Encontro do Núcleo de Estudos em Psicologia da Faculdade Dom Bosco (Nepsi) Mesa-redonda Paradigmas de Pesquisa Em Psicologia



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PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 33 Encontro do Núcleo de Estudos em Psicologia da Faculdade Dom Bosco (Nepsi) Mesa-redonda Paradigmas de Pesquisa Em Psicologia Carlos Augusto Serbena Plínio Marco De Toni Mônica Dorrenbach Luna Luiz Renato de Moraes Braga Carlos Serbena O tema da mesa-redonda, Paradigmas de pesquisa em psicologia, tem as considerações de três professores. Começamos com Plínio Marco De Toni, falando dos paradigmas em neurociência, depois passamos a Mônica Luna, que estuda a psicologia sócio-histórica, encerrando com Luiz Renato Braga, na área da psicanálise. Para uma introdução rápida, o que é paradigma? Paradigma de pesquisa é um conceito que vem do epistemólogo Thomas Khun, que escreveu o livro com o título Estrutura das revoluções científicas. Para facilitar a compreensão, psicologia não tem um modelo só e, sim, vários modelos de conhecimento, tanto que na medida em que vocês estão percebem que, muitas vezes, a psicanálise não tem quase nada relacionado com comportamentalismo, que tem muito pouco relacionado com a psicologia sócio-histórica. São modelos de pensar o homem, de entender o mundo, de entender a subjetividade humana, diferentes. Ou

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 34 seja, são diferentes paradigmas. São formas ou modelos diferentes de construir seu objeto de conhecimento, com métodos de análise e de conhecimentos diferentes, de formas diferentes de chegar à conclusão. Então é possível afirmar que o paradigma, além de ser um modelo, é uma espécie de receita de bolo de como abordar a realidade, de como entender algo. Então, quando nos referimos aos paradigmas de pesquisa em pesquisa, falamos dos diferentes modelos ou diferentes formas de entender o homem, de entender esse conhecimento sobre o homem e de entender o comportamento que se coloca, que vai originar diferentes métodos e conclusões. Por isso, há um pequeno problema: o que é correto num paradigma muitas vezes é errado no outro. Por quê? Porque não se encaixa no modelo. Por isso há muitas divergências a respeito dele. Não são divergências simples; são divergências nos próprios fundamentos de entender a realidade, ou seja, nos próprios paradigmas. Então, ao realizar esta mesa-redonda, apresentamos três modelos de fazer pesquisa em psicologia, três formas. O que podemos ver aqui são três grandes modelos: as neurociências, um modelo mais recente; a psicologia sócio-histórica, uma abordagem mais social; e a psicanálise, representando a teoria dinâmica da personalidade. Vamos iniciar com o professor Plínio.

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 35 Plínio De Toni Quando se fala em pesquisa em neurociências, na verdade não podemos afirmar que seja uma área muito nova, porque existem várias pesquisas de neurociência desde a década de 30 ou 40. Já existe há tempos, é muito ampla e possui muitos campos, pois existem várias perspectivas, inclusive dentro da mesma área. Embora todas sejam biológicas, muitos pesquisadores trabalham com uma perspectiva mais química, por exemplo, a psicofarmacologia, que pesquisa os mecanismos neuroquímicos da memória, da atenção, da linguagem. Existem outras perspectivas, por exemplo, mais comportamentais ou cognitivas. Farei uma abordagem psicométrica cognitiva. Antes apresentarei um paradigma dentro das neurociências sob essa perspectiva e com alguns exemplos. Qual é nosso objeto de pesquisa na neuropsicologia, mas dentro das neurociências? É o cérebro, claro! Mas como estudar o cérebro sob uma perspectiva psicométrica? Por meio do produto do cérebro. Qual é o produto do cérebro? Há vários produtos, mas um deles é a cognição. Para investigar o cérebro, investiga-se a cognição. Por meio dessa relação, é possível investigar esse objeto de estudo, mas só mediante um método. Nosso método de pesquisa são os testes neuropsicológicos. Por utilizar os testes, trata-se de abordagem psicométrica, fazendo uma ponte através da cognição para poder chegar ao cérebro. Por exemplo, para estudar o córtex pré-

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 36 frontal, em que uma das funções é o planejamento, adotam-se os testes neuropsicológicos relacionados ao planejamento. De maneira indireta, chega-se ao cérebro pelas testagens. Outros exemplos: para analisar as áreas parietoccipitais, é necessário estudar a orientação espacial, uma das funções dessta área; para estudar o hipocampo, estuda-se a memória declarativa. É essa a relação entre cognição e cérebro. Com base no estudo de um teste que mede a orientação espacial, estuda-se o funcionamento das áreas parietoccipitais do cérebro, porque é ali que se encontra a orientação espacial, ali se produz a orientação espacial, pelo menos uma relação entre as áreas e a cognição. Há também outras formas. Vejamos um protocolo do teste WISC de uma criança atendida no Hospital das Clínicas, portadora de epilepsia de lobo frontal. O subteste labirinto é um teste que, praticamente, mede o planejamento. Ao comparar o protocolo com o de uma criança, percebemos muita diferença: a primeira criança não tem planejamento nenhum. Essa é uma maneira de medir o funcionamento das áreas pré-frontais. Outro exemplo: vejamos outro subteste que se chama dígitos, que funciona assim: você dá uma seqüência de números, o sujeito precisa primeiro repetir a seqüência na mesma ordem e depois repetir em ordem inversa. Utiliza-se um dos tipos de memória, que chamamos de memória de trabalho: manter a

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 37 curto prazo dois conjuntos de informação. Você precisa trabalhar com os dois ao mesmo tempo, que é aquela idéia de guardar um número de telefone para usar rapidamente. Enquanto guarda o número, pensase no número, você está trabalhando com vários conjuntos de informações ao mesmo tempo. Isso é um teste que, normalmente, quando medido em ordem inversa, pode medir a memória de trabalho. Qual é a idéia aqui? Memória de trabalho está relacionada com o pré-frontal. Outro exemplo é um teste feito pra medir a atenção, por isso se chama AC atenção concentrada. Qual é a idéia nesse caso? Você tem um conjunto de estímulos e a idéia é procurá-los todos na seqüência ao mesmo tempo. Essa é a idéia. Então precisa procurar em cinco minutos o máximo possível, sem repetir, sem pular, sem errar... Mas será que o AC também não mede memória de trabalho? O que mede a memória? Há uma série de variáveis, mas uma delas é a seguinte: quanto mais o sujeito volta e olha no modelo, menos ele faz e mais tempo ele perde olhando o modelo. Quanto mais ele precisa olhar para o modelo, significa que ele guardou os estímulos, todos eles, menos por isso ele precisa voltar, ou seja, será que o sujeito faz mais estilos? Será que isso está necessariamente ligado à atenção ou pode ser também uma medida de memória de trabalho? Por quê? Porque ele precisa guardar os três ao mesmo tempo, precisa procurar os três ao mesmo tempo, ou

