MUDANÇAS NO PARADIGMA PRESERVACIONISTA CLÁSSICO: Reflexões sobre patrimônio cultural e memória étnica Alexandre Fernandes CORRÊA (Prof. Adjunto UFMA Doutorando PUC/SP) RESUMO Este artigo aborda alguns aspectos da proposta do GTPI-MinC sobre o conceito jurídico do registro : uma nova forma de inscrição do patrimônio cultural imaterial brasileiro. Proponho uma re-integração bio-cultural, na qual o homem, a vida e todos os seres são colocados no mesmo plano de ação memorial. Através de um ponto de vista meta-etnológico, desejo atingir uma antropologia fundamental, inspirada na expressão de Marcel Mauss: É preciso recompor o todo! PALAVRAS-CHAVE: Patrimônio Cultural Memória Étnica ABSTRACT Changes in the Classic Conservationist Paradigm: reflections about cultural heritage and ethnic memory.this article discusse some aspects regarding the GTPI-MinC work proposition relative the juridic concept registro : a new form by inscription of the brasilian imaterial cultural heritage. I propose a bio-culture re-integration, in which the mankind, the life and every beings are situated in a same level the memorial action. Through a meta-ethnilogical point of view, I desire to aim a fundamental anthropology. In this paper serve as a base the Marcel Mauss s expression: Il faut recomposer le tout! KEY WORDS: Cultural Heritage Protection Ethnic Memory MUDANÇAS NO PARADIGMA PRESERVACIONISTA CLÁSSICO: Reflexões sobre patrimônio cultural e memória étnica O Brasil tem instituída e consagrada desde o final da década de trinta a figura jurídica do tombamento (Decreto-Lei n? 25/37). Deve-se ressaltar que curiosamente o grupo modernista do patrimônio não seguiu inicialmente o modelo francês preservacionista, que consiste na classificação e no registro dos bens históricos e arquiteturais. O escritor e musicólogo Mário de Andrade que compôs o Ante-projeto original do SPAN 1 optou por seguir o modelo português, com a inscrição dos bens e valores culturais em Livros do Tombo. Deste modo, já são mais de sessenta anos de pesquisas, catalogações, inscrições e tombamentos, patrocinados pelo IPHAN que passou a incorporar o CNRC 2 e a Fundação Nacional Pró-Memória (FNPM). 1 SPAN Serviço do Patrimônio Artístico Nacional Sigla original proposta por Mário de Andrade, que ficou mais conhecido como SPHAN, quando foi acrescentada a categoria Histórico Este órgão já mudou de nome algumas vezes, hoje tem a nomenclatura oficial IPHAN; de serviço passou à instituto. 2 Centro Nacional de Referência Cultural que existiu de forma independente de 1975 sendo incorporado ao IPHAN, junto com o PCH (Programa de Reconstrução das Cidades Históricas 1973) na gestão de Aloísio Magalhães (1979). A Fundação Pró-Memória foi extinta em 1990.
O que trago ao debate, surge da proposta recente do Ministério da Cultura, que em 1998 instituiu o GTPI (Grupo de Trabalho Patrimônio Imaterial), com o intuito de promover discussões entorno da idéia da proteção de bens culturais intangíveis, que em nosso País é designado mais freqüentemente como patrimônios culturais imateriais. Depois de vários seminários e reuniões chegou-se a um documento que propõe uma minuta de decreto presidencial, no qual se define o novo instituto jurídico denominado registro, que já havia sido previsto na Constituição Federal de 1988. Basicamente a minuta do novo decreto cria o Registro de bens culturais de natureza imaterial, como instrumento de acautelamento, e institui o Programa Nacional de Identificação e Referenciamento de Bens Culturais de Natureza Imaterial. Mais especificamente, o Registro consiste na inscrição de bens culturais de natureza imaterial em um, ou mais de um, dos seguintes Livros de Registro : I Livro de Registro dos Saberes e modos de fazer enraizados no cotidiano das comunidades. II - Livro de Registro das Festas, celebrações e folguedos que marcam ritualmente a vivência do trabalho, da religiosidade e do entretenimento. III Livro de Registro das Linguagens verbais, musicais, iconográficas e performáticas. IV - Livro dos Lugares (Espaços), destinado à inscrição de espaços comunitários, como mercados, feiras praças e santuários, onde se concentram e reproduzem práticas culturais coletivas (GTPI-MinC:1998). A questão que coloco é a seguinte: será que a criação deste novo instituto do registro e destes Livros, referidos acima, avançam na superação das principais dificuldades contidas no decreto-lei 25/37? Como se sabe, este instrumento legal em muitos aspectos foi pioneiro e tem conquistas importantes, porém transformações atuais no campo patrimonial parecem exigir novas atitudes na área