V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura 27 a 29 de maio de 2009 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil.



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Transcrição:

V ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura 27 a 29 de maio de 2009 Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. POÉTICA DO PRECÁRIO NO FILME O BANDIDO DA LUZ VERMELHA DE Resumo SGANZERLA. Maria Thereza de O. Azevedo 1 A proposta desta comunicação é perceber o quanto a precariedade para a realização de filmes brasileiros como O bandido da luz vermelha de Rogério Sganzerla influenciou fortemente na reinvenção da linguagem cinematográfica e apontar alguns procedimentos. Na falta de material sensível e recursos técnicos adequados o cineasta apropriou-se do inadequado e neste entremeio entre o que é e o que pode ser, surgiu a ousadia, a liberdade, a errância, a incerteza, a invenção que promoveu a ironia, a descontinuidade, a fragmentação da narrativa, a desterritorialização do drama, o acaso, a dissimetria dos raccords, a câmera na mão, o inesperado e a desconstrução do próprio cinema. Foi no risco que esse cinema aconteceu. Palavras-chave: cinema; poética do precário, O bandido da luz vermelha As pontas da película, sobras, se utilizadas para filmar podem produzir erros, ruídos na informação, deformação. No processo de filmagem são descartadas, para preservar a integridade da emulsão, da resolução, da imagem. Filmar com pontas é um risco. Ponta é periferia, sofre rejeição e vai para um amontoado de fragmentos de pontas rejeitadas. O filme O Bandido da Luz Vermelha de Rogério Sganzerla foi realizado com sobras de película de outros filmes. Sganzerla lançou-se no abismo do risco e da instabilidade e nesta empreitada errante trespassou os limites da linguagem, e com ostensiva ambivalência realizou em 1968, um dos mais importantes filmes do cinema brasileiro. O cinema é a arte de montar. Em alguns filmes, a montagem tem como princípio ordenador, a hierarquia dramática do enredo, numa estrutura de continuidade causal; noutros filmes, principalmente os das vanguardas, a montagem se dá na contramão deste eixo lógico, nela, o princípio ordenador da arquitetura fílmica é o descentramento. No cinema denominado clássico, a maneira de narrar tem como matriz o método 1 Universidade Federal de Mato Grosso UFMT, maritheaz@gmail.com

desenvolvido pelo cineasta americano David Wark Griffith, cuja decupagem dos planos 2 e a montagem são norteadas pelo enredo da história a ser contada. Noel Burch chamou este modo criado por Griffith, de MRI 3 - Modo de Representação Institucional. Isso porque durante muitos anos o que foi denominado "linguagem cinematográfica", segundo Burch, era esse Modo de Representação Institucional. O método adotado por este cinema, segundo Ismail Xavier "desenvolveu um estilo tendente a controlar tudo, de acordo com a concepção do objeto cinematográfico como produto de fábrica" 4, é o mesmo que apresenta o drama como o que deve evoluir por si mesmo, como se, o apresentado no filme fosse a única possibilidade. Os mecanismos para a organização do Modo de Representação Institucional foram criados para tornar o drama mais eficaz, ou seja, fechar a história numa única idéia, por meio de um único centro, que se desenvolve até a uma única solução final. O filme O bandido da Luz Vermelha segue noutra direção, o da desconstrução dessa forma única para se constituir de estilhaços, justaposições sem hierarquia, mistura de diferenças, instabilidades, multiplicidades, ambigüidades, um jogo intertextual de citações e paródias, indeterminações, acasos e de incongruências. a incongruência - diz Ismail Xavier - favorece toda a sorte de incorporações, metamorfoses. (XAVIER 1993) No filme, essas incorporações formam, como aplicações de retalhos rotos, um painel complexo de indagações, metáfora do país. No entorno da ação do herói as vozes do rádio comandam um processo entrópico de acumulação de dados que, na aceleração final, configura o mundo como desordem geral. (XAVIER 1993) Tal como as colagens do artista plástico alemão Kurt Schwitters que engendrou outro principio gerador da forma, disjuntando, num mesmo espaço, materiais descartados e heterogêneos, o filme de Sganzerla se constitui na precariedade da sobra. A obra de Schwitters emerge do caos das cidades destruídas pela 1ª guerra mundial, que expôs as fendas provocadas pela guerra e criou um campo aberto de signos desconexos em ebulição. O bandido, personagem periférico, transita pelo caos de uma cidade periférica do terceiro mundo, em meio a fragmentos de notícias, de luminosos, de diferentes vozes, do descarte. O texto repetido no filme o lixo sem limites, senhoras e senhores, em certa medida, reforça a forma do filme. Lixo é caos, disjunção de heterogêneos. Para 2 Ismail Xavier em Discurso Cinematográfico aborda a decupagem clássica. 3 Ver BURCH, Noel El tragaluz del Infinito Madrid, Espanha, Ediciones Catedra, 1995 4 XAVIER, Ismail O discurso cinematográfico op. cit pag 31