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 38 seja, três informações ao mesmo tempo. Como, por exemplo, lá na idéia de números, que você tem que falar de trás para frente ou guardar um número de telefone, então isso aqui mede memória de trabalho? Isto aqui já é o exemplo do que pode ser feito em neurociência sob uma perspectiva psicométrica: se os sujeitos que forem melhor no AC e também num teste que mede memória de trabalho como, por exemplo, o dígitos, e aqueles que forem pior, forem pior naquele outro também, o que eu posso constatar? De repente, que o AC mede memória de trabalho, e não o dígitos. Ou seja, se uma correlação entre o AC e o dígitos for alta, bem alta, eu posso afirmar o seguinte: o AC não mede só atenção, mede também memória. Até porque as duas funções, atenção concentrada e memória de trabalho, dependem do pré-frontal, então pode ser que estejam muito relacionadas. Trabalhar com neurociência, como psicólogo, não é só isso, é óbvio. Há psicólogos que trabalham com pesquisas em neurociências numa abordagem um pouco mais biológica. Por exemplo, em Curitiba existe um laboratório, o Laboratório de Psicofarmacologia da Memória, que estuda efeitos de substâncias químicas da memória em ratos e em humanos. Então, é outro tipo de neurociência trabalhar com a neuroquímica. Com a psicometria, estamos trabalhando sempre com o cérebro, mas de forma indireta; na verdade com a cognição e, então, com esta fazemos essa correlação com o cérebro. Isso é neurociência, isso é

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 39 neuropsicologia. Foram só alguns exemplos para vocês terem uma idéia um pouco melhor. Mônica Luna A abordagem da neurociência é um pouco mais recente que a sócio-histórica, esta um pouco mais recente que a psicanálise. Então estamos voltando no tempo. Pesquisar é produzir novos conhecimentos, no nosso caso, sobre o homem, sobre o ser humano. Chamemos isso de psiquismo, de comportamento, cérebro... Nas neurociências, dispomos de técnicas para produzir conhecimento. A técnica que o Plínio apresentou é a dos testes, então, uma das dimensões da produção da pesquisa é a técnica. Apresentarei mais adiante a técnica da psicologia sócio-histórica. Quais fundamentos Vigotsky, fundador da psicologia sócio-histórica, usou pra produzir conhecimento em psicologia? Primeiro, para contextualizar, a psicologia sócio-histórica é uma abordagem, uma escola, uma corrente. São vários nomes que atribuímos para as psicologias aqui no Brasil. Mas ela nasce com outro nome, psicologia histórico-cultural, porque privilegia a dimensão histórica e a dimensão da cultura para compreender o ser humano. Quando ela vem para o Brasil, na tradução da obra do Vigotsky, ela se chama psicologia sócio-histórica. Diria Gilberto Gnoato: Porque temos preconceito com a cultura, então a gente aboliu o termo. Há várias explicações, mas equivale à psicologia histórico-cultural. Vigotsky, acho

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 40 que alguns aqui já fizeram a disciplina comigo e sabem um pouco da história dele, nasceu no mesmo ano que Piaget, em 1896, na cidade de Orsha na Bielo-Rússia. Ele nasceu, vocês imaginem, perto da Rússia, quase na Revolução Russa. Estou contextualizando para vocês entenderem aonde ele chega em razão do momento histórico. Se a abordagem fala de história, de sociedade, temos que contextualizar o próprio autor para entender por que ele fala certas coisas. Então ele nasceu num momento muito próximo da Revolução Russa. Aliás, 1917, o ano da Revolução Russa, é exatamente o ano em que Vigotsky se formou em Direito. Vigotsky tinha formação em ciências humanas e sociais. Interessou-se, primeiramente, por direito, estudou letras, enfim, estudou as línguas; interessou-se por teatro e medicina a certa altura da sua trajetória também. É essa formação variada que lhe deu sustentação para ficar muito curioso sobre o homem, sobre o ser humano, sobre a complexidade de seu comportamento para buscar conhecimento tanto nas ciências naturais como nas sociais. Então, bem no momento da Revolução Russa, ele se formou em direito. Em 1920 soube que tinha tuberculose e, em 1924, foi descoberto pela comunidade científica daquele momento. Na sua fala num Congresso em Leningrado, fez crítica ao estudo dos reflexos ou do condicionamento, porque desprezava o estudo da consciência. As abordagens da psicologia, nesse

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 41 momento, virada do século XIX para o XX, dividiamse em abordagens empiristas e racionalistas ou naturalistas e mentalistas. Pois bem, essa divisão deixa muito claro que uma maneira é estudar objetivamente o que tem para ser estudado do ser humano, na forma da experimentação, que é uma forma concreta e exclusiva de evidenciar o comportamento. Outra maneira é usar o racionalismo, pensar sobre as condutas e tentar explicá-las por outras vias, pela introspecção, por exemplo. O que Vigotsky observou, quando falou nesse congresso em Leningrado em 1924, é que a ciência, assim dividida, estava jogando o bebê com a água do banho fora, porque justamente a consciência seria a categoria que explica quem é o ser humano e que, quando estamos estudando os comportamentos e não queremos tratar dessa categoria, é porque é muito subjetiva, não sendo passível de verificação empírica e também não se traduzindo, quando pensamos sobre ela, de maneira fácil. Então o que ele queria defender naquele momento era como encontrar formas de estudar objetivamente a consciência. Como podemos entender a consciência na condição de um sistema interfuncional, alguma coisa que ativa todos os processos psicológicos atenção, memória, percepção..., permitindo ao sujeito o controle voluntário, consciente, proposital da sua conduta? Ele achava que precisaríamos descobrir formas de estudar isso que, até então, estavam sendo