preservacionista. Todavia, chamo a atenção para as novas estratégias de preservação que estão emergindo dos chamados novos patrimônios especialmente no crescente interesse pelos patrimônios ditos etnográficos. Assim, será que o novo recurso institucional proposto aponta para novas práticas de promoção da questão patrimonial no País? Será que instituindo-se este novo conceito contribuímos para a superação da visão compartimentada que separa, parcializa e fragmenta as relações entre a Natureza e a Cultura, o Material e o Imaterial, o Tangível e o Intangível? Estamos, pois, diante de uma nova estratégia correta de salvaguarda dos bens culturais na sociedade brasileira atual? O que parece é que este novo instituto é mais uma expressão sofisticada do velho paradigma dualista ocidental, que dicotomiza as relações entre Natureza/Cultura, em pares infinitos como Concreto/Abstrato, Infra-Supra/Estrutura e etc. Estas são as bases do mesmo paradigma clássico dominante na área preservacionista ocidental, que se nutre da compartimentação do saber em especialidades disciplinares. Recentes pesquisas nesta área apontam para uma direção mais abrangente, exigindo novos posicionamentos. Observa-se que é mais que necessário a constituição de um meta-ponto-de-vista, em busca de uma antropologia fundamental. Parece ser este um caminho mais fecundo no sentido de propor novidades transformadoras neste domínio já bastante burocratizado, cheio de especialistas que acabam por reduzir suas visões e proposições ao cadinho de conhecimento que dominam.
A reforma ou a re-fundação do pensamento preservacionista parece ser mais necessária do que a instituição de mais uma nomenclatura jurídica. Nesse sentido é que convém propor ao debate uma contribuição que enfoque a emergência de uma meta-etnologia. Este termo designa uma postura que tenta ultrapassar o viés etnológico reducionista e implementar um diálogo crítico quanto aos conceitos mais tradicionais da disciplina. É um trajeto que visa uma antropologia universalista que se preocupa com os grandes problemas da humanidade, e não apenas ao que diz respeito aos egoísmos étnicos contemporâneos sintoma da desintegração sistêmica que paradoxalmente esta sendo promovida pela globalização 3. Novas pesquisas têm questionado a eficácia de institutos jurídicos redutores, que apenas regulam e sacralizam o direito à propriedade, mas que não explicitam seus deveres. Neste contexto, a indagação inicial se expande: o registro, a classificação ou o tombamento, por exemplo, são procedimentos adequados para a salvaguarda dos bens culturais étnicos? Um projeto de reconhecimento imediato das diferentes memórias étnicas sufocadas pelos projetos autoritários dos estados-nacionais latino-americanos, deve considerar a necessidade histórica da superação dos traumas provindos da espoliação, escravização, etnocídios e genocídios, patrocinados pelo pacto colonial nas Américas. Parece que esse é o momento da afirmação de uma verdadeira etnologia da urgência, como nos propõe Henri-Pierre Jeudy, no seu livro Memórias do Social (1990). Com a chamada globalização, difundiu-se uma visão pessimista em relação ao surto recente da etnicidade nas sociedades contemporâneas, um fenômeno que não é só político e econômico mas é também, e principalmente, um fato cultural. Existem pontos positivos a ressaltar no recente despertar étnico, como o que acontece na mídia, na cultura de massas, na moda, na cultura de almanaque, etc. Sintomas de um repovoamento e incremento do imaginário antropológico mundial. Percebe-se o crescente interesse que tem despertado o conhecimento da diversidade cultural humana, aproximando pessoas e grupos separados por fronteiras geo-políticas coloniais. Cabe ressaltar ainda o novo papel da etnologia no processo de crítica do etnocentrismo, assim como da sua responsabilidade histórica e, além disso, na revisão de conceitos como o de etnia, nação, raça, classe, etc. Etnia, por exemplo, freqüentemente é considerado um termo suspeito, como um conceito calcado na raça e na fenotipia. No entanto, atualmente percebe-se que a etnicidade (ethnicity) é produzida pela própria globalização que atrai para si, no mínimo, a curiosidade de todos pelos modos de vidas de outros seres humanos (Poutignat;1998). Deve ser ressaltado, portanto, que a etnicidade é um fenômeno que não pode ser restrito a dimensão política (Barth;1976), pois parece ser um fenômeno de massa que definitivamente se impôs como um dos assuntos polêmicos, junto com a ecologia, na nova era planetária que se insinua atualmente. 3 Ver Edgar Morin no livro Terra-Pátria (1993).