Robert Stam, o filme O bandido da Luz vermelha funde o faroeste com a comédia musical, a chanchada com a ficção científica, o policial com o documentário. (STAM, 2000). Rogerio Sganzerla, ao juntar uma diversidade de gêneros, de culturas e de formas, fragmentos de conteúdos divergentes que aparece no jogo de vozes ao longo do filme, promove um processo de hibridização, tal como ocorre na cultura contemporânea. Por outro lado, a questões dispares que se contradizem, criam rupturas que prevalecem até o final. Conforme Xavier (...) a imagem do bandido nunca chega a harmonizar seus cacos, pois se constrói a partir de uma coleção heterogênea de fragmentos trazidos pela ação errática e pelo comentário verbal contraditório. (XAVIER 1993) No filme, as seqüências são fragmentadas promovendo um descompasso narrativo. A fragmentação das seqüências provoca uma descontinuidade das ações, o movimento de ruptura e retomada acaba por diluir o enredo e abrir espaços para a promoção de novos sentidos. A composição das seqüências intercaladas propicia a proliferação de outros pontos, enredos paralelos, provoca associações de cenas heterogêneas, e nesta operação as reiterações se evidenciam. É como o rizoma de Deleuze e Guatari que procede por variação, expansão, conquista captura, picada. (...) o rizoma se refere a um mapa que deve ser produzido, construido sempre desmontável, conectável, reversível, modificável, com múltiplas entradas e saídas, com suas linhas de fuga. (...) O rizoma conecta um ponto qualquer com outro ponto qualquer, e cada um de seus traços não remete necessariamente a traços da mesma natureza; ele põe em jogo regimes de signos muito diferentes, inclusive estados de não-signos. (DELEUZE, GUATARI) Para Ruth Rohl, a descontinuidade desafia as interpretações automáticas e a fragmentação tem duas funções fundamentais: uma delas é impedir a indiferença entre as partes que dá uma aparente idéia de totalidade e a outra é ativar a participação do espectador. 5 Assim, "o público não é envolvido pela tensão veemente, linear de uma ação progressiva, dirigida para a solução final " 6 a montagem das cenas de modo intercalado deixa espaços para a participação do outro, fazendo com que ele reconstrua o trajeto à sua maneira. "Pelo princípio da montagem, obriga-se o espectador a 5 Ruth Rohl ao estudar o teatro de Heiner Muller em op. cit. 6 ROSENFELD IN teatro Moderno op.cit