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 42 desprezadas por mentalistas e naturalistas. Esse argumento passou a ser apreciado pela comunidade científica local. Entre as pessoas dessa comunidade estavam Alexander Luria, que de alguma maneira foi precursor da neuropsicologia, precursor de todo o estudo do cérebro relacionado aos processos psicológicos, e Alex Leontiev. Então formou-se um grupo de estudo do comportamento consciente do homem. Vigotsky convidou Leontiev, Luria e alguns colaboradores. Com isso ele formou o que, na época, chamavam de troika grupo de estudo e pesquisa. Eram ainda estudantes alguns deles, que aceitaram, junto com os professores Luria, Leontiev e Vigotsky, a tarefa de fundar uma nova psicologia pós-revolução. Naquele momento histórico, Vigotsky assumiu a tarefa de colocar a consciência como um dos objetos de estudo, usando a base marxista para reflexão sobre a realidade e os fenômenos. Ele usou o método de Marx, método histórico-dialético. O que é o método dialético? É a concepção de que a gente vai conhecer os fenômenos, de que vai conhecer a realidade, alternando nossa aproximação das condições objetivas, da natureza, da sociedade, da história e das condições subjetivas. Essa aproximação sucessiva de ambas as dimensões, objetiva e subjetiva, é que nos dá uma explicação. Entendendo que isso tudo constitui uma síntese, não há uma dicotomia, uma cisão entre o objetivo e o subjetivo.

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 43 Dessa forma, as condições objetivas são constituintes das condições subjetivas do ser humano. Quando falo objetivas, refiro-me à sociedade, à natureza, às coisas concretas que estão aqui; quando falo subjetivas, ao pensamento, à vida psicológica, à vida mental. Para Vigotsky, para a troika, para a Escola Soviética, o mundo objetivo é constitutivo do mundo subjetivo, isto é, uma concepção dialética. Essas coisas estão, na verdade, constantemente em interação. Um método de aproximação e afastamento alternados das condições objetivas e subjetivas desse homem que vê essa realidade. Bom, isso é o que eu chamaria de quadro epistemológico. Por outro lado, qual é o quadro teórico? Vigotsky fez alguns pressupostos teóricos, o que ele acreditava sobre o psiquismo humano, sobre os fenômenos da psique humana. Um dos pilares da concepção teórica de Vigotsky é dizer que o mundo psicológico nasce do mundo objetivo, concreto. Portanto temos suporte biológico para todas as funções psicológicas. Ele acreditava que, do mundo concreto, inclusive natural, biológico, é que nascia a possibilidade do mundo simbólico, do mundo subjetivo. Essas coisas estavam interligadas. Assim, o primeiro pilar afirma que temos um suporte biológico para nossas funções psicológicas. Segundo: que o funcionamento psicológico é constituído nas interações sociais cotidianas. É nas relações interpessoais que, desde cedo, desde

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 44 criança, eu vou constituir o mundo interno; é baseado nas relações externas, que vou constituir as relações internas. Então eu preciso do outro, da intersubjetividade para construir a intra-subjetividade. Primeiro, preciso de um suporte biológico; segundo, preciso relacionar-me com os outros, para constituir minha singularidade, meu psiquismo. Terceiro, essas relações sociais, essas interações sociais das quais eu preciso, para me constituir ou para constituir meu psiquismo, estão ligadas a um sistema simbólico. Aí nasce o conceito de mediação. Na verdade, a mediação é um grande conceito da teoria de Vigotsky. Ele disse que todas as nossas interações, todas as nossas ações no mundo são mediadas por algum tipo de instrumento, que ele chamaria de natureza simbólica de signo que, em conjunto, forma um sistema simbólico. O principal sistema simbólico, para Vigotsky, que realiza mediação entre nossas interações e funções psicológicas seria a linguagem. Por que estou falando sobre isso? Para vocês entenderem a lógica dessa abordagem: é o método dialético para investigação, ou seja, ir e vir do objetivo para o subjetivo, acreditar nos fundamentos biológicos, concretos do psiquismo, mas entendendo que é nas interações sociais que a gente se constitui, e que essas interações precisam, principalmente, da linguagem. Muito bem, se eu sei o quadro epistemológico, que é o método dialético, se eu sei dos pressupostos teóricos, tenho a possibilidade de

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 45 pensar, agora sim, num quadro técnico. Vigotsky acreditava que a linguagem era importante para constituir, então é obvio que ele defendeu o estudo da linguagem como acesso à consciência, como acesso ao tema psicológico. Então, atualmente, boa parte dos estudos em psicologia sócio-histórica se utilizam do estudo da linguagem na forma do quê? Em psicologia social, por exemplo, o estudo das representações sociais, da análise do discurso, estudo da linguagem dos seres humanos, para conhecer sua consciência, os significados, os sentidos que o homem traz. Essa é uma forma de produzir conhecimento nessa linha. O próprio Vigotsky, em sua obra, era muito interessado pela cognição. Boa parte da sua obra se baseia em estudos cognitivos. Ele estudou fenômenos cognitivos usando o experimentalismo. A intenção de Vigotsky era fazer uma síntese naturalista e mentalista. Ele achava que essa dicotomia estava equivocada, que era preciso fazer a síntese, considerando seu pressuposto dialético. Mas ele usou experimentos com crianças, seres humanos, para compreender as funções cognitivas. Só que ele usou isso subvertendo todos os critérios clássicos do experimentalismo, isto é, todas as variáveis calculadas nos experimentos clássicos foram subvertidas. Isso porque ele pensava o seguinte: se acredito que o sujeito se constitui na interação com o outro, por que eu, como experimentador, não posso

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 46 interagir com esse sujeito durante a investigação de seu comportamento, para dizer como ele reage à interação comigo, com o outro? Realizou seus experimentos de forma a interagir com esse sujeito e provocar comportamentos que revelavam o uso da consciência, que denotavam tomada de consciência no que ele estava fazendo. Ele não estava interessado em comportamentos, como ele chama, fossilizados, comportamentos já automatizados. Não estava interessado em comportamentos automatizados, mecânicos, mecanizados com o tempo; ele queria saber como se aprende o comportamento, como nasce o comportamento. Ele estava mais interessado na gênese dos processos, no nascimento dos processos e nos comportamentos conscientes, não-mecanizados. Estava interessado em que estudemos processos e não resultados, não a coisa pronta. Por isso, para finalizar, em termos da pesquisa na abordagem sócio-histórica, encontramos Vigotsky realizando seus experimentos adaptados a seus pressupostos, nos estudos da linguagem, principalmente na psicologia social. Esta seria, de maneira geral, a forma de produzir conhecimento na linha sócio-histórica. Luiz Renato Braga Na sala dos professores hoje de manhã, lembramos alguém que tinha sido meu professor, um colega, um engenheiro que depois se transformou em antropólogo. Ele era muito querido; já faleceu. Alberto