Uma meta-etnologia 4 parece ser um instrumento útil para um projeto de recuperação e resgate as memórias étnicas e as identidades culturais, numa tentativa de evitar o que se tem chamado de balcanização do mundo, dividido nas mais diversas guerras étnicas. Assim, meu objetivo aqui é de trazer ao debate algumas preocupações concernentes a atualização histórica das ações de preservação diante de novas exigências sociais. É neste sentido que trago à lembrança dos congressistas algumas palavras de autores como Marcel Mauss, E. Morin, Cornelius Castoriadis e Claude Bastien. Estes pensadores nos alertam para a importância de uma postura contextualizadora e não fragmentada. O conhecimento especializado é uma forma particular de abstração. Dividir a prática preservacionista em bens culturais materiais e imateriais parece reproduzir a velha lógica cartesiana e compartimentada. Como escreveu Claude Bastien: A evolução cognitiva não caminha para a instalação de conhecimentos cada vez mais abstratos, mas, ao invés, para a sua contextualização. (...) A contextualização é uma condição essencial à eficácia (do funcionamento cognitivo) 5. preconizava: Desta maneira, impõem-se a necessidade de se re-aproximar da máxima de Marcel Mauss, que É preciso recompor o todo! No entanto, deve-se ter consciência do que Castoriadis apontou: O mundo não somente o nosso está fragmentado. Porém não cai aos pedaços. Refletir me parece uma das principais tarefas da filosofia dos nossos dias (1992:9). Em síntese, é preciso uma reforma de pensamento para articular, organizar e com isso reconhecer os problemas relacionados a memória e ao patrimônio no mundo de hoje. Como exemplo concreto disso temos o que escreveu Edgar Carvalho acerca da existência separada de um Conselho de Defesa do Patrimônio e outro do Meio Ambiente, no Estado de São Paulo: A existência de Conselhos específicos que analisam de um lado as expressões da natureza (CONSEMA/SP) e, de outro, as expressões da cultura (CONDEPHAAT/SP), é bem ilustrativa da força hegemônica do Grande paradigma do Ocidente, o que faz comque contradições insolúveis conformemas decisões políticas da preservação, supondo-se, equivocadamente, que a existência da natureza negue a da cultura e vice-versa (Carvalho;S/D). O mesmo poderia ser dito em relação ao Governo Federal que tem o IPHAN e o Ministério da Cultura de um lado e, de outro, o IBAMA e o Ministério do Meio Ambiente. Faz-se necessário ir em busca de uma re-integração, no encontro de uma verdadeira bio-cultura, em que o homem, a vida e todos os seres são colocados no mesmo plano de ação patrimonial e memorial. Assim, insisto, ao considerar esse ponto de vista, que a proposta de criação do novo instituto jurídico (registro) caminha na direção da perpetuação do paradigma cartesiano e dualista. Isto é o oposto do que se anuncia dos debates sobre os chamados novos patrimônios como terreiros de candomblé, parques, clubes esportivos, associações de minorias, bares, escolas de samba etc. que são a verdadeira novidade no cenário patrimonial 4 Utilizo este termo no sentido que Edgar Morin emprega à expressão auto-trans-meta-sociologia (Morin;1992:82). 5 Ver, MORIN, Edgar. Terra-pátria (1993); Capítulo 7: A Reforma de Pensamento. Pg. 132.
