199 RCJ Revista Culturas Jurídicas, Vol. 2, Núm. 3, 2015.



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Transcrição:

199 JUSTIÇA DIALÓGICA E CONSTITUCIONALISMO LATINO-AMERICANO ENTREVISTA COM O PROF. ROBERTO GARGARELLA 1 I O ENTREVISTADO Roberto Gargarella, nascido em Buenos Aires em 1964, é um dos mais importantes e prestigiados constitucionalistas latino-americanos. É graduado em Direito (1985) e em Sociologia (1987) pela Universidad de Buenos Aires; Mestre em Ciências Políticas pela Facultad Latinoamericana de Ciencias Sociales (1990); e Doutor em Direito pela Universidad de Buenos Aires (1991). Tem, ainda, LL.M (1992) e J.S.D. (1993) pela University of Chicago Law School. É Pós-Doutor pela Balliol College, Oxford (1994). É Professor de Teoria Constitucional e Filosofia Política na Universidad Torcuato Di Tella e de Direito Constitucional na Universidad de Buenos Aires. Como pesquisador, tem como principais temas de interesse a democracia, em sua vertente dialógica, conforma concepção do filósofo alemão Jürgen Habermas, e o constitucionalismo latino-americano. II PRINCIPAIS QUESTÕES ABORDADAS Siddharta Legale (SL): _ Eu queria ouvir um pouquinho primeiro sobre a sua trajetória acadêmico-profissional e, em seguida, fazer umas perguntas mais específicas sobre alguns trabalhos do senhor na área. Roberto Gargarella (RG): _ Minha formação é, sobretudo, com Carlos Nino, na Argentina, onde trabalho há mais de 10 anos. Depois, como estudantes de doutorado que trabalham com Nino, eu fui aos Estados Unidos e fiz meu Doutorado com Cass Sunstein, em Chicago. Na realidade entrei em contato com um grupo que me interessava no momento, chamados de marxistas analistas, como Jon Elster, Adam Pzeworski. Depois fiz mais um ano de pósdoutorado em Oxford, e trabalhei com outro marxista analítico, Gerald A. Cohen, um 1 O presente texto contém a entrevista realizada com o Prof. Roberto Gargarella após o I Seminário de Jurisdição Constitucional e Justiça Dialógica, que ocorreu no dia 11 de junho de 2015 no Programa de Pós-Graduação em Direito Constitucional da Universidade Federal Fluminense (PPGDC/UFF). O rol de entrevistadores foi composto pelos professores Siddharta Legale e Eduardo Manuel Val. A transcrição do áudio e a revisão foram realizadas pelas mestrandas Anna Cecília Faro Bonan e Kelly Ribeiro Felix de Souza, respectivamente.

200 professor de filosofia analítica importante. É dizer, tive muita formação formal, mas creio que o mais importante foram as conversas informais e os muitos anos junto a Carlos Nino. Aprendi mais tomando chá e café com Carlos Nino, isso foi muito mais importante para minha educação e para a educação de todo o grupo de acadêmicos com quem trabalhei. SL: _ Bom, pelo que a gente pode concluir pelas falas do senhor, especialmente em relação às teorias da justiça depois de Rawls, me parece, e me corrija se eu estiver errado, que você tem uma forte influência de um liberalismo igualitário, mas com uma tendência crítica e progressista dessa matriz. A gente poderia te enquadrar nesse rótulo de liberalismo igualitário, ainda que insuficientemente igualitário, como o senhor mesmo coloca em sua obra, e, enfim, progressista? RG: _ Olha, há um estilo mais ideológico, reconheço, por um lado, da educação no liberalismo igualitário, que era próprio do pensamento de Nino e por isso, quando fui aos Estados Unidos, estudei com gente que participa desse ideal de liberalismo igualitário, mas que também estão vinculados com o marxismo analítico. Quer dizer, vejo minha carreira acadêmica como um produto dessas duas linhas, onde há uma influência forte da ideia da democracia deliberativa, de uma ideia de autonomia individual, de Carlos Nino, e, por outro lado, eu diria ter um compromisso mais republicano, socialista, com uma ideia forte de autogoverno. Vejo uma confluência que se reflete nas coisas que escrevo e nas apresentações que faço. SL:_ Dessa matriz ou vertente que o senhor destacou, da democracia deliberativa, você destaca algum autor, além do professor Carlos Santiago Nino, que é, sem dúvida, uma referência, com uma excelente obra a constituição da democracia deliberativa, que a gente conhece, discute e é realmente interessantíssima? RG:_ Há muitos autores interessantes, como Joshua Cohen, Bernard Manin, Habermas. No entanto, a aproximação que tinha Nino sobre o tema e o que ele denominava uma concepção epistêmica da democracia é bastante particular e para mim esse é um ponto de apoio para as reflexões e escritos que fiz acerca de manifestações e protestos e isso não é o mais tradicional dentro do grupo de pessoas que estuda a democracia deliberativa. Há alguns autores como, por exemplo, Jane Mansbridge ou David Estlund, que disseram alguma coisa que é relevante nesse sentido, mas no geral penso que tenho uma visão da democracia deliberativa que é

