HISTÓRIA DA LITERATURA, HISTÓRIA DO TEATRO: QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS



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Transcrição:

HISTÓRIA DA LITERATURA, HISTÓRIA DO TEATRO: QUESTÕES EPISTEMOLÓGICAS João Roberto Faria (USP) O propósito desta comunicação é apresentar algumas questões relativas à historiografia da literatura brasileira e do teatro, que venho enfrentando como estudioso que trabalha na interface da literatura com o teatro e que escreve e dá aulas sobre dramaturgia num curso de Letras. A primeira questão diz respeito ao tratamento dado à dramaturgia nas histórias da literatura brasileira. A segunda parte de uma pergunta direta: devem as peças teatrais ser estudadas no curso de Letras, ao lado de poemas, contos e romances? A terceira liga-se às possibilidades que existem hoje para se escrever uma nova história do teatro brasileiro, centrada tanto nos aspectos cênicos quanto na dramaturgia. Esses três pontos já foram objeto de reflexões que desenvolvi em três textos, que apresentei em três oportunidades: na palestra de encerramento do IV Seminário Nacional de História da Literatura, realizado em Rio Grande em 2010, e intitulado O lugar da dramaturgia nas histórias da literatura brasileira 1 ; em uma mesa-redonda da Abralic de 2011, na qual falei sobre O estudo da dramaturgia no curso de Letras 2 ; e na introdução da História do Teatro Brasileiro, - obra em dois volumes que coordenei e que foi publicada em 2012 e 2013 pela editora Perspectiva. Nesses textos, fui motivado por questões que vêm à tona sempre que penso nas possíveis convergências entre a literatura e o teatro. Vou, então, aproveitá-los como ponto de partida para apresentar a vocês algumas considerações críticas com o objetivo de fazer avançar a discussão. Minhas constatações partem da leitura das principais histórias da literatura brasileira e do teatro escritas ao longo dos séculos XIX e XX. E a primeira delas é que a historiografia do teatro brasileiro apresenta um atraso em relação à historiografia da literatura brasileira. Por atraso entendo o seguinte: ao longo do século XIX nossa literatura foi objeto de vários estudos críticos e historiográficos, os primeiros feitos com regularidade no país, nos quais se estabeleceu o cânone relativo aos gêneros épico e lírico que serviu de base às duas primeiras histórias da literatura brasileira realmente importantes: a de Sílvio Romero (1888; 2ª ed. 1902) e a de José Veríssimo (1916). 1 Publicado em forma digital. Carlinda F. P. Nunez et alii (org.). História da literatura: fundamentos conceituais. Rio de Janeiro: Makunaima, pp. 93-127. 2 Publicado em Marilene Weinhardt et alii (org.). Ética e estética nos estudos literários. Curitiba: Ed. UFPR, 2013, pp. 501-512.

