REFLEXÕES SOBRE A SEGUNDA VIDA Cláudia Dias Sampaio Escrever sobre a produção de Machado de Assis apresenta-se, num primeiro momento, como tarefa distante do prazer. O logo a seguir à decisão de pensar sobre a engenhosidade desse autor pode ser uma gota de suor frio a escorrer pelas têmporas, ou a confortável certeza de que há outros, mais experientes, capazes de levar adiante tal intento e poupar o leitor dos eventuais deslizes dos principiantes. Seria simples, então, desistir do propósito ou, com o passar dos dias, adiar o certame e, ao final, engrossar o coro dos lugares comuns. Seria simples, não fosse a astúcia de Machado e o prazeroso efeito de sua obra fluxo contínuo para se experimentar novas possibilidades de pensamento, de vida. Afinal o que fazer após a queda da gota no asfalto quente da hoje rua do Riachuelo, a célebre Mata-cavalos? O que fazer com pensamentos que se estendem, se acumulam, neste julho de 2008, provocados pela leitura de um conto escrito no distante 1884? A segunda vida é mais um convite de Machado para que desfrutemos os prazeres de um vôo ao desconhecido. Se aceito, além de nos livrarmos do peso canônico que paira sobre o texto machadiano e da aridez que pode surgir ante a tarefa de escrever sobre o autor, garantimos a diversão de pensar sobre esse algo que nos prende à história de José Maria mais um dos personagens defuntos de Machado. Deixemo-nos levar pela sagrada inexperiência, retomemos então o exercício a que Machado era tão afeito, e que ocupa posição central na tese de Walter Benjamin sobre a teoria do romantismo alemão: a infinitude da reflexão, não uma infinitude da continuidade, mas uma infinitude da conexão (Benjamin, 1973, p. 34). Para Luiz Costa Lima, essas infinitas conexões são resultado dos palimpsestos criados por Machado, cuja obra revela uma verdadeira política do texto. Escrita dissimulada, composta de modo a atender a diferentes leitores e capaz de despertar curiosidade naqueles que se deixam levar pelo vôo do pássaro, cuja possibilidade já se mostra nas primeiras linhas.
Amedrontado com a loucura de José Maria, monsenhor Caldas interrompe a narração para pedir que o preto-velho, João, chame a polícia. A interrupção é tão abrupta quanto o início do conto. O que vemos é a narrativa dentro da narrativa, construída pelo diálogo entre Caldas e o protagonista. Desse modo, ao leitor se mostram dois narradores: um oficial, e o outro delirante. Como Orfeu, que graças ao acorde de sua lira conseguiu a façanha de retornar do Hades a morada dos mortos, José Maria, narra as desventuras de sua segunda vida. Após vagar pelo espaço, ele é surpreendido pela notícia de que sua alma é a de número mil; por isso, ele deve voltar à Terra para uma nova vida. Contrariado por achar que sofrera com a inexperiência em sua vida anterior, José Maria dispensa a liberdade que lhe é concedida: podia nascer príncipe ou condutor de ônibus ; e lembrando as palavras do pai, quem me dera aquela idade, sabendo o que sei hoje, diz que lhe é indiferente ser rico ou pobre, o que deseja é voltar com experiência. O que segue é a seqüência de infortúnios decorrentes desse pedido, cujo responsável não é nenhuma divindade, mas, tão somente, o homem José Maria. O desconhecido, fruto da inexperiência, é então revelado por Machado como o verdadeiro prazer da nossa humana condição. Mas para que o leitor perceba esta intenção, e ainda a estocada certeira numa concepção cristã de mundo, dissimuladas no palimpsesto machadiano, é preciso não se contentar com o que lhe oferece uma leitura apenas superficial do conto. Quando Costa Lima aproximou a escrita machadiana à idéia de palimpsesto um pergaminho cujo texto primitivo foi raspado para dar lugar a outro, segundo o Houaiss o foco da análise era O Alienista (1882). Assim como na novela, a reflexão sobre a loucura é tema central do conto. O crítico observa que para se apreender o tema, no caso de O Alienista, é preciso que o leitor compreenda a articulação estabelecida entre três variáveis: ciência, linguagem e poder (Lima: 1991, p. 261). Em A segunda vida, somada a essa articulação, Machado expõe a crise da cosmologia cristã, que ganha contornos expressivos na alusão ao Mito de Er, na própria situação em que se passa o conto, e especialmente num trecho, quando José Maria diz ao padre Caldas: Tal é a situação tenebrosa que venho expor a Vossa Reverendíssima, e que a sua teologia ou o que quer que seja explicará se puder. Se em O Alienista, Machado questiona o