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 47 dos Anjos Parredes era espanhol e me deu aula de Antropologia. Um dia, fazendo uma prova do Alberto, havia uma pergunta relativa a um antropólogo funcionalista chamado Morislau Malinovisky, que tinha realizado todo um estudo sobre trogleendeses, os progleandeses e a relações de parentesco. Malinovisky era um funcionalista, um antropólogo americano, que dizia: aquilo que Freud chamava de complexo de Édipo não era universal, porque naquela tribo os filhos dormiam com as mães, a interdição de incesto não existia... Então essa história do Freud, de que sempre havia em toda sociedade a interdição do incesto, era uma história furada. Freud estava errado. Mas quero lembrá-los de que nessa tribo os filhos podiam dormir com as mães, mas parece que os sobrinhos não podiam dormir com as tias. Então essa interdição existia. Não que ela não existisse, mas como Malinovisky tomava e fazia a leitura do que Freud chamou complexo de Édipo dessa forma. Ele dizia que Freud estava errado porque aqui não existe a interdição do incesto; as mães podem manter relações sexuais com os filhos. Bom, para Malinovisky, essa noção de complexo de Édipo que Freud disse ser universal não era universal. E tínhamos prova de Antropologia e lá estava a pergunta de como Malinovisky considerava a questão do Édipo. Respondi na prova que Freud considerava Édipo universal. Quando entreguei a prova e recebi a minha nota (um 5), argumentei que a resposta estava

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 48 ali, que para Freud Édipo era universal, etc. Então o professor disse: Mas não lhe perguntei de Freud e, sim, de Malinovisky, por isso sua nota está pela metade. Entendo que você entende que Malinovisky pensava diferente, por isso você pôs aí. Eu sei disso, você já discutiu isso comigo em sala de aula. Bom, ele era o professor, eu, o aluno e, logo à noite, aprendi uma lição para o resto da minha vida. Malinovisky, para dizer o que dizia, baseava-se em toda uma concepção, em toda uma epistemologia. Freud, para dizer o que dizia, em outra epistemologia. Então por mais que pudéssemos comparar ou relacionar Freud com Malinovisky, não o podíamos fazer na sua totalidade, porque as epistemologias, os fundamentos eram diferentes. Então iniciei com esta anedota para dizer que o que mais importa em relação ao que a faculdade está promovendo hoje é que vocês percebam haver epistemologias diferentes em cada uma dessas áreas de conhecimento, dessas disciplinas, dessas ciências, seja lá qual nome queiramos dar para isso: neurociências, visão sociocultural ou psicanálise. Então, quando vocês forem analisar uma disciplina, forem pensar a neurociência, a histórico-cultural ou a psicanálise, por mais vai-e-volta, por mais comparações que possam fazer entre essas três disciplinas, não se esqueçam, por favor, disso. Merleau-Ponty foi um filósofo muito interessante, que dizia fenomenologia à fenomenologia com crase, um método

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 49 fenomenológico. Então, à neurociência, um método neurocientífico, à sócio-histórico ou histórico-cultural, método histórico-cultural, e à psicanálise, o método psicanalítico. Não queiram ler a psicanálise, numa comparação com a neurociência, pelo método neurocientífico, porque não vão conseguir; vocês promoverão uma avalanche na cabeça. Não queiram ver a sócio-histórica pelo método psicanalítico ou tentando aplicar a associação livre àquilo que a sóciohistórica diz, por mais que essas três disciplinas lidem com algo comum a elas: o homem, o objeto que elas recordam. O que interessa ao Plínio nas pesquisas em relação às neurociências, por mais que toquem o pensamento, não é a mesma coisa que interessa ao psicanalista, tanto que o trabalho que se faz pelo neurocientista não é o mesmo que se faz pelo psicanalista. Eles podem ser complementares, interrelacionais, mas o que se espera de uma análise e da aplicação de uma testagem neuropsicológica são coisas diferentes, tanto na sua razão de ser, quanto no seu resultado. É obvio que podemos trabalhar juntos, trabalhamos juntos lá no Hospital de Clínicas. O Plínio conhece: temos uma colega, a psicóloga Maria Joana Mader, que trabalha na neurologia junto com a Sara, uma psicanalista. Eles fazem a reunião conjunta da neurologia a respeito desses pacientes que o Plínio trouxe aqui pra vocês, porque lá eles operam inclusive os pacientes de epilepsia, e existe toda uma discussão se o

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 50 atendimento deve ser neurológico ou psicológico. Existe toda uma área agora, em que a Sara está trabalhando, com as pacientes portadoras de histereopilepsia, ou seja, que não é uma epilepsia, mas um sintoma histérico. Com todo o jeitão de epilepsia, mas não é epilepsia. Então, essas pacientes estão sendo atendidas pela Sara; as outras, que têm epilepsia, pela Maria Joana. É importante cada um de nós, quando escolhe uma dessas áreas de trabalho, ter muito claros quais são seus fundamentos e tentar procurar sempre pensar que deve haver, entre seus fundamentos, sua aplicação e seus resultados, uma coerência interna. Vocês não precisam discutir o que é mais ou menos verdadeiro, o que é melhor ou pior. Vocês precisam sempre perguntar ao Plínio e esgotá-lo de perguntas sobre os fundamentos da neurociência e se aquilo que ele diz sobre o que é neurociência corresponde aos resultados e às aplicações práticas da neurociência. Vocês têm que fazer isso comigo, vocês têm que fazer isso com a Mônica. E um dia, talvez, vocês saiam da faculdade dizendo: Bom, dessas coisas todas, aquela com a qual eu quero trabalhar é esta. E vocês terão que sair da faculdade sabendo que isso com que vocês vão trabalhar é algo que tem limite, daí ser fundamental que vocês, quando estudam, por exemplo, a psicanálise, saibam qual é o objeto de estudo e de pesquisa dela, quais são suas leis de funcionamento, qual é o método que aplicamos a