Estava consolidada a tradição a partir da qual seriam escritas as demais histórias da nossa literatura. Já o teatro não mereceu nenhuma obra historiográfica no século XIX, apenas breves estudos. É de 1904 o livro de Henrique Marinho, O Teatro Brasileiro (alguns apontamentos para a sua história). Infelizmente, o autor não foi capaz de estabelecer o nosso cânone dramatúrgico e nem de refletir sobre a especificidade do teatro como arte que extrapola os limites do domínio literário. Como observou Sílvio Romero, no prefácio, o autor atende mais à história dos edifícios destinados às representações cênicas, e às companhias que neles funcionaram do que à história da produção literária do gênero dramático entre nós 3. É a produção literária do gênero dramático que interessa tanto a Romero quanto a Veríssimo, que veem o teatro como uma arte literária. Se se separam na maioria das apreciações críticas (vide o que escreveram sobre Martins Pena e Machado de Assis), aproximam-se num ponto fundamental: ambos abordam as obras dos escritores sem separá-las por gêneros. Para Sílvio Romero forçoso é juntar o Teatro e o Romance nos vários capítulos em que vão ser explanados estes dois assuntos; porque os melhores cultores da dramaturgia o foram também do romance no Brasil. Escritor estudado, deve sê-lo de vez, para se lhe não perder o tom da característica, nem apagar a feição inteiriça da individualidade espiritual. 4. Não é diferente o ponto de vista de Veríssimo: Um escritor não pode ser bem entendido na sua obra e ação senão visto em conjunto, e não repartido conforme os gêneros diversos em que provou o engenho 5. Romero e Veríssimo consideram a produção dramática do século XIX como parte da literatura brasileira, como era comum na época em que escreveram suas histórias da literatura brasileira. Estranhamente, Henrique Marinho não estudou nossa dramaturgia em sua história do teatro. Desculpou-se dizendo que era sua intenção fazer as críticas das peças mais notáveis da nossa dramaturgia e tracejar as biografias dos nossos autores dramáticos e comediantes, mortos e vivos. Não pudemos, porém, vencer as dificuldades com que tivemos que arrostar. Ficará isso para mais tarde 6. Infelizmente Henrique Marinho não cumpriu sua promessa. Nosso cânone dramatúrgico do século XIX ficou estabelecido por dois historiadores da literatura 3 Sílvio Romero, A dramaturgia brasileira, em Henrique Marinho, O Teatro Brasileiro (alguns apontamentos para a sua história), Rio de Janeiro, Garnier, 1904, p. 4. 4 Sílvio Romero, História da Literatura Brasileira, 7 ed., Rio de Janeiro, José Olympio/INL-MEC, 1980, v. 4, p. 1350. 5 Idem, p. 15. 6 Henrique Marinho, op. cit., p. 7.

brasileira. Acompanhemos agora, nos domínios da literatura e do teatro as obras que foram escritas depois das que nos deram Romero, Veríssimo e Henrique Marinho. Vejamos como lidam com a dramaturgia e como se estruturam. Em 1919, Ronald de Carvalho lança a Pequena História da Literatura Brasileira. Na edição que consultei 7, em 270 páginas menos de cinco são dedicadas à dramaturgia. E, ao contrário de Romero e Veríssimo, o autor estuda a produção literária por gêneros, não pelo conjunto da obra de um determinado escritor, como ambos haviam feito. Em relação às histórias literárias de Romero e Veríssimo, a perda é tanto quantitativa quanto qualitativa para a dramaturgia, que é estudada como se fosse a prima pobre do romance e da poesia. Começa, com Ronald de Carvalho, um processo de supressão da dramaturgia nas histórias da literatura brasileira, que chegou aos nossos dias. Tal processo é visível na História da Literatura Brasileira. Seus Fundamentos Econômicos, de Nelson Werneck Sodré, de 1938; na História da Literatura Brasileira, de Bezerra de Freitas (1939); na História Breve da Literatura Brasileira, do português José Osório de Oliveira (1939). A dramaturgia brasileira ganha um pouco mais de atenção na Breve História da Literatura Brasileira, de Érico Veríssimo (1945), obra publicada nos Estados Unidos. Mas não muita, como se vê no parágrafo dedicado ao teatro romântico; A safra teatral durante o período do Romantismo, no Brasil, foi muito magra. Entre os poucos dramaturgos da época só um merece ser lembrado, Martins Pena. Escreveu peças de costumes nas quais tentou retratar a sociedade brasileira contemporânea 8. O período posterior também não teve muita sorte: Érico destaca apenas Artur Azevedo, em algumas poucas linhas. Em compensação, o teatro dos anos 1930-1940 ganha alguns parágrafos, com destaque para Joracy Camargo, Ernani Fornari, Maria Jacinta, Oduvaldo Vianna, Carlos Lacerda, Raimundo Magalhães Júnior, Renato Vianna e Oswald de Andade. Érico leu várias peças desses autores e as comenta sucintamente. Enquanto a dramaturgia vai desaparecendo das histórias da literatura brasileira, nas histórias do teatro publicadas nos anos 20 e 30 o gênero não tem melhor sorte. Os problemas que apontamos na obra de Henrique Marinho repetem-se em O Teatro no Brasil, escrito em 1917 e publicado em 1936, de Múcio da Paixão: muitas informações sobre edifícios teatrais, companhias, repertório, decretos, uma infinidade de nomes de autores e títulos de peças representadas, mas pobreza franciscana nas considerações de ordem estética ou no plano analítico e interpretativo, seja no terreno da dramaturgia, brevemente tratada, seja no da encenação. 7 Ronald de Carvalho, Pequena história da literatura brasileira. 13ª. ed. Rio de Janeiro: Briguiet, 1968. 8 Érico Veríssimo, Breve História da Literatura Brasileira, tradução de Maria da Glória Bordini, São Paulo, Globo, 1995, p. 58.

