiros), departamentos e municípios. Nesse sentido, entendemos que as divisões administrativas internas, sejam estas locais ou regionais, são estabelecidas em funções de aspectos funcionais e aspectos históricos, que definem a organização territorial do poder (SANCHEZ, 1992). Mas, o que vemos na bibliografia consultada e na Constituição argentina, é um esvaziamento de competências municipais e uma clara subordinação às determinações federais e provinciais. Na verdade, há, na Argentina, um super fortalecimento do Governo central. Anderson (2009, p.70) atribui à definição sobre quem arrecada os impostos e outras receitas, sobre quem, como e em que se gasta, [como] fundamental para denotar a verdadeira divisão de poderes. Se caminharmos nessa direção, percebemos que o governo argentino possui uma peculiaridade: mais de 80% das receitas são arrecadadas pelo Governo Central. Nesse sentido que Anderson (op. cit., p.68) afirma que a Argentina é chamada de hiperpresidencialista, em função do alto grau de controle exercido pelo presidente. Na Argentina, o presidente tem ampla autoridade de baixar decretos e para autorizar transferências de recursos às províncias. O autor certifica isso, mostrando o poder de intervenção que o Governo possui nesse país: A Argentina já testemunhou mais de 175 intervenções federais em assuntos provinciais, inclusive a derrubada de governos [...] (ANDERSON,G., 2009, p.83), 5 5

Confirmando isso, Rojo (1998, p.45) afirma que há el aumento general de las competencias nacionales [...]. El gobierno federal halló pretexto para asumir funciones que, em puridad, pertenecían a las províncias. Além disso, o poder de repasse de dinheiro do Governo Central está aumentando mais ainda as atribuições federais. Nesse sentido, Rojo afirma que La ayuda economica federal condicionada: El Gobierno subvenciona, constantemente, uma serie de provincias en situación economica cronicamente deficitária. [...]. El cumplimiento de estos requisitos exige frecuentemente que las provincias promulguen una nueva legislación o transformen su organización administrativa. A través de este procedimiento, el Gobierno central há pasado a intervenir decididamente em matérias como régimen creditício, educación, transportes, policia, seguridad social, salud pública, conservación de fuentes de riqueza y médio ambiente provinciales. (ROJO, R. E. 1998, p.46) Assim, a única estância política que possui algum poder, além do Governo Central, é a província. Na Constituição Argentina, atribuí-se a Artigo 5 Cada província ditará uma Constituição com base no sistema representativo republicano, de acordo com os princípios, declarações e garantias da Constituição Nacional; e que assegure a administração da justiça, seu regime municipal, e a educação primária. Através destas condições o Governo Federal, garante a cada província o gozo e o exercício de suas instituições. Artigo 124 As províncias poderão criar regiões para o desenvolvimento sócio-econômico e estabelecer órgãos com faculdades para o cumprimento de seus fins. (ARGENTINA, Constituição Federativa da. 1994). Como não há delimitações claras para distinguir funcionalmente os departamentos dos municípios, muitas províncias se utilizam apenas de uma divisão para melhor administração política. Entretanto, em Chiaramonte (2007) podemos ver uma diferença entre os departamentos e as municipalidades: àqueles não cabem obrigações de caráter executivo ou legislativo, sendo apenas, portanto, uma delimitação para melhor gestão provincial; as municipalidades, entretanto, conservam o aparato institucional de gestão e administração, porém, obviamente, subjugado à província. 6 6

Para ter uma idéia de como o município na Argentina não possui importância como escala política, durante todo o texto El sistema politico argentino, de Raúl Enrique Rojo (1998), apenas duas vezes a palavra município ou derivação foram citadas. Em mais de cem páginas de descrição do sistema político argentino! Por isso, Rojo define que La Federación argentina está compuesta por la ciudad autonoma de Buenos Aires (sede actual Del distrito federal), y 23 provincias desiguales em población, extensión y riqueza. (ROJO, R. E. 1998, p. 43) Por fim, indiretamente no texto desse autor, podemos ver como o município funciona na Argentina, a partir de dois momentos: (a) ao falar da reforma constitucional de 1994, o autor destaca que foi criada a 24ª unidade federal, a cidade autônoma de Buenos Aires, e por isso, não seria um simples município; (b) no momento em que o autor usa o termo unidad federal, faz questão de dizer que está se referindo apenas às províncias ou a Buenos Aires. Nesse ponto, torna-se claro que o município não é considerado uma unidade federal. Portanto, o município na Argentina aparece como apenas uma corporação administrativa, subjugada pelo poder do Governo Central e, principalmente, provincial. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS ABRUCIO, F. L. Os Barões da Federação: os governadores e a redemocratização brasileira. São Paulo: Hucitec, Departamento de Ciência Política, USP, 1998. AFFONSO, R. B. A. Descentralização, desenvolvimento local e crise da federação no Brasil. Santiago do Chile: Comisión Económica para América Latina y el Caribe (CEPAL), 2000. ALMEIDA, M. H. T. Recentralizando a federação?. Revista Sociologia Política, 24, p. 29-40, jun, 2005. ANDERSON, G. Federalismo: uma introdução. Rio de Janeiro: Editora Fundação Getúlio Vargas, 2009. ARGENTINA, Constituición Federativa de. 1994. ANDRADA, A. C. D. de. O Município na Federação Brasileira. Belo Horizonte: Rona Editora, 2003. BRASIL, Constituição Federativa do. 1988. 7 7

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