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 51 esse objeto para obter certos resultados. E quais são as condições para a aplicação desse método ou sob que condições esse método se aplica e essa pesquisa se pratica. Porque Freud disse em 1912, num texto chamado Alguns conselhos aos médicos que praticam a psicanálise, que, em psicanálise, em função de seu objeto de estudo, pesquisa e tratamento conhecíveis, quando estou tratando estou pesquisando ao mesmo tempo. Aqui não existe algo em que, primeiro eu pesquiso, depois eu trato; à medida que o sujeito está sendo tratado, ele está fazendo parte de uma pesquisa, porque vocês sabem que esse tipo de saber aqui é um saber que tem uma estrutura diferente da estrutura do saber da consciência; não se opõe a ele, mas é diferente dele; organiza-se de forma diferente dele, manifesta-se segundo aquilo que a gente chama de leis de funcionamento do inconsciente e das formações do inconsciente, os sonhos, os atos falhos, os chistes, etc. Então, na medida em que esses objetos não guardam a mesma relação com o saber dos outros objetos, por exemplo, da neurociência e da sóciohistórica, o que vocês têm que tentar pensar quando pensam numa pesquisa, seja na área que for, é nos fundamentos. Porque se vocês estiverem bem fundamentados sobre o que é de uma psicanálise ou o que é de uma neurociência ou o que é da sóciohistórica, quando receberem um paciente no consultório, vocês poderão reencaminhá-lo. Minha

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 52 preocupação é sempre muito clínica, eu sempre insisto nisso, ou seja, como é que eu vou saber do que se trata naquele paciente? No caso de quem se enveredou pelo campo da psicanálise, a gente sabe que é o lugar, certo? Porque se trata do saber, que é saber da ordem do inconsciente, porque se trata de um saber que não é da ordem da consciência. Insisto sempre que o melhor modo de eu poder me formar em relação a esse saber é na própria análise. Ou seja, quem quer fazer algum tipo de psicoterapia, quem quer exercer algum tipo de psicoterapia não pode deixar de antes realizar uma pesquisa sobre si mesmo. Quando estamos falando em pesquisa, o modo como qualquer um de vocês que deseje ingressar no campo da psicoterapia, seja ele qual for, não pode deixar de antes fazer uma pesquisa sobre si mesmo. Esse é o modo mais legítimo de se tornar um bom psicoterapeuta ou um analista. Ninguém se transforma num analista, se não passar pelo menos por sua análise. Isso é imprescindível. O resto podemos discutir, a teoria, etc. Mas a análise... Essa pesquisa visa a passar antes pelo próprio sujeito. Isso não é assim na neurociência, não é assim, necessariamente, na sócio-histórica, mas isso é assim na psicanálise. Não porque a psicanálise queira, não porque a psicanálise ache interessante, não porque os psicanalistas precisem ter pacientes, certo? É verdade, eles também precisam, mas não é por isso que insistimos em que o psicanalista se

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 53 analise. Insistimos em que o psicanalista se analise pelo fato de que seu modo de ser afeta esse tipo de saber, que é justamente o objeto de pesquisa da psicanálise. Não é pela leitura, não é pela consciência; é pelo exame do próprio inconsciente... Para qualquer um de nós saber da existência do inconsciente não existe outra forma, se não se analisando. E não que eu não possa saber disso teoricamente. Mas só teoricamente, só no campo da leitura, só no campo da consciência, eu não atinjo o que é da psicanálise, porque o que é da psicanálise tem relação com essa outra maneira de articulação do saber, que é o inconsciente. Porque isso aqui não é oposto à consciência, mas também não funciona do mesmo modo que a consciência funciona. Há aqui um saber. Só que há um saber, do qual não tenho consciência plena. Há em mim um saber, do qual eu tenho consciência; sou ciente de algumas coisas em mim, mas não sou totalmente ciente de algumas coisas em mim. Freud descobriu ser possível aplicar o método, o método de associação livre, com uma condição: que a própria via de funcionamento, que se depreende da minha inclusive, que é a transferência, ou seja, a pesquisa analítica que se confunde com a clínica analítica, ela se repete, acho que posso dizer isso, a própria estruturação do sujeito, se nós, na condição de sujeitos, nos estruturamos em relação ao outro. O tratamento analítico repete a necessidade de que

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 54 possamos vir a saber disso que se tornou inconsciente em nós, da relação desse outro. É necessário que construamos uma nova relação, dentro da qual essas coisas vão reaparecendo, e essa nova relação é construída na medida da transferência com o analista. Aí é que poderemos fazer toda essa pesquisa com o inconsciente. Então a única coisa que quero lhes dizer e acho importante termos esse tipo de seminário aqui na faculdade, para vocês perceberem que, dependendo do objeto de pesquisa, o método é completamente diferente, os resultados são completamente diferentes, os objetivos são completamente diferentes. Vocês não podem esquecer isso. Portanto não comparem nem tentem comparar dois tipos de epistemologias diferentes, para saber qual é a mais verdadeira. Saiam dessa! Exija do seu professor de Psicanálise tudo o que ele puder dizer sobre a psicanálise numa coerência que se apresente interna do sistema analítico. Se venho aqui até vocês e digo alguma coisa que não combine nessa seqüência, é porque ou o sistema não é coerente ou, então, estou transmitindo isso muito mal. Então vejam: qual é o grande interesse disso? Dependendo do objeto que você tem de estudo, há um método e um resultado. Dependendo do objeto que você tem de estudo, há um método, as condições de exercício desse método e os resultados. Poderíamos falar muito mais sobre isso e enfatizar: Que bom a psicanálise não ser necessariamente

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 55 objetiva! Ela se ocupa do sujeito, etc.. Mas o que me interessa é transmitir isto. Se vocês forem avaliar algum tipo de epistemologia, pensem no objeto dessa epistemologia e no método aplicado a esse objeto, porque desse modo vão poder pensar um pouco nos resultados disso. A questão é que essa epistemologia tem uma coerência interna suficiente. Se não tiver coerência interna suficiente, não funciona. Então, vejam: quando colocamos o inconsciente no centro das coisas, a relação que o próprio saber, a relação que a própria ciência muda, não é a mesma. Assim, o modo de pesquisar o inconsciente, como ele é um objeto diferente da consciência, diferente do cérebro, diferente das questões sociais, etc. O modo de pesquisá-lo também se torna diferente, ele precisa de outro método. Em Freud isso é muito claro, uma coisa fica muito conectada a outra. Porque Freud não foi alguém que de maneira nenhuma construiu uma teoria e depois tentou correr atrás de encaixar-se nessa teoria. Tudo o que Freud construiu, tudo o que escreveu partiu da clínica, partiu da experiência. Ele foi experimentando e substituindo o método da hipnose pela associação livre, porque percebeu que os sintomas não funcionavam exatamente do jeito que a hipnose funcionava, então aquilo não dava muito certo. Porque, tudo bem, curava o sintoma hoje, mas amanhã, quando ele voltava à casa da paciente, ela apresentava outro sintoma. Ele começou a ver que isso tinha a ver com a presença dele lá ou não.