É preciso lembrar, nesta altura, que no final do século XIX o teatro começou a afirmar-se como arte autônoma, na qual uma peça teatral passou a ser considerada apenas como parte do espetáculo, que se realiza com a colaboração de outros fazeres artísticos: o do ator, o do iluminador, o do cenógrafo, o do figurinista, todos trabalhando sob a batuta de um novo demiurgo: o encenador. A consciência de que uma história do teatro deve ser escrita a partir do que ocorre no palco muda o enfoque que havia no passado, quando a história do teatro se confundia com a história da literatura dramática, esta embutida na história da literatura. No Brasil, a primeira obra que aborda o texto dramático e a cena, conjuntamente, é a História do Teatro Brasileiro (volume primeiro: 1565-1840) de Carlos Sussekind de Mendonça, publicada em 1926. E é de se lamentar que o autor tenha ficado no primeiro volume, pois, ao contrário dos seus predecessores, tinha uma concepção moderna de teatro. É interessante acompanhar a exposição de seu método, feita depois de arrolar vários estudos de cunho histórico que já haviam sido feitos no Brasil pequenas sínteses, capítulos de livros, ensaios etc - e considerar que contribuíram pouco para a história do teatro brasileiro, porque em nenhum deles o teatro é considerado simultaneamente em seus aspectos literários e cênicos. Afirma ele a respeito dos estudos citados: A maioria se vicia de um mal considerável: os que se ocupam da literatura dramática esquecem-se da cena; os que se interessam pela cena despreocupam-se, em absoluto da literatura dramática 9. A seu ver, para se escrever uma história do teatro brasileiro de modo correto, é preciso que se estabeleça o sincronismo entre as manifestações literárias e as manifestações cênicas, sem o que muitos fenômenos, talvez os mais interessantes da nossa vida teatral, escaparão de todo ao nosso entendimento. Quero crer que sua obra deveria ter servido de modelo para quem viesse a escrever a próxima história do teatro brasileiro. Afinal, ela trazia um método e uma concepção modernos de teatro. Mas não é isso que acontece logo em seguida, quando Lafayette Silva publica a sua História do Teatro Brasileiro, em 1938. Ele repete o padrão de Henrique Marinho e Múcio da Paixão: muitas informações, datas, nomes, e pouca reflexão crítica. A proposta de Carlos Sussekind de Mendonça foi retomada por J. Galante de Sousa, que em 1960 publicou a primeira boa e razoavelmente completa história do teatro brasileiro, em dois volumes: O Teatro no Brasil. Pode-se dizer que Galante é o primeiro estudioso que soube sistematizar o trabalho de pesquisa e refletir sobre a 9 Carlos Sussekind de Mendonça, História do Teatro Brasileiro, Rio de Janeiro, Mendonça Machado & Cia., 1926, volume primeiro (1563-1840), p. 60. As citações seguintes provêm desta edição.

trajetória do nosso teatro, desde Anchieta até o final dos anos 50 do século XX, referindo-se tanto aos aspectos dramatúrgicos quanto aos cênicos. Grande pesquisador, escreveu uma obra notável, à qual devemos voltar sempre, mas, infelizmente, limitada pelo modesto alcance crítico de seu pensamento, como denotam as páginas dedicadas à dramaturgia. Voltemos às histórias da literