Algumas considerações sobre a transcrição fonética nos Atlas Lingüísticos do Brasil. asil



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Transcrição:

Algumas considerações sobre a transcrição fonética nos Atlas Lingüísticos do Brasil asil Iara Maria TELES (Universidade Federal de Rondônia) Adelaide H. Pescatori SILVA (Universidade Federal do Paraná) Resumo: A transcrição fonética da fala nem sempre é algo consensual, devido às próprias limitações das ferramentas disponíveis para este fim, como observa Ladefoged (1990). Esse problema se acentua nos casos de fala espontânea. Pretende-se, assim, tecer algumas considerações sobre a problemática da transcrição do Questionário Fonético- Fonológico (QFF) dos Atlas lingüísticos do Brasil. Sabe-se que é quase impossível fazer uma análise acústica de todos os dados do QFF, por questões óbvias, e, além disso, uma transcrição fina talvez dificultasse o acesso aos dados por quem não fosse especialista em Fonética; mas, por outro lado, uma transcrição imprecisa pode levar a erros de interpretação. Palavras-chave: transcrição fonética; Alfabeto Fonético Internacional; Atlas lingüístico. Abstract: As Ladefoged (1990) points out, phonetic transcription is not a consensual matter, due to the limits of the available tools for doing it. The problems that lay beyond this issue are increased in the case of spontaneous speech. Our aim, then, is to make some considerations on the difficulties that arise from the phonetic transcription during the elaboration of the Phonetic-Phonological Questionnaire (PPQ) that constitute Linguistic Atlas in Brazil. It is well known that conducting an acoustic analysis of all the data is almost impossible and, besides, a detailed transcription may be difficult for non-phoneticians to understand. On the other hand, some errors in the transcription may result in a misleading interpretation. Keywords: phonetic transcription; International Phonetic Alphabet; Linguistic Atlas. 277

Considerando que, para descrever de forma fidedigna a realização da fala, independentemente de qual seja a língua em questão, o instrumento mais utilizado é a transcrição fonética, convidamos o leitor a refletir conosco sobre a importância dessa transcrição da fala a partir de Ladefoged (1990) em seu artigo Some reflections on the IPA após a convenção em Kiel, Alemanha, em agosto de 1989, da qual resultou a versão revisada do IPA. Para a Associação Fonética Internacional, pode haver várias formas de transcrição para um mesmo enunciado, e o objetivo do Alfabeto Fonético Internacional é prover um conjunto de símbolos para representar todas as possibilidades de sons das línguas do mundo. Seria, então, considerada a realização do som como base única. Entretanto, parece haver uma contradição sobre as bases teóricas do IPA, pois, ao mesmo tempo em que os Principles delineiam o objetivo acima, também determinam que The sounds that are represented by the symbols are primarily those that serve to distinguish one word from another in a language (LADEFOGED, 1990), ou seja, a base teórica do IPA é fonológica e não fonética. De acordo com Ladefoged, a Associação não é explícita sobre o que é um contraste fonológico. Assim, na convenção de Kiel, decidiu seguir sua tradição, qual seja, continuar com um alfabeto que possa ser usado de forma otimal por todos para descrever todas as línguas do mundo, apesar de pontos de vista diferentes a respeito. Isto posto, qual transcrição adotar: uma que reflita fatos lingüísticos sistemáticos (fonemas, alofones) do enunciado em questão, ou outra que vise somente uma descrição impressionista da fala? A transcrição sistemática, que mostra todas as características dos sons, permitindo, assim, a verificação de todas suas alternâncias, requer uma formação específica do pesquisador, sobretudo de análise acústica para a utilização de instrumentos de medição sonora. Além disso, como observa Ladefoged (1990), baseando-se em Lindblom (1990, apud LADEFOGED, 1990), uma transcrição fonética sistemática deveria contemplar toda gama de variações possível envolvida na produção de dado som, o que extrapola o nível segmental strictu senso e atinge fatos como pitch ou qualidade de voz. Por outro lado, para Abercrombie (1964, apud LADEFOGED, 1990), uma transcrição impressionista é aquela cujos símbolos representam intersecções de categorias fonéticas gerais. É 278