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 56 Então começou a perceber que entre ele e a paciente havia alguma coisa que interferia no tratamento. Essa é outra questão para trabalhar em relação à psicanálise também. Para as ciências experimentais, nas ciências cognitivas, isso que a Mônica disse, o pesquisador e o objeto tentam sempre manter um afastamento ideal. A psicanálise é um tipo de disciplina em que o pesquisador e o suposto pesquisado estão completamente ligados um ao outro e essa ligação, que se chama transferência, faz parte e é objeto da pesquisa também durante o tratamento. Ou seja, o modo com que me relaciono com ele, que escolhi para dizer as minhas coisas, diz de mim... então não existe absolutamente, em psicanálise, essa separação entre o pesquisador e o objeto de pesquisa, se o objeto de pesquisa é o sujeito, o pesquisador e o sujeito, ambos numa relação de absoluto, intricado. E essa relação já diz do modo como o sujeito foi procurar esse analista, já diz de suas preferências, das suas escolhas, etc. Essa relação que a gente chama de uma relação de transferência, relação necessária ao funcionamento desse método. E não só é necessária, ela é intrínseca ao funcionamento desse método, porque a transferência é própria do funcionamento do inconsciente, porque a transferência é própria da neurose. Freud não inventou a transferência; ele a percebeu como própria do funcionamento psíquico. Ele se utilizou disso dentro do tratamento, percebeu

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 57 que isso tinha importância no tratamento. E a própria análise da transferência faz parte dessa pesquisa também. Então a pesquisa em psicanálise acaba coincidindo com o tratamento analítico. Não existe, por exemplo, uma separação em psicanálise, como existe em outras epistemologias, entre um contexto, por exemplo, de descoberta, o que Thomas Kuhn diz. O contexto da descoberta e o contexto da verificação. Então eu descubro e verifico se aquilo é verdadeiro ou não. Na psicanálise não. Ao mesmo tempo em que estou descobrindo, estou verificando. Além do que a psicanálise é uma disciplina que descobriu um saber em tudo aquilo que não dá muito certo. Eu sempre brinco com vocês e digo: Só pode ser louco o sujeito que vai procurar alguém que diz: Ah... nós só podemos ser loucos em acreditar em Freud, porque Freud disse tudo aquilo que não dá certo, tudo aquilo onde você tropeça, tudo aquilo que você não quis dizer e disse, tudo aquilo que você sonha, tudo aquilo que você não quis fazer mas você faz, apesar de você não querer fazer; é o lugar da tua verdade. Que loucura isso, não é?! Ou seja, o lugar da minha verdade não é o lugar a partir do qual eu possa ter mais conhecimento. Isso é uma coisa também interessante que eu penso a respeito da psicanálise e que ela traz para a gente: o fato de que talvez o aprimoramento de cada um de nós não passe por um acúmulo de conhecimento. Nós substituímos conhecimento, nós acumulamos conhecimento. Numa

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 58 coisa meio dialética, numa coisa meio de tese, antítese e síntese que dão o passo a mais em relação a essa tese, a essa antítese, e vai formar, vai formar, vai formar... sem fim. Quer dizer, nós não aprendemos por acumulação; aprendemos por substituição. Aprendemos a modificar as relações entre aquilo que a gente sabe. Foi possível perceber as diferenças que há entre essas coisas todas? Quando vocês quiserem estudar a sócio-histórica, vocês vão pegar um autor da sócio-histórica e estudá-lo até esgotar e vão medir isso dentro da sua teoria; quando quiserem estudar neurociência, vão fazer a mesma coisa; e quando quiserem estudar psicanálise, idem. Não saiam daqui com aquela idéia infantil. Ah, não, mas qual é a melhor? Não existe. Qual é a mais verdadeira? Não existe. Cada uma tem que ser verdadeira ou coerente dentro dos seus princípios e dos seus fundamentos. Não existe a que seja mais verdadeira, a que seja mais correta, a mais abrangente, uma teoria que abranja tudo, não, não, não. Papai Noel não existe, não existe isso, certo? Carlos Serbena Pessoal, vou só colocar ali, daí vou abrir para vocês fazerem um debate de modo geral, se vocês quiserem colocar alguma coisa. Acho que ficou claro, que aqui o objeto é o cérebro, praticamente o funcionamento dele, para avaliar a cognição. A sóciohistórica, a consciência ou o processo de consciência,

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 59 Priscila (aluna): e a psicanálise, o inconsciente. O objeto, ou seja, o que cada uma diz que estuda ou aborda ou procura abordar, com seus diferentes métodos. Vou abrir o debate pra quem quiser perguntar alguma coisa ao Luiz Renato, à Mônica ou ao Plínio. Eu queria perguntar à Mônica e ao Plínio a respeito desse limite que Luiz Renato falou, porque cada abordagem tem seus limites. Mas o que seriam então esses limites? Seria encaminhar, digamos, se eu vejo que não posso tratar pela neurociência um caso de histeria, por exemplo? Ou eu não sei como definir histeria, talvez com outro nome, pela abordagem sócio-histórica ou pela neurociência, não é? Então, um caso de histeria, por exemplo, como a neurociência iria tratar? Ela encaminharia o paciente a um psicanalista ou existe alguma forma de tratar a existência da histeria? E para a abordagem sóciohistórica também, porque me parece que, através do simbolismo, da linguagem, cairá então num campo psicanalítico, que seria da transferência, do recalque, porque essa idéia do recalcado já não entraria numa abordagem sócio-histórica. Então não sei até que limite é esse que Luiz Renato comentou. Seria encaminhar o paciente ou existem outros métodos? Cada abordagem tem seu método? Mônica Luna Vou começar. Bem, Priscila, quando Luiz Renato está falando de limite, está falando de limite da própria abordagem, do próprio olhar para produzir

