PAISAGENS À BICO DE PENA: A BAHIA CANTADA POR CAETANO



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Transcrição:

Trabalho apresentado no II ENECULT - Encontro de Estudos Multidisciplinares em Cultura, realizado de 03 a 05 de maio de 2006, na Faculdade de Comunicação/UFBa, Salvador-Bahia-Brasil. PAISAGENS À BICO DE PENA: A BAHIA CANTADA POR CAETANO RESUMO: VELOSO Taís Viscardi 1 Como pesquisadora do projeto EtniCidades: entre a cidade letrada e a rua, desenvolvo uma investigação acerca das representações do espaço físico, sócio-cultural e imaginário lidas nas letras de música do artista e intelectual Caetano Veloso, voz mediadora entre a cidade letrada e as ruas. A partir do mapeamento e análise das composições, nas quais podem ser flagradas referências diretas ou indiretas à Cidade da Bahia e ainda norteada pelo que Michel de Certeau chama de retóricas ambulatórias, pretendo traçar um desenho da paisagem urbana da cidade cantada pelo artista, comparando-a com o mapa físico do Estado e ainda com a paisagem urbana disseminada pelo discurso oficial no que tange ao imaginário da baianidade. PALAVRAS-CHAVE: Salvador Caetano Veloso paisagem urbana baianidade. O projeto EtniCidades: entre a cidade letrada e a rua, coordenado pela profª drª Eneida Leal Cunha, tem como foco principal de investigação a articulação entre problemática étnica e reconstrução imaginária do espaço urbano da cidade do Salvador. Como pesquisadora, desenvolvi uma investigação acerca das representações do espaço físico-sócio-cultural e imaginário- de Salvador e recôncavo baiano que podem ser lidas nas letras de música do artista e intelectual Caetano Veloso, voz mediadora entre a cidade letrada e a rua. Nesta comunicação, busquei traçar um desenho da paisagem urbana cantada pelo artista comparando-a com o mapa físico da cidade e ainda com a paisagem urbana disseminada pelo discurso oficial no que tange ao imaginário da baianidade. Uma cidade não é apenas construída de pedras, edifícios ou monumentos. Como observa Robert Pechman, no texto Pedra e discurso, para que haja uma cidade é preciso injetar-lhe alma, significados. Ou seja, a cidade é uma construção discursiva, são as narrativas que configuram pedras em cidades, criam sua origem, suas histórias e 1 e-mail: taisviscardi@hotmail.com

constróem a sua memória social. Assim, a cidade se transforma de acordo com o discurso que a conta. Partindo deste entendimento, de que a cidade é resultado da capacidade humana de representar o mundo em imagens ou discursos, me propus a estudar a Cidade da Bahia cantada por Caetano Veloso e ouvida pela multidão. Salvador: a cidade que eu mais gosto no mundo, assim o músico define sua relação com a capital do Estado, centro difusor do discurso da baianidade. A grande questão é: qual a Bahia cantada por Caetano Veloso? O traçado do espaço urbano da Cidade da Bahia cantado pelo músico é desenhado em vinte e um dos trinta e oito cds gravados entre os anos de 1967 e 2004. No primeiro momento de sua carreira final da década de 1960 identifiquei oito canções que delineiam as referências a esse espaço urbano da Bahia, especialmente à área do Recôncavo. De maneira geral, em tais músicas, Caetano Veloso refere-se à Santo Amaro como o lugar da saudade, onde deixou sua família. Nessas composições o artista já começa a desenhar o traçado urbano e social de Salvador: a cidade litorânea vai se configurando a partir do bairro de Amaralina (lugar onde habitou), com o mar de água clara que não tem fim, água azul da calmaria. A vida cultural da capital é apontada a partir do Carnaval, retratado como um momento de extrema vitalidade, quando atrás do trio elétrico só não vai quem já morreu. Numa música que funciona como uma espécie de carta para a mãe, Caetano Veloso deixa clara a sua satisfação de morar em Salvador, cidade iluminada ao sol do meio-dia: Eu quero mesmo é isto aqui (...) Eu por aqui vou indo muito bem / De vez em quando brinco Carnaval. Em depoimento ao Jornal do Brasil no ano de 1991, o artista comenta a importância da sua música Atrás do trio elétrico na reconfiguração do carnaval da Bahia (um dos principais produtos disseminados pelo discurso da baianidade): Desencadeou o incremento dos trios elétricos. Fez Dodô e Osmar voltar às ruas. A complementação veio com Gil, na música Filhos de Gandhi. Foi o estopim para a onda de novos blocos. Resultou em tudo isso, na música da Bahia. Na década de 1970, a paisagem sócio-urbana da Cidade de São Salvador, que se faz visível nos versos de Caetano Veloso, de algum modo reitera, com as alterações conseqüentes da passagem do tempo, a cidade festiva e negra criada pelos romances de Jorge Amado na década de 30. A partir das 14 músicas gravadas, o traçado físico da urbe é estendido. A cidade amada do mulato nato, ritmada pelos tambores e afoxés dos blocos afro é engloba a Ribeira, a Praça da Sé, a Praça Castro Alves, a Rua Chile, o