mais ampla e recebe este nome por estar baseada na impressão sonora que o pesquisador tem ao ouvir o som em estudo. Em geral, quando iniciamos uma transcrição, não temos uma postura impressionista, mas, sim, mais intuitiva, sendo aquela obrigatoriamente necessária só na investigação do balbucio pré-lingüístico da criança (LADEFOGED, 1990). Considerando que não há verdade universal independente do observador, fato que resulta na importância da tendência desse e de seu conhecimento lingüístico sobre a produção e percepção dos sons da fala, Ladefoged (1990) adota uma postura conciliatória com relação a essas duas visões e propõe que se deva considerar, ao fazer uma transcrição, que os sons contrastivos ocupam faixas dentro de cada dimensão fonética como traços, parâmetros ou escalas e os símbolos do IPA, portanto, representam tais faixas, o que torna desnecessário registrar, na transcrição, toda a gama de variação mencionada por Lindblom. 1 A Transcrição Fonética nos Atlas Lingüísticos do Brasil Sabemos que a transcrição fonética da fala nem sempre é algo consensual, sobretudo quando se trata de fala espontânea, pois há que se considerar as diferenças individuais de percepção dos sons da fala, o que pode acarretar diferentes interpretações e, conseqüentemente, diferentes transcrições fonéticas. Tendo em vista essa problemática é que o Comitê Nacional do Projeto Atlas Lingüístico do Brasil (ALiB), preocupado com a transcrição fonética e grafemática de seus inquéritos, tomou certas decisões com relação às transcrições das respostas aos questionários, conforme consta da ata de sua XI Reunião, realizada por ocasião do III Workshop de preparação de inquiridores em novembro de 2002 em Londrina/PR:... as respostas ao QFF [1] serão transcritas foneticamente por uma equipe nacional (de 6 a 10 membros), especificamente constituída para tal fim... Os itens do QSL serão transcritos foneticamente, em transcrição fonética ampla, entre colchetes... 1 QFF = Questionário Fonético Fonológico; QSL = Questionário Semântico Lexical. 279

A transcrição fonética dos itens do QSL será feita pelas equipes regionais e submetida, posteriormente, à equipe de especialistas encarregada da transcrição fonética do QFF. As questões de prosódia serão analisadas, com utilização de recursos computacionais, por um grupo de especialistas. À exceção do QFF, dos itens do QSL acima referidos, das questões de prosódia e da leitura de texto, todas as modalidades de questionários são objeto de transcrição grafemática. (AGUILERA; MOTA; MILANI, 2004) Aragão (2004), foneticista membro do Comitê Nacional do ALiB, ao abordar a questão problemática da utilização de símbolos que representam a variação de um som, tais como [ι] e [I], por exemplo, diz que... mesmo usando-se o IPA, a equipe que vai trabalhar com transcrições vai ter que tomar certas decisões uma vez que muitas vezes um símbolo pode ser utilizado, mas na realidade ele representa o som de outra língua e não de nossa língua, embora sejam semelhantes. Para ela ainda, até mesmo a transcrição dos itens do QFF deve ser ampla com o registro das variações especialmente diatópicas e diastráticas encontradas nos inquéritos, uma vez que o uso de símbolos como ι, I, ω, U, A,, }, F, por exemplo, não vai, certamente, marcar as variações que queremos descobrir ou confirmar. Tão complicada é essa questão que o Comitê Nacional, três anos após o evento de Londrina, reúne-se em Salvador, em agosto de 2005, e, dentre outras deliberações, faz algumas modificações sobre os critérios para a transcrição fonética a ser adotada pelas equipes de pesquisadores. São eles: A transcrição fonética das respostas ao QFF e ao QSL será ampla, entre colchetes, e serão priorizados os fatos fônicos considerados relevantes para a identificação das áreas dialetais brasileiras. Não serão marcados fatos fônicos como: desvozeamento dos segmentos (em geral em final de vocábulo); pouca perceptibilidade de segmentos (em geral em final de vocábulo); alongamento vocálico; distinção entre diferentes graus de palatalização das oclusivas dentais /t,d/ diante de /i/, transcrevendo-se sempre [ts, dz]; 280