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 60 conhecimento, uma vez que está olhando para determinado objeto. Você viu que o Carlos separou... Estão lá os nossos objetos. Então cada um de nós, cada uma dessas abordagens está tentando compreender aqueles objeto e todas as suas relações com outras questões. O limite está dado porque, por ver, você não está olhando esse outro fenômeno, ele não está no seu foco. Por isso você tem um limite na produção de conhecimento sobre ele. Por exemplo, pensando na psicologia sociocultural, ela não tem produzido grandes conhecimentos, ou seja, está começando, está engatinhando ainda na área de clínica. A psicologia sócio-histórica oferece fundamentos. Vigotsky deu muito mais fundamentos, como eu lhes falei, para o trabalho com a educação, para o trabalho com a comunidade, o trabalho com a psicologia social. Então ela não está preocupada em explicar ou descrever fenômenos da psicopatologia como esses que você está colocando. Então você terá dificuldade de encontrar um psicólogo sóciohistórico trabalhando com a clínica. Com a abordagem sócio-histórica não é impossível, só estou dizendo que não houve tempo ainda. Estamos vendo o próprio Fernando Rey fazendo tentativas agora de adaptar, vou colocar assim, pensar o que Vigotsky falou à luz do trabalho na clínica. Mas Vigotsky não estava preocupado com isso e, sim, em descrever como é essa relação da educação, da escola. Pode ser interessante para desenvolver, por exemplo,

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 61 conceitos científicos e aumentar a possibilidade do comportamento consciente. Então essa limitação tem a ver com isso, Priscila, muito mais do que a limitação. Isso acontece também de um profissional de psicologia para outro, por sua abordagem, seu seguimento de escolha de trabalho, limitações no sentido de esgotei as minhas possibilidades de trabalho aqui, tem que pedir a outro colega, não da mesma abordagem, mas sob outra abordagem que assuma. Tente ver de outra maneira como lidar com esse fenômeno. Mas isso não importa necessariamente, porque não dei conta nessa abordagem, não estou dando conta... Com um profissional, talvez, isso também possa acontecer. Carlos Serbena Respondido? Priscila Não atenderia caso clínico? Mônica Luna A psicologia sócio-histórica não está voltada, essencialmente, para o trabalho com a clínica. Você sabe que é uma área de trabalho da psicologia, são várias áreas... Aqui estamos falando das abordagens, mas, na psicologia, chamam-se áreas de aplicação. A escola, a clínica, a organização são três grandes áreas e há outras emergentes agora. Vocês estão vendo: a psicologia do esporte, a psicologia jurídica... Então a psicologia sócio-histórica é uma abordagem histórica que não teve ainda grande desdobramento

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 62 na área clínica. Usando exemplo sobre o que você pediu esclarecimento. Então ela está limitada nesse aspecto ainda. Priscila Para a neurociência, parece que complica ainda mais, né? Plínio De Toni Pelo contrário, acho que nem tanto. Porque quando eu falei, na verdade eu puxei mais para a questão de possibilidade de pesquisa, muito mais até do que da questão epistemológica. Mônica fez o contrário, Luiz Renato também, mas na neurociência existe uma área que é a neuropsicologia. E dentro da neuropsicologia fazemos as duas coisas: trabalhamos com pesquisas e existe a neuropsicologia clínica. Então vou tentar responder sua pergunta: como eu faço para caminhar pra lá ou pra cá? Vou dar um exemplo: minha primeira paciente tinha uma queixa bem específica, uma queixa de amnésia: Eu não consigo lembrar as coisas e acho que estou com problema neurológico, mas fui ao neurologista e não apareceu nada, como quase sempre não aparece. Tudo bem! Então vamos fazer uma avaliação... Então veja: quais são as formas clínicas de neurociência? Você tem a avaliação neuropsicológica e a reabilitação cognitiva, porque o foco é a cognição, porque apesar de trabalhar com o cérebro, trabalhamos com o cérebro de forma indireta, o foco é a cognição, como o Carlos afirmou. Fiz uma triagem

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 63 lá, quase não precisou fazer avaliação nenhuma porque, na triagem, a situação praticamente se resolveu. --- Você esquece as coisas? --- Eu esqueço. --- Então me diz uma coisa que você esqueceu. --- Ah, hoje eu me esqueci, por exemplo, de buscar meu filho na escola. Luiz Renato Braga Então não esqueceu! Plínio De Toni É, não esqueceu! (Risos) Esqueceu de ir buscar (risos), não esqueceu que esqueceu... (risos). --- Está bom! Que outra coisa que você esqueceu? --- Ontem, por exemplo, meu filho chegou da escola e eu não tinha feito almoço. Ele ficou sem comer!. --- Me diz outra coisa que você esqueceu. --- Ah! Meu filho.... E tudo era o filho, filho, filho... Mas como foi o primeiro paciente, não precisava, mas eu fiz a avaliação. (Risos) Então, o que aconteceu? Eu fiz uma avaliação neuropsicológica, não precisava ter feito. Ali na triagem, na conversa de cinco minutos, já resolvi. Mas eu fiz, avaliei atenção, memória e outras funções cognitivas e não deu nada, não tinha nada. A mulher não tinha nada! Perfeita, a memória perfeita, a atenção, tudo, tudo! Claro, é obvio! Eu encaminhei para uma psicoterapia. Por quê? Porque a questão dela não era cognitiva, era qualquer outra coisa,

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 64 menos cognitiva. Familiar, emocional, qualquer outra coisa, então foi para uma psicoterapia. Mas a questão é a seguinte: quando a gente fala de limite, acho que aí está a essência, a base das principais brigas entre as teorias, se você não delimitar o objeto. Porque quando é assim, o objeto de estudo da neurociência é a cognição, mas a da sócio-histórica também é a cognição. Não deixa de ser também na psicanálise, mas é ao contrário, não é? É a não-cognição. Enfim, o objeto parece o mesmo, mas não é, é muito diferente. O que estudamos, por exemplo, quando eu digo assim linguagem? Vou estudar a linguagem dentro da neuropsicologia, então vou estudar o quê? Vou estudar os mecanismos cerebrais da linguagem, estudar os tipos de afasia... Que áreas do cérebro estão relacionadas com a linguagem? Então é isso, o objeto de estudo é a linguagem, mas alguns aspectos da linguagem. A sócio-histórica é outro sistema, é como a linguagem que produz a consciência. É o mesmo objeto de estudo? É, de uma forma ampla, mas tem aspectos diferentes. Então são essas diferenças que delimitam o objeto e que vão dizer das limitações. Priscila Então passa a bola para frente? Luiz Renato Braga Não é que passa a bola para frente, é que você não pode querer ter o domínio de todos os saberes. Não é possível isso. Há um limite para cada um de nós.

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 65 Então, perfeito o que o Plínio disse, ou seja, segundo ele percebeu, aquilo que ele sabia e tinha diante de si lhe dizia que não era para ele trabalhar com aquela paciente, porque ele escolhera trabalhar em outra coisa. Mas ele tem que ser suficientemente bem informado em neuropsicologia para fazer essa avaliação, como eu tenho que ser suficientemente bem informado em psicanálise para, quando eu receber alguém que me diz ter um déficit de memória, mas não me traz nenhum conflito psíquico que o justifique, não me traz nenhuma história familiar ou pessoal em que esse déficit de memória possa ser um sintoma. Eu não vou trabalhar com isso, gente. Vou encaminhar para um neurologista, porque essa pessoa pode ter tido um AVC e, se eu continuar insistindo em que fique no meu divã, vai morrer nele e eu vou ter que responder a um processo ético por isso. Então, no que estamos insistindo é que temos de fazer uma escolha e temos que trabalhar o melhor possível dentro da escolha que fazemos. Porque, tendo muito claro o que é da psicanálise, tenho muito claro também o que não é da psicanálise. Posso até nem saber direito sobre o que é, mas sei que não é para mim. Conheço o caso de uma menina de 4 anos, que foi levada a um psicanalista por um problema de fala e, depois de uma consulta com os pais dela, de uma consulta com ela, de outra com os pais, depois de levantadas todas as hipóteses genéticas, inclusive porque ela já tinha cariótipo feito, tinha ido ao

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 66 neurologista, etc., diagnosticou-se como problema funcional, neurológico. Essa menina foi ao psicanalista que, ao final da consulta, disse: Essa criança não fala porque tenha qualquer sintoma; ela não fala ainda, porque provavelmente sofra do que se chama anatria, que é um retardo de emissão de linguagem. Veja a importância disso! Era um psicanalista que definiu aquilo como não-tratável pela psicanálise e não se tratava de algo que dissesse respeito à psicanálise. Não é porque alguém vai ao seu consultório que tenha que fazer análise. Para isso servem as entrevistas, percebe? Então ele fez as entrevistas e disse: Não, essa criança não é uma criança que não fale por um problema de um sintoma dela e nem dela em relação aos pais dela. É uma criança que não fala por outra razão. Então o tratamento que nós temos que dar a ela é outro. Então os pais dessa criança devem procurar um fonoaudiólogo. Foi ao consultório de um psicanalista e saiu com receita para procurar um fonoaudiólogo. Veja que coisa decente, que coisa interessante! Por isso temos que ter muito claro a hipótese do inconsciente, como ele se manifesta, porque nós sempre vamos acreditar que, por trás do por trás do por trás do por trás, há uma razão. Por isso fica no meu consultório. Porque eu sou psicólogo e acredito no inconsciente, mas não sei muito bem o que ele é; sei que ele se manifesta por trás de alguma coisa, como se diz por aí. Então vamos esperar chegar ao

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 67 por trás. Não é assim... O inconsciente se manifesta na escuta, na fala, na linguagem... Não tem nada por trás. É bem possível com o tempo você fazer um diagnóstico, ver se é um problema relativo a uma manifestação e se é um conflito inconsciente ou se é um problema funcional ou lesional. É possível nós, psicanalistas e psicólogos, termos essa seriedade, porque consultório de psicólogo é balaio de gato é essa a impressão que as pessoas têm da gente. Porque acham que tratamos tudo e sabemos tudo, porque, como trabalhamos com um campo ainda não muito claro, então tudo cabe nele. Por isso acho que a gente ter que ter isso muito claro na nossa prática. E quanto mais estejamos bem informados, fica mais fácil. Fábio Thá Eu quero fazer uma pequena restrição a respeito dessa questão do objeto. Eu não penso que essas abordagens tenham cada qual um objeto diferente. Cada uma aborda o mesmo objeto por diferentes ângulos. Uma pergunta muito interessante de fazer é a seguinte: o que é que a gente sabe intuitivamente, sem precisar pensar, a respeito da gente? Há duas coisas que sabemos e que ninguém pode pôr em dúvida: que temos um corpo, que pensamos e que temos a experiência consciente disso. Mas não temos a mínima idéia do que acontece entre o corpo e a consciência. Nenhuma idéia, absolutamente nenhuma. A única coisa que sabemos de nós

PsicoDom, v.1, n.1, dez. 2007 68 mesmos, disso que chamamos nosso psiquismo, é o que passa por nossa consciência. Mas nossa experiência consciente não é o que está dentro de nós, não é o psiquismo. Basta pensar na nossa linguagem. A linguagem exige planejamento. Quando estou falando, estou planejando o que eu estou dizendo antes de falar. Quando estou falando, não sei qual é a palavra que vou dizer daqui um segundo, assim como já esqueci a palavra que acabei de dizer e, no entanto, estou usando regras, estou selecionando fonemas e morfemas, estou combinando-os em palavras, usando a concordância verbal, etc. Ou seja, estou executando um processo altamente complexo em tempo real, que nenhuma máquina de inteligência artificial conseguiu simular. Quer dizer: não fazemos a menor idéia daquilo que se passa entre o que acontece em nossa consciência e nosso corpo. Desde Platão os homens se dedicam a imaginar o que acontece entre esses dois pontos limites de nosso conhecimento espontâneo. Essa suposição tem recebido diversos nomes: alma, mente, psiquismo... Temos que ter muito claro que isso é uma suposição teórica e, o mais interessante de tudo, que essa suposição é nosso objeto de estudo. Afinal, o que a psicologia estuda? Essa coisa que imaginamos existir entre a consciência e o corpo, que chamamos de psiquismo. Algumas pessoas acham que não, que isso a que chamamos de psiquismo nada mais é do que um efeito secundário