positivismo da Ciência para explicar a loucura, em A segunda vida, este lugar é ocupado pelo teocentrismo. Costa Lima lembra ainda o interesse que a questão da loucura desperta em Machado, tanto pelo Quincas Borba como pela crônica de 31 de maio de 1896, tomada por Mario Matos como fonte da novela. A propósito da fuga dos loucos da Praia Vermelha, dizia a crônica que então o juízo passou a ser uma possibilidade, uma eventualidade, uma hipótese (Lima: 1991, p. 264). A desconfiança talvez seja o caminho para pensarmos nos indícios deixados pelas camadas borradas desse texto-palimpsesto. A começar pela curiosa informação dada por José Maria: Renasci em cinco de janeiro de 1861. Não lhe digo nada da nova meninice, porque aí a experiência teve só uma forma instintiva. Machado começou a escrever justamente em 1861. Seria então o ato da escrita uma segunda vida? Mas porque as queixas de uma vida às apalpadelas como resultado da experiência? Se seguirmos a idéia da ressurreição como uma possibilidade metalingüística, então, mesmo ao escritor seriam necessários a contusão e o sangue? Afinal, é o que confirmam os lamentos de José Maria ao falar de uma vida em que o imponderável é conhecido: Chamavam-me tolo e moleirão. Realmente, eu vivia fugindo de tudo. Creia que durante esse tempo não escorreguei, mas também não corria nunca. Não se trata de ler o conto a partir da biografia de seu autor, mas sim de pensar na argúcia de Machado de Assis em transformar os elementos de sua própria biografia em material estético, o que no entanto não bastaria para fazer desse conto uma apresentação, e não uma mera representação, da vida. Os elementos sociais, políticos e teológicos, esteticamente pensados, contribuem para o adensamento de uma história que, não fosse isso, bastava uma vez para que exaurissem as possibilidades de sua leitura. O mérito nesse caso é para o trabalho ficcional empreendido pelo autor, este
seria, segundo Costa Lima, o oxigênio de Machado: Como a praticava, a ficção era para Machado o oxigênio pela qual se poderia respirar o ar das questões (Lima, 1991, 265). O que leva José Maria a procurar monsenhor Caldas é a conturbada relação com a jovem viúva Clemência. Os desencontros do casal de apaixonados são mais uma vez resultado do excesso de experiência que o rapaz traz consigo em sua segunda vida. A estréia de Machado na literatura, com Queda que as mulheres têm para os tolos, traz o personagem do poeta que disputa, e perde, para um promissor comerciante, o amor de uma também jovem viúva. O derrotado poeta supera sua perda com uma viagem ao Oriente e na volta acaba se casando com a filha da ex-amada. O destino do protagonista do conto não é tão conformado quanto o do ex-derrotado poeta. Mesmo com o sugestivo final de que se ouvia pela escada acima o rumor de espadas e pés, numa indicação de que a Guarda Urbana (a polícia profissional carioca em 1866, que imitava as forças policiais de Londres e Paris) estava a caminho, José Maria não dá a volta por cima, ele encerra sua narrativa com o desvario e o temido ataque a que monsenhor Caldas pressentia desde o início: Não, miserável! não! tu não me fugirás! bradava José Maria investindo para ele. Tinha os olhos esbugalhados, as têmporas latejantes; o padre ia recuando... recuando... Pela escada acima ouvia-se um rumor de espadas e pés. Desse modo, o palimpsesto machadiano cumpria seu papel: respondia à conjuntura específica de uma sociedade em que a atividade intelectual era quase sinônima de pecado solitário (Lima: 1991, p. 254). Já era bastante o surto final de José Maria, os olhos esbugalhados e o ataque ao padre Caldas, embora este, e também o leitor, estivessem esperando por isso. Fica a insinuação de que a loucura de José Maria será contida pelas mãos do estado, e é a narração oficial que encerra o conto.
O vôo do pássaro Como lhe parece que vivo? Sou pouco imaginoso. Suponho que vive assim como um pássaro, batendo as asas e amarrado pelos pés... Justamente. Pouco imaginoso? Achou a fórmula; é isso mesmo. Um pássaro, um grande pássaro, batendo as asas, assim... Poesia e morte: por esses temas, o autor elabora sua resposta ao que nos é desconhecido e constrói outros diálogos, como o que nos remete à condenação da poesia feita por Platão, no célebre diálogo entre Sócrates e Glauco, no livro X da República. Diálogo sobre diálogo, dobra sobre dobra. José Maria diz não sou poeta, monsenhor, não ouso descrever-lhe as magnificências daquela estância divina ; mas o que faz Machado senão usar a linguagem para transmitir a grandeza do imponderável, tão temido por Platão em seu ideal de República? Sigamos no exercício de pensar o palimpsesto machadiano, ou seja, na experiência de identificar os pequenos indícios, dos filamentos que escorrem da superfície da história (Lima: 1991, p. 254), guiados pelos temas poesia e morte, dos quais Machado irá se ocupar não somente nesse conto, mas em grande parte de sua obra. O diálogo com o poeta Sousa Caldas concentra fértil material na aproximação com a dimensão de reflexão infinita a que Benjamin se referia em relação ao romantismo alemão. A alusão ao poeta Caldas vai além da citação pontual que surge no momento em que José Maria começa a narrar sua história: Vossa Reverendíssima é Romualdo, não? Sim, senhor; Romualdo de Sousa Caldas. Será parente do padre Sousa Caldas? Não, senhor. Bom poeta o padre Caldas.