distinção entre vogais nasais e nasalizadas pelo segmento nasal inicial da sílaba seguinte; distinção entre as vogais inacentuadas, exceto quando em posição postônica final de vocábulo; o grau de palatalização do [k,g] diante do /i/. Observamos que as normas do ALiB generalizam fatos de natureza distinta e que têm implicações também distintas para a transcrição e para a interpretação da realização do nível fônico da fala. Vejamos, apenas, alguns pontos: 1) segmentos de pouca perceptibilidade, se são pouco perceptíveis impressionisticamente, são, de qualquer modo, produzidos com energia razoável justamente para ser percebidos. Só não seriam percebidos se a energia de produção fosse muito tênue. Portanto, talvez haja gradação na percepção de sons, relacionada à taxa de energia empregada na sua produção. Assim sendo, se são percebidos de forma impressionística, deveriam constar da transcrição; 2) nasalidade de vogal por coarticulação com consoante nasal seguinte é fato de diferenciação dialetal (cf. ABAURRE; PAGOTO, 1996) devendo, portanto, ser transcrita; 3) palatalização das alveolares ou não palatalização delas pode se constituir marca dialetal e, portanto, deve ser considerada nas transcrições. Frise-se que tais observações vão de encontro à posição de Aragão (2004), mencionada anteriormente, e segundo a qual os símbolos utilizados na transcrição devem refletir fatos de variação que se quer descobrir ou confirmar. Acrescente-se que as deliberações do ALiB, expostas acima, podem ser discutidas, mas parece-nos imperativo que algumas transcrições, em especial aquelas de um detalhe fonético que carregue marcas de caracterização dialetal, sejam realizadas com o auxílio da fonética experimental em especial a acústica, dada a maior facilidade de acesso às ferramentas que existem para esse fim para garantir uma maior acuidade aos trabalhos. Nas Considerações Finais, voltaremos a esta questão. 281

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equívoco de registrar um segmento que não ocorre e, conseqüentemente, far-se-á uma caracterização fonética imprecisa do dialeto em questão. Além desse fato, observa-se, também, que a sílaba final de tarde não é completamente produzida, ocorrendo a seqüência de seu onset e do onset da primeira sílaba de sempre, ou seja, o encontro consonantal [ds]. Observa-se, também, durante o tempo de produção da fricativa alveolar, o início da trajetória dos formantes em especial de F2 de uma vogal anterior alta que se realiza plenamente em seguida ao [s]. Talvez a sobreposição das características acústicas de fricativa e vogal anterior alta é que dê a sensação auditiva da presença do [i]. Por isso, como, em princípio, o encontro [ds] não é esperado na língua, um pesquisador que realiza uma transcrição impressionista provavelmente será levado a registrar tal encontro como [dis], ou ainda como [d Z Is], o que, a exemplo do fato descrito inicialmente, não ocorre. É preciso considerar também que, embora o encontro [ds] não seja, necessariamente, característico de um dialeto específico, ele pode ser recorrente no brasileiro 2 em estruturas prosódicas semelhantes (sílaba átona final contendo onset oclusivo, seguida de sílaba tônica com onset fricativo homorgânico e vogal alta). Ainda é preciso observar, no espectrograma da Figura 1, que em sempre não ocorre um tap, mas uma aproximante alveolar ensurdecida. Note-se o aspecto contínuo do segmento que permite, inclusive, a ausência do elemento vocálico adjacente ao tap em grupos (cf. NISHIDA, 2005). Uma análise impressionista talvez impedisse de perceber a realização da aproximante. Por isso tudo, se o ALiB pretende fornecer uma descrição sobre os fatos fonéticos do brasileiro, fatos como este devem ser contemplados. 2 Usamos o termo brasileiro e não português do Brasil, pois Iara Maria Teles, sendo co-autora da obra: FERRAREZI Jr., C.; TELES, I.M. Gramática do Brasileiro. São Paulo: Globo, 2006, coerentemente, não poderá se referir a português do Brasil. O conceito de língua adotado por Ferrarezi não privilegia a estrutura, mas o funcionamento representativo da língua inserida em uma cultura. Cf. FERRAREZI Jr, C. Ensinando o brasileiro: respostas a perguntas de professores de língua materna (no prelo). 283