preencher os elos de união entre os diferentes planos" 7 Além disso, conforme Rohl, a fragmentação de um acontecimento acentua o seu caráter de processo, impede o desaparecimento da produção no produto. "O fragmento torna se então produtor de conteúdos, abrindo para a subjetividade do receptor, correspondendo ao que Muller chama de 'espaços livres de fantasia' " 8. O cineasta russo Andrei Tarkovski lembra que "Através de associações poéticas, intensifica-se a emoção e torna-se o espectador mais ativo, ele passa a participar do processo de descoberta". 9 roteiro que fundamenta a estrutura do filme afirma: Tarkovski, ao criticar as regras impostas para se escrever um Esta forma exageradamente correta de ligar os acontecimentos geralmente faz com que os mesmos sejam forçados a se ajustar arbitrariamente a uma seqüência, obedecendo a uma determinada noção de ordem. E mesmo quando não é isso que acontece, mesmo quando o enredo é determinado pelos personagens, constata-se que a lógica das ligações fundamenta-se numa interpretação simplista da complexidade da existência. 10 Umberto Eco, ao falar dos procedimentos simbolistas refere-se a eles como horizontes inesperados, como por exemplo, o projeto de decomponibilidade do livro de Mallarme "(...) o bloco unitário deveria cindir-se em planos reversíveis e geradores de novas profundidades, através da decomposição em blocos menores, por sua vez móveis e decomponíveis." 11 O engendramento de narrativas descentradas no filme O bandido da Luz vermelha ocorre simultaneamente e aí está a complexidade, o tecer em conjunto tramas aparentemente desconexas. Bakhtin diz que: "interpretar o mundo implica em pensar todos os seus conteúdos como simultâneos", (...) "ver tudo como coexistente, numa relação de interação e interdependência. " 12 A lógica das associações que "subverte a contiguidade de enredo" 13 pode provocar, talvez, como queria Brecht e Eisenstein, um distanciamento e uma reflexão em torno do conteúdo abordado. Desta maneira, a leitura de um filme como O bandido da luz vermelha pode ser realizada, sobretudo, por combinações heterogêneas em organizações instáveis, o que 7 PLAZA, Julio Tradução Intersemiótica op.cit pag 142 8 ROHL op. cit pag 121 9 TARKOVSKI, Andrei Esculpir o tempo. São Paulo, Martins Fontes, 1990 pag 17 10 TARKOVSKI, Andrei Esculpir o tempo. São Paulo, Martins Fontes, 1990 pag 17 11 ECO, Umberto, Obra Aberta. São Paulo, Perspectiva, 19 91 pag 55 12 BAKHTIN, Mikhail Problemas da poética em Dostoiévski Rio de Janeiro: Forense Universitária, 1997 pag 28 13 WANDELLI, Raquel Revista da SOCINE, São Paulo: Anablume, 2000 pag 322

implica em reordenamento ora por aproximação ora por afastamento, onde se confundem e entremeiam vários sentidos todos a um só tempo. Estas operações envolvem procedimentos por reiteração, antecipação, correção de percurso e lidam com as contradições, como se elas fossem rascunhos de pensamento. E, além disso, é preciso também acionar o repertório para lidar com a intertextualidade, a paródia, a citação. Assim, ao realizar o filme O bandido da Luz vermelha com pedaços de negativo, sobras de outros filmes, Rogério Sganzerla teve a liberdade de ousar, arriscar outro cinema cujos procedimentos têm ressonâncias nas poéticas audiovisuais contemporâneas. Ao se constituir na precariedade, na falta, Sganzerla abriu espaços de expansão para repensar a arte, o cinema brasileiro, o Brasil, a cultura na contemporaneidade. O BANDIDO SE CONSTITUIU NA PRECARIEDADE

Referências CAMPOS, Haroldo A arte no horizonte do provável São Paulo: Perspectiva, 1975 CALABRESE, Omar. A Idade neo barroca. Arte e Comunicação. São Paulo: Martins Fontes, 1987 CAMPOS, Haroldo. A arte no Horizonte do Provável. Coleção Debates. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977 CHARNEY, Leo e SCHWARTZ, Vanessa. O cinema e a invenção d vida moderna. São Paulo, Cosac e Naif, 2001. ECO, Umberto. Obra Aberta. São Paulo, Perspectiva -1991 EISENSTEIN, Sergei. A forma do filme Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1990 DELEUZE, Gilles. Bergsonismo. Trad: Luiz B. L. Orlandi - São Paulo: Editora 34, 1999. Mil platôs São Paulo: Editora 34, PAZ, Octavio. Signos em Rotação. Coleção Debates. São Paulo: Editora Perspectiva, 1996 ROHL, Ruth. O teatro de Heiner Müller. São Paulo: Perspectiva, 1997 STAM, Robert. BAKHTIN da teoria literária à cultura de massa. São Paulo: Àtica 1992 TARKOVSKY, Andrei. Esculpir o tempo. São Paulo: Martins Fontes, 1990 XAVIER, Ismail. O discurso cinematográfico. A opacidade e a transparência. Rio de Janeiro: Editora Paz e Terra, 1984. Alegorias do subdesenvolvimento. Rio de Janeiro: Editora Brsiliense 1993