contemporâneo. São os movimentos de salvaguarda emergencial da memória e da identidade, no confronto direto com a crise dos estados-nações, e da globalização econômica desigual, que exigem um debate cidadão sobre o tema do patrimônio. A defesa do patrimônio cultural dos diferentes povos e minorias étnicas que compõem a América Latina tende na direção de uma reforma integral do pensamento preservacionista dominante, que sempre privilegiou o paradigma clássico e eurocêntrico, inscrevendo em Livros do Tombo bens e valores restritos, prioritariamente, à classe dominante. Conclui-se daí que a implementação de um artifício jurídico como o proposto pelo Ministério da Cultura, efetivamente só promove e perpetua um modo de pensar equivocado, que pretende se eternizar. Contudo, esta tese não se restringe a fazer críticas, arrisca-se também a propor ações alternativas. Entre outras, proponho ações substitutivas à instituição da figura jurídica do Registro, incorporando novas formas de acautelamento dos bens e valores ditos patrimônios culturais imateriais. Na verdade, aqui não há nenhuma novidade, já em Mário de Andrade temos uma percepção inovadora e inclusiva, não dicotômica, quando o escritor formulou a noção de arte como engenho humano. Cito um trecho do Ante-projeto do SPAN (1936): Arte é uma palavra geral, que neste seu sentido geral significa a habilidade comque o engenho humano se utiliza da ciência, das coisas e dos fatos (Andrade;1981) 6. 6 Considerando Paulo-Edgar A. RESENDE, talvez, ao retomar esta noção andradiana, possamos superar algumas dificuldades na antropologia, pois, a rigor, a própria noção de cultura está em causa, dada sua pesada herança positivista de visão linear do tempo e de ótica evolucionista ocidentalizante (p.34).
Dessa forma, fica evidente que com a noção de arte assim explicitada, todo o trabalho de preservação e conservação, deve estar informado e calcado num trabalho de promoção, incremento e difusão dos bens e valores culturais do povo brasileiro. As soluções para a superação da dicotomia apontada acima, já estão postas deste a década de 1930, porém, por uma série de razões históricas, não foram implementadas e compreendidas convenientemente. Levando em conta isso, insinuam-se ações do seguinte tipo: o estímulo a produção de monografias etnográficas ao nível de graduação e pós-graduação nas Universidades; a promoção de concursos de filmes e vídeos etnográficos, assim como a instituição de concursos literários, vinculados aos bens e valores que se pretende preservar pois a literatura, o cinema, a poesia etc., é que de fato hão de preservar e registrar a alma do povo brasileiro ; e, por fim, o incremento da organização de museus das imagens e de etnografia, como os 4 Grandes Museus propostos por Mário de Andrade no Ante-projeto do SPAN (1936), os quais ainda hoje não foram instituídos. Por conseguinte, parece que assim se cumpre um trajeto não só acadêmico, mas universitário. Não passamos só pela teoria e pela crítica aos postulados científicos dominantes, mas também pela praxis, propondo ações de efetiva concreticidade, realizando os três princípios de uma verdadeira universidade, que são a pesquisa, o ensino e a extensão. Mas estes lemas só ganham sentido em vistas da formação de futuros cidadãos, e, para nós, os temas do patrimônio e da memória são de incomensurável importância, constituindo-se em tópicos essenciais na cristalização da cidadania autônoma e autoconsciente. BIBLIOGRAFIA CITADA ANDRADE, Mário de. Ante-projeto do SPAN. Brasília: MEC/SPHAN/Pró-Memória. 1981. Cartas de trabalho. Brasília: MEC/SPHAN/Pró-Memória. 1981 BARTH, Frederik. Los grupos étnicos y sus fronteras. México: FCE. 1976 CARVALHO, Edgar A. Patrimônio cultural e ética da resistência. Dep. de Antropologia. PUC/São Paulo. S/D.. Desordens e reorganizações do processo civilizatório. Dep. de Antropologia. PUC/SP. 1994 CASTORIADIS, Cornelius. O mundo fragmentado. Rio de Janeiro: Paz e Terra. 1992 EDGAR, Morin. Terra-pátria. Lisboa: Instituto Piaget. 1993 JEUDY, Henri-Pierre. Memórias do social. Rio de Janeiro: Forense. 1990 a GRUZINSKI, Serge. La pensée métisse. Paris, Fayard, 1999.
PATRIMÔNIO IMATERIAL. Estratégias e formas de proteção GTPI-MinC Brasília 1998 POUTIGNAT, Philippe. Teorias da etnicidade. São Paulo: UNESP. 1998 RESENDE, Paulo-Edgar Almeida. In, resenha Un honnête homme, cést un hommemêlé, sobre livro de Serge GRUZINSKI. São Paulo: ORI. N 3 abril/junho. 2000