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A exemplo do que ocorria com o sintagma tarde sempre, da Figura 1, em beijar a vogal da última sílaba começa modal e termina aspirada, fato que é provavelmente responsável pela percepção de uma consoante aspirada, quando se ouve a sentença toda. E, como nos outros dois casos, o rótico do grupo de sempre é uma aproximante. Cabe frisar, a propósito dos dados aqui apresentados, que a ocorrência de vogais aspiradas não é fato raro: Catford (1977, apud LAVER, 1980) relata que o afastamento das pregas, no momento da fonação, é responsável pela qualidade de voz soprada (breathy), correlata da fricativa glotal. Não é de se espantar, portanto, que tal manobra articulatória se sobreponha à produção da vogal. 3 Considerações Finais As transcrições das respostas aos questionários do ALiB, que são feitas auditivamente, sem o uso de aparelhos e equipamentos experimentais, passam por uma série de revisões pelas equipes regionais, e, conforme decisões do Comitê Nacional, haverá uma equipe técnica especializada para a revisão final das transcrições das respostas ao QFF. Mesmo com todos esses cuidados, parece-nos ser um tanto problemática essa transcrição. Sabe-se que é quase impossível fazer uma análise acústica de todos os dados do QFF, por questões óbvias (dificuldade para compor uma equipe especializada em análise acústica, cuidados especiais necessários para obter uma boa qualidade na gravação dos dados, tempo excessivamente longo de análise...) e, além disso, o que é muito importante, também, uma transcrição fina talvez dificultasse o acesso aos dados por quem não fosse especialista em Fonética; mas, por outro lado, uma transcrição imprecisa pode levar a erros de interpretação, tendo em vista que a transcrição não pode ser tomada como uma reprodução fiel da fala, mas uma representação que, como tal, deixa alguns aspectos de lado, inevitável e tacitamente. Para reforçar nosso ponto de vista, temos que Aragão (2004) questiona, nos casos em que são utilizados símbolos como [ι] e [I], por exemplo, em algumas transcrições fonéticas experimentais do ALiB, se é uma transcrição sistemática, com maiores detalhes, ou se há equívocos no uso de determinados símbolos ou diacríticos. 285

O problema que se coloca é o que fazer: continuar a usar esses símbolos ou simplificar as transcrições usando símbolos que melhor representem os sons da língua portuguesa. (ARAGÃO, 2004, p. 117). Por ocasião do XIX Encontro Nacional da ANPOLL, realizado em 2004 em Maceió, em algumas sessões de trabalho, quando se abordava a questão da transcrição fonética, vimos que alguns colegas da área de Fonética são favoráveis à criação de um alfabeto fonético específico para a língua portuguesa. Perguntamos: mais um alfabeto fonético? Não vemos essa necessidade. Considerando que profissionais de outras áreas músicos e fonoaudiólogos, por exemplo utilizam o IPA em suas práticas profissionais, por que os lingüistas deixarão de usar uma ferramenta já disponível? Além disso, qualquer ferramenta que pretenda substituir o IPA terá problemas análogos àqueles que Ladefoged menciona. Afinal, não há um alfabeto realmente fonético, pois mesmo o IPA não possibilita registrar certos detalhes. Acreditamos, assim, que as transcrições fonéticas para os Atlas lingüísticos do Brasil devem continuar a ser feitas pelo IPA, sem necessidade de recorrer a outros alfabetos, uma vez que o uso de seus diacríticos permite uma transcrição ampla e adequada das peculiaridades dos sons da fala de qualquer língua natural estudada até o momento. Na tentativa de contribuir com essa problemática, sugerimos que se continue com a transcrição impressionista ampla para manter a praticidade do acesso aos dados por não especialistas em Fonética, mas, também, para não correr o risco de transcrições que levem a falhas de interpretação, que se recorra à análise acústica dos sons que pareçam ser problemáticos. Referências Bibliográficas ABAURRE, M. B. M.; PAGOTTO, E. G. Nasalização no Português do Brasil. In: KOCH, Ingedore Grunfeld Villaça. (Org.). Gramática do Português Falado VI. Campinas: Editora da Unicamp, 1996. v. 1, p. 495-526. ARAGÃO, Maria do Socorro S. de. Técnicas de transcrição fonética. In: AGUILERA, Vanderci de Andrade; MOTA, Jacyra Andrade; 286

MILANI, Gleidy A. Lima. (Orgs.). Documentos I. Projeto Atlas Lingüístico do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2004. ATA da XI Reunião do Comitê Nacional. In: AGUILERA, Vanderci de Andrade; MOTA, Jacyra Andrade; MILANI, Gleidy A. Lima. (Orgs.). Documentos I. Projeto Atlas Lingüístico do Brasil. Salvador: EDUFBA, 2004. p. 13-25. LADEFOGED, Peter. Some reflections on the IPA. Journal of Phonetics, n.18, p. 335-346, 1990. LAVER, John. The phonetic description of voice quality. Cambridge: Cambridge University Press, 1980. NISHIDA, Gustavo. Características acústicas do tap em grupo no PB. In: Encontro do Círculo de Estudos Lingüísticos do Sul CELSUL, 6., Florianópolis, 2004. Anais..., Florianópolis, 2004. 287