201 bastante particular. Há autores nesta área que creio que possuem uma aproximação mais elitista. Eu me aproximo ao tema de um modo mais crítico, no qual a opinião do dissidente, do crítico, é mais importante, porque é o ponto de vista ausente. Por isso dizer que participar ou compartilhar de um ideal de democracia deliberativa é importante, mas é insuficiente, porque há uma família muito ampla. SL:_ Você acha que há uma dificuldade no projeto de democracia deliberativa ativa na América Latina, e sei que você já comentou um pouco sobre isso em outras oportunidades, mas eu queria ouvir mais sobre isso. RG:_ Olha, eu entendo que a democracia deliberativa tem duas colunas centrais, dois pilares fundamentais. Um é a ideia de diálogo, deliberação, e o outro é a ideia de inclusão, por isso a necessidade de uma discussão entre todos os afetados. A América Latina fracassa ou tem uma falha em ambas as partes, porque não há diálogo. Em parte pelo que discutíamos antes; o cenário público está muito polinizado por um grupo de interesses, pelo dinheiro. E também fracassa em outra parte, a de inclusão, principalmente em relação a desigualdade, que é também mundial. Então tomo a democracia deliberativa não como uma descrição da realidade, senão como um ideal regulador para onde devemos ir. Eduardo Val (EV): _ Nesse sentido, no sentido de realizar o plural deliberativo, vejo até então, basicamente duas questões centrais. Um problema de certo descolamento, um importante descolamento, ante o poder público do Estado Constitucional de Direito e seus representados, e que, obviamente, esse descolamento prejudica o nível de intuição dentro dos espaços deliberativos, de concreção do consenso, de formação de uma movimentação que permita realizar os direitos dos administrados. E, por outro lado, temos também uma identificação clara que é uma captura dos espaços de deliberação coletiva, por parte das corporações, da própria Administração Pública, como também de grupos de interesses políticos econômicos. Então, diante desse cenário, minha pergunta é: como realizar esse ideal deliberativo? Quais seriam os mecanismos que poderíamos utilizar para resolver esses entraves que são um obstáculo para o diálogo, um diálogo real, e não fantasioso porque o Judiciário, por exemplo, na audiência pública, só estabelecerá esse mecanismo deliberativo, onde há participação e inserção social, quando fica esvaziada toda uma série de instrumentos, que terminam, dentro de um ponto de vista processual, limitando o acesso a audiência pública,

202 ou, como nosso colega já destacou, o que se diz da audiência pública que um é ouvido, mas não escutado. RG:_ Isso é importante. Primeiro queria deixar claro o porquê, desde uma concepção como esta, se valoriza a discussão, o porquê do ponto de vista do excluído ser tão importante. Porque justamente desde esta visão epistêmica a ideia é a construção da imparcialidade. A imparcialidade não no sentido de neutralidade, de não tomar partido, senão de saber tomar uma decisão onde todos os pontos de vista estão considerados, levados em conta. Desde esse ideal, quando há a ausência, como ocorre na América Latina, quando o que se encontra é a ausência sistemática de certos grupos, se pode prever que o sistema de tomada de decisões, o sistema com o qual se interpreta a lei e também o sistema com o qual se aplica a lei, começa a sustentar-se para favorecer alguns e prejudicar a outros. Um exemplo muito dramático está no sistema penal, tanto na Argentina, como no Brasil, como nos Estados Unidos. Temos sociedades muito heterogêneas e posições carcerárias muito homogêneas, somente um setor. Creio que isso é a expressão do modo em que o uso dos aparatos de coerção e o uso dos aparatos de aplicação da lei estão monopolizados por certo grupo, e de que modo a ausência sistemática de outros grupos impacta no sistema de tomada de decisões, fazendo com que o sistema de uso da coerção comece a se torcer. Há uma razão de princípios, há uma razão democrática, de que é necessário, é urgente, é obrigatório, recuperar, dar um lugar especial a estes pontos arruinados. O que se pode fazer? Há muitos caminhos, mas temos que ser conscientes de que a estrutura, tanto econômica como institucional de hoje não ajuda a dar soluções. Um exemplo das dificuldades, e logo poderemos falar um pouco das possibilidades, está no Equador. Modificaram há poucos anos a Constituição. Fizeram a Constituição num sentido exemplar para o mundo, com uma rama de poder dedicada completamente ao controle e transparência pública, com uma parte da Constituição que fala, de modo insólito, dos direitos da própria natureza. Bom, hoje os aparatos que aplicam e interpretam a própria Constituição declararam que é compatível com as cláusulas do bem viver ( buen vivir ) e do respeito à natureza a exploração mineral, a exploração petroleira e o uso da tecnologia nuclear. Isto é, há muitas reformas que são importantes de se fazer, mas que são esvaziadas de conteúdo cotidianamente.