Porto da Barra, o Curuzú da Liberdade e a Boca do Rio. Nessa década o Carnaval recebe uma atenção especial, com a gravação, em 1977 do cd Muitos Carnavais : o grande momento festivo da cidade é descrito por Caetano Veloso como uma invenção do Diabo que Deus abençoou. As cenas populares e democráticas do carnaval da Bahia, divulgadas pelo músico, estão localizadas na Praça da Sé, na Rua Chile e na Praça Castro Alves, entretanto, embora afirme ser a Praça Castro Alves do povo, o artista aponta para uma possível segregação dos espaços, mandando com ironia as pessoas sem graça pro salão 2. O tema carnavalesco é retomado em 1979 com a gravação de Beleza Pura. Segundo Caetano Veloso, a composição é uma saudação ao início da tomada da cidade de Salvador pelos pretos. Ela sempre foi uma cidade com muitos pretos mas, até os anos 70, eles ficavam mais ou menos nos seus lugares : puxadores de rede de xaréu, tocadores de candomblé, pescadores, vendedores de acarajé, todos muito bonitos, mas cada um no seu lugar tradicional. Na música, ao cantar o bairro da Liberdade, local majoritariamente habitado pelo povo negro da cidade, o artista torna visível ou afirma a presença dos espaços segregados da cidade (explicar como). É importante apontar que neste momento não só os espaços físicos da negritude baiana começam a ter evidência, mas o próprio imaginário da cidade vai se moldando de acordo com nova configuração, ou seja, dá-se a apropriação da cultura negro-mestiça pela indústria cultural. Assim, em consonância com o contexto sócio-cultural Caetano Veloso canta para o Brasil uma Bahia negra, marcada pelos afoxés dos Filhos de Gandhi e Badauê, pelos tambores afro do Ilê Aiyê e pela capoeira do mestre Pastinha. Deste modo, o compositor reitera o movimento de resistência negra que aonteceu não apenas na Bahia como em todo o território nacional, quando os negros, influenciados pelo movimento black power norte-americano e pelas lutas de libertação dos países africanos de língua portuguesa até então sob domínio lusitano- iniciam uma política de reversão dos valores senhoriais e eurocêntricos ainda vigentes no país. Na década de1980, o artista compõe seis músicas chamando mais uma vez a atenção para a presença africana na paisagem de São Salvador, iluminada por um místico pôr-do-sol. Caetano Veloso canta uma cidade povoada pelos descendentes dos jêje e nagô, uma cidade abençoada pelos santos e também pelos orixás. 2 Durante o século XIX, o carnaval de Salvador era visivelmente dividido: sendo proibidos de participar dos bailes nos salões, saíram às ruas promovendo sua própria folia.

Na década de 1990, além da já citada Haiti, Caetano Veloso ainda grava as músicas Itapuã, Neide Candolina, Onde o Rio é mais baiano, A luz de Tieta e no ano 2000, quando retoma o discurso do abolicionista Joaquim Nabuco, no cd Noites do Norte, grava as canções 13 de Maio e Rock n Raul. O Pelourinho é cantado por Caetano Veloso como um local de tensão, onde podemos ver uma fila de soldados, quase todos pretos / dando porrada na nuca de malandros pretos / de ladrões mulatos / e outros quase brancos. Conforme apontei no estudo desenvolvido durante a vigência da bolsa anterior, Caetano Veloso elege a Fundação Casa de Jorge Amado escritor que trouxe para a literatura a imagem heroicizada do negro -, situada no Pelourinho, como local onde pode-se ver a cena em questão. É interessante atentar para a escolha do espaço feita pelo artista, em função da própria memória histórica que o local representa: o Pelourinho, lugar onde outrora os escravos rebeldes eram castigados, constitui-se hoje num dos principais pontos turísticos da cidade. Entretanto, tal situação só aconteceu após a expulsão de sua população de pobres e negros para bairros periféricos. Ou seja, aos negros ou aos quase pretos de tão pobres ainda é permitido apenas os espaços recônditos ou periféricos da cidade. De um outro extremo do mapa urbano Caetano Veloso vive um amor que resplandece sobre as águas do bairro de Itapuã, com suas luas cheias e suas casas feias - local tão louvado por Caymmi e, em seguida, Vinícius de Morais. O artista canta a sua felicidade nas areias brancas do Abaeté, com sua lagoa bela. No caminho do Pelourinho para Itapuã, pela orla da cidade, o músico comemora a Festa de Iemanjá promovida pelos pescadores do Rio Vermelho. Após essa breve apresentação das músicas que merecem destaque na temática investigada, retomo a pergunta inicial: qual a Bahia desenhada por Caetano Veloso? É importante ressaltar que obviamente o espaço urbano eleito por Caetano Veloso não abrange todo o mapa físico da cidade (o que seria praticamente impossível), entretanto, a questão proposta não é essa. Interessa-nos perceber a semelhança entre a Cidade da Bahia por ele divulgada e a paisagem urbana propagada pelo governo do Estado e do município no que tange ao imaginário da baianidade, visando, sobretudo, o crescimento do turismo. Como se sabe, o conceito de baianidade não está delimitado a partir das fronteiras políticas do estado da Bahia, refere-se à cidade de Salvador e recôncavo. A chamada cultura baiana é predominantemente litorânea, marcada por um trânsito