Uma parte pouco analisada da obra de Machado são suas produções poéticas. Desde sua estréia ele escrevia poemas e os publicava em periódicos. Em 1864, publicou Crisálidas, duramente criticado por seu romantismo ingênuo e lamurioso. Seis anos depois, lançou Falenas, em que, curiosamente, encontramos nessa coletânea, o poema Pássaros. Não deixa de ser interessante que Machado, acusado de romancista ingênuo por seus poemas, evoque o poeta Sousa Caldas. Em seu Curso elementar de literatura nacional, de 1862, o cônego Fernandes Pinheiro descreve o poeta Sousa Caldas como pioneiro da escola romântica entre nós, quem soltou o brado da emancipação da escola clássica, dessa servil imitação dos autores gregos e romanos, dessas absurdas quimeras conhecidas pelo nome de mitologia (Acízelo, 2007, p. 36). Machado tece elogio a esse poeta, Bom poeta, o padre Caldas. Poesia é um dom, eu nunca pude compor uma décima. Mas é justamente no Mito de Er (também conhecido como mito da reminiscência), narrado por Sócrates no mesmo livro X da República, que ele parece se inspirar para criar a narrativa principal do conto. O que à primeira vista parece contradição logo se apresenta como coerência, se pensarmos na intenção de Machado ao criar conexões que atendessem ao seu propósito primeiro: dar uma resposta artística a esse indefinível algo que nos escapa, que constitui o discurso poético. A menção a Sousa Caldas soa como mais um indício da crítica provocativa de Machado, que, conforme observou Costa Lima, usava a tática da capoeira nas relações sociais. O fato de Machado não ter insistir no exercício da crítica, a exemplo do artigo Instinto de nacionalidade (1873) teria sido o primeiro sinal de esperteza do escritor (cf. Lima, 2006), por isso, a hipótese do texto-palimpsesto como uma estratégia de dissimulação. É José Maria quem diz: Poesia é um dom; eu nunca pude compor uma décima. Mas, vamos ao que importa. O que importa a Machado parece ser justamente criar dobras, caminhos múltiplos e infinitos de possibilidades. A menção a Sousa Caldas se amplia na medida em que pensamos na construção da personagem monsenhor Caldas. Também era padre o poeta Sousa Caldas, que em 1784, inspirado por Jean-Jacques Rousseau, compôs a Ode ao homem selvagem.
Surgem então diálogos ainda mais sutis, como o do poeta Sousa Caldas com o autor de Les Confessions (1782-89), verdadeiro paradigma da autobiografia (Lima: 1986, p. 283). Avançando por camadas ainda mais profundas, podemos pensar sobre a autobiografia e o narrador defunto que em 1881, três anos antes de Machado escrever A segunda vida, constituiram Memórias Póstumas de Brás Cubas, no qual Machado estaria problematizando o gênero Romance, segundo o estudo de Débora Fleck, Brás Cubas e o auto-retrato d além-túmulo (2008) Poderíamos então ler o conto como um possível diálogo entre Rousseau e o poeta Sousa Caldas? Ou ainda, estaria Machado seguindo em seu exercício de uma descida ao inferno da própria intimidade (Costa Lima, 1986 p. 287)? Em uma ode ao homem selvagem, cuja fórmula é a de um grande pássaro plás... plás... plás, Machado cria a complexidade de uma narrativa que não se contenta com dicotomias banais. Para não reforçar ainda mais o coro dos lugares comuns, com formulações do tipo a riqueza da obra machadiana ou a genialidade de Machado, penso apenas na modernidade desse texto, cuja potência literária afirma a capacidade visionária da verdadeira obra de arte. Em A segunda vida, Machado fala sobre a chatice que seria a vida ocupada por uma emoção virtual. É inevitável pensarmos na atual febre da internet, o Second life. Nele o participante pode escolher o tipo de vida que quer ter: rico, pobre, morador da Espanha, da China, do Brasil, ou da Ilha da Fantasia. Sem atribuir a responsabilidade da escolha a um Deus, perpetua-se a cautela de uma decisão realmente humana. Seria simples condenar essa experiência virtual, não fossem as possibilidades que se abrem com o texto de Machado e a crença na resistência das particularidades humanas: a necessidade da ilusão e a inelutável convivência com o desconhecido. Portanto, não se trata de eliminar ou condenar, mas de refletir e fazer conexões. E estas são apenas algumas, diante dos infinitos palimpsestos criados por Machado de Assis.
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