203 Para mim um passo necessário do que se deve fazer, ainda com todas as limitações, é, como disse no último livro que escrevi 2, buscar conquistar ou romper a porta da sala de máquinas da Constituição 3, para permitir que os excluídos entrem a tomar controle sobre os modos em que se tomam as decisões. Dizer isso não é simplesmente retórico. Creio que efetivamente perdemos uma grande oportunidade quando as reformas constitucionais se dedicaram a, recentemente na America Latina, onde se está colocando muita energia nas reformas constitucionais, gastar energia na criação e incorporação de novos direitos e novos tratados de direitos humanos, mas se descuidando de tudo aquilo relacionado a organização do poder, [trecho inaudível] a sala de máquinas, onde se desencadeou um sistema de autoridade concentrada, de uma figura de presidente muito forte, no qual a autoridade segue concentrada. Então, nossas Constituições têm estruturas muito esquizofrênicas, digamos, com duas partes muito diferentes, que estão uma trabalhando contra a outra. SL: _ Eu acho muito interessante a maneira como o senhor trabalha a inserção das Cortes. Tem dois artigos, em dois livros que o senhor organizou, que eu acho muito bons, sobre o papel do Judiciário nessas novas democracias, se essa vocalização, isto é, se o Judiciário realmente poderia ser essa voz dos mais pobres. (...) Nesse cenário da América Latina, justamente a partir da tese de que nosso constitucionalismo é uma mistura desse liberalismo conservador, um toque de liberalismo, um toque de conservadorismo, o Judiciário conseguiria transcender em alguma medida para ser essa voz dos mais pobres? RG:_ Por um lado, a boa notícia é que temos muitos exemplos práticos que demonstram que efetivamente pode-se fazer muito, pode-se avançar e o poder judicial pode ser parte de um processo de transformação. Essa é a boa notícia, isso é possível. Em um momento se pensava que isso era impossível. Agora, é certo também que por questões estruturais que tem a ver com a formação dos juízes, a parcialidade dos juízes, a origem social dos juízes, os poderes que possuem, a capacidade de transformação é pouco interessante. Creio que hoje vemos que há exceções, há possibilidades de andar em outro sentido, mas eu insistiria com o ponto estrutural de fundo, ou seja, que os incentivos hoje existentes são incentivos constitucionais 2 O último livro publicado pelo autor, em novembro de 2014, foi La Sala de Maquinas de La Constitución, no qual faz um estudo minucioso da evolução das Constituições latino-americanas em suas continuidades, rupturas, semelhanças, influências e contradições. 3 Conforme a expressão cunhada pelo autor, é preciso romper com os espaços de poder limitados a determinados grupos, a fim de levar à cabo as reformas políticas necessárias, o que significa dizer que os Poderes Legislativo e Executivo devem ser democratizados, mitigando as influências do poder econômico, através da implementação de mecanismos decisórios que ampliem a participação popular.

204 que estão dirigidos em uma má direção. Então, existe a possibilidade, mas realmente estamos preparados para o contrário, não para criar diálogo, senão, em todo caso, para impedir a guerra. Não temos estruturas que ajudem a favorecer um diálogo democrático. EV: _ Na sua perspectiva, na sua visão... o senhor acaba de trabalhar essa ideia da história do constitucionalismo na América Latina, numa análise comparada, desde o início até o período contemporâneo, o trabalho termina em 2010. A pergunta que vou formular é a seguinte: com base nessa experiência, nesses estudos, você acha viável esse conceito de um ius comum latino-americano em termos constitucionais? E em que medida o senhor considera que esses estudos trabalhados a partir de categorias eurocêntricas podem ser úteis? RG: _ Bom, sou menos temeroso da influência anglo-saxônica ou europeia, na medida em que o Direito, permanentemente e desde o primeiro minuto, sempre esteve determinado por ideias estrangeiras. Quando Alberdi ou Bolívar reivindicavam o Direito local frente ao estrangeiro, na realidade ocultavam que eram defensores de, Alberdi, do constitucionalismo chileno em parte, Bolívar, do constitucionalismo britânico napoleônico. É dizer, a influência externa sempre existiu. Isso não me gera problemas, em todo caso a questão é o que retomamos, como o retomamos, etc. Agora, há traços comuns? Sim. Eu tenho uma visão um pouco menos otimista da que têm alguns que participam do grupo que é bem interessante. Eu creio que na maioria deles há uma esperança em relação a algo o qual eu sou um tanto cético, sobre transformações que podem vir de organismos (ou organizações) internacionais, como a Corte Interamericana de Direitos Humanos. E eu creio que há uma grande contribuição que os órgãos internacionais estão em condições de fazer, mas dado justamente o ponto de partida que tenho, que tem a ideia democrática do senso, me resulta menos atrativa essa visão. Creio que, insisto, os tribunais internacionais tem uma contribuição a fazer, mas acredito que o primeiro passo é recuperar a autoridade democrática e a possibilidade de que o cidadão participe e controle as decisões que se tomam em sua própria comunidade. Então, se há boas decisões, como há algumas boas decisões da Corte Interamericana de Direitos Humanos, se pode celebrar. Porém me custa muito entusiasmar-me com a ideia de que qualquer autoridade imponha a uma comunidade democrática o que é que se deve fazer. Primeiro, porque pode se equivocar, e, segundo, porque o processo que mais me interessa é o processo inverso, de como a própria comunidade ganha autoridade. Isso não quer dizer confiar no que dizem nossos próprios Parlamentos, nosso congresso, até porque eu não confio para nada. Tenho todas as razões para desconfiar de nossos Parlamentos.

205 Estou falando de uma recuperação da voz do cidadão, do cidadão excluído, dos grupos marginalizados. Tampouco é dizer que eles são os que devem dar as soluções, mas que eles têm que participar da construção das decisões e, diferentemente, têm que participar de modo protagonista. Eu resisto tanto a uma organização democrática onde a Corte Suprema, um Tribunal Superior, um Supremo Tribunal, impõe uma decisão, como, do mesmo modo, critico a ideia de que um tribunal internacional o faça, por mais que muitas decisões do Supremo Tribunal interessem ou muitas decisões de Cortes Internacionais sejam acertadas. Não me parece que se deva deixar, digo, se ater ou se abraçar a qualquer organismo que comece a tomar as decisões, porque amanhã muda a composição e mudam as posições, ou coisas desse tipo. SL: _ Eu queria só tocar num ponto que o senhor falou na palestra do Seminário da pósgraduação em Constitucional da Universidade Federal Fluminense, que foi sobre as audiências públicas. Eu estou trabalhando com a professora Margarida Lacombe e a gente vê tanto esse papel da audiência pública como diálogo da sociedade com a política, num modelo mais próximo, com o Ministro Gilmar Mendes, do Supremo Tribunal Federal, essa questão de judicialização da saúde e em relação ao regime prisional, quanto um modelo mais técnicocientífico. Ou seja, tem questões que são complexas, e essas questões políticas e sociais acabam, muitas vezes, se emaranhando em questões técnicas, que são complexas, por exigir expertise. Por exemplo, o tempo de vida útil de pneus usados, se podem ou não ser importado no Mercosul. Teve audiência para isso. Se o amianto causa ou não câncer, também. Eu queria ouvir mais sobre como essas audiências públicas estão se dando e acontecendo na Argentina. Aqui a gente ainda está tendo muita dificuldade, vez que é o próprio Ministro que convoca, não tem critério objetivo, tampouco para determinar quem vai participar, deixando a cargo do crivo do Ministro, uma enorme discricionariedade. Eu gostaria de ouvir mais um pouco como é essa experiência na Argentina e em que a gente poderia dialogar, trocar experiências, os pontos positivos. RG: _ Bom, me permita fazer aclarações. Primeiro é sobre os temas que se discutem. Interessa-me a audiência pública, os fóruns de discussão pública abertos e inclusivos, para todas aquelas discussões que sejam de desenho de política, ainda que sejam difíceis. Isso é compatível com dizer que logo as questões mais técnicas serão corrigidas ou precisas por especialistas. Eu estou convencido de que, sobretudo, as questões mais básicas e fundamentais tem que ser objeto de uma discussão. Dito isso, no geral, eu diria também que os tribunais que

206 convocam audiências públicas na América Latina são poucos, no Brasil é um, na Argentina outro, na Colômbia e Venezuela é mais importante. A experiência é bastante similar. De um lado, o atrativo, se discute, se mostra que a cidadania pode intervir de modo interessante, mas como diziam estamos a mercê dessa discricionariedade, que permite analisar, dizer quando se convoca, quando não se convoca, quem participa, como se participa e o que se faz com o que se diz nessa audiência. Então é uma ferramenta muito promissória, mas se organiza de certo modo, se institucionaliza de certo modo que hoje faz com que seja uma ferramenta de promessas e de muitas dificuldades. EV: _ Bom, Professor Roberto, com muitos compromissos acadêmicos tanto na UFF, como fora dela, eu te agradeço a sua participação, sua disposição. RG:_ Obrigado.