cosmopolita de mercadorias e influências. A narrativa do jeito de ser baiano afirma a pluralidade no sentido da mestiçagem racial e da singularidade cultural no cenário nacional. Em função do seu passado histórico e também visando afirmar o local no contexto da globalização, o imaginário da baianidade privilegia, sobretudo, as representações e práticas culturais de matriz africana. Através da literatura, da música e das demais expressões artísticas e ainda, a partir das imagens e textos publicitários produzidos pelo governo do Estado e do município crescimento do turismo tendo como alvo,principalmente, o a Bahia é divulgada para o Brasil e para o mundo como um lugar mítico,a terra de todos os santos e orixás, conforme estabeleceu Jorge Amado e mais tarde Caetano Veloso, como tantos outros artistas, reiterou. Segundo a Empresa de Turismo e Desenvolvimento Econômico de Salvador Emtursa: Desde os tempos de Colônia, é nas ruas e avenidas que Salvador acontece, onde encontramos os soteropolitanos correndo atrás do trio elétrico, orando nas procissões, ou se expressando nas manifestações. Assim, cabe-nos uma pergunta: quais as ruas onde se encena a baianidade? Ou melhor, quais os espaços projetados a partir da narrativa da baianidade? No mapa turístico da Emtursa, disponibilizado para o mundo através da internet e distribuído aos turistas que visitam a cidade, destaca-se a faixa litorânea da capital que vai desde a Ponta de Humaitá até Itapuã. O órgão oficial responsável pelo turismo de Salvador ainda sugere como roteiros a serem percorridos o Centro Histórico, a Cidade Baixa, a Barra, a Península de Itapagipe e o Caminho da Vila Velha. Tal como a Cidade da Bahia divulgada pela prefeitura de Salvador aos seus visitantes, a Cidade da Bahia desenhada pela retórica ambulatória de Caetano Veloso é quase que totalmente litorânea, também compõe a paisagem urbana da cidade os locais reservados ao carnaval e os espaços físicos da negritude baiana 3. O traçado urbano eleito pelo governo do estado e do município assim como o caminho empreendido por Caetano Veloso priorizam espaços que possam ativar significações referentes ao imaginário da baianidade. Ou seja, elege-se locais carregados de signos que são permanentemente ativados apara a afirmação da identidade baiana, tal como o Pelourinho (tombado pela UNESCO como Patrimônio da Humanidade), o 3 Não devemos perder de vista que o que chamamos hoje de imaginário da baianidade é também, em grande parte, resultado das experiências culturais que se desenvolveram na Bahia a partir do século XIX, quando os negros libertos foram excluídos da vivência cultural dominante. Ironicamente, esse relativo isolamento imposto à população afro-descendente, contrariando a política discriminatória, permitiu a permanência das práticas culturais de matriz africana, possibilitando a criação de um mundo afro-baiano alicerçado, sobretudo, nas famílias de santo. a

bairro da Liberdade (local onde acontecem os ensaios de um dos principais bloco-afro de Salvador Ilê Aiyê) ou a Praça Castro Alves (importante palco do carnaval baiano). O relato da Cidade da Bahia divulgado pela Emtursa, cantado por Caetano Veloso ou ainda escrito por Jorge Amado e pintado por Carybé amplifica detalhes e miniaturiza o conjunto. Nesta cidade cantada, louvada, divulgada cabe apenas os percursos que produzem identificações com a narrativa identitária dominante, o bairro do Itaigara ou Cajazeiras, por exemplo, pertencem a qualquer cidade. Tendo como base, principalmente, o discurso de Michel de Certeau acerca do espaço urbano, entendido como configurado ou reconfigurado pelas caminhadas empreendidas na cidade, interessou-me nessa pesquisa desenhar o mapa urbano da Cidade do Salvador que pode ser lido na poesia cantada por Caetano Veloso, atentando para o que Certeau chama de retóricas ambulatóriais. Apropriando-me das noções de sinédoque e assíndeto da enunciação verbal, entendo a caminhada de Caetano Veloso como um percurso que seleciona e fragmenta o espaço percorrido; ela salta suas ligações e [omite] partes inteiras..., mas cria um mapa marcado por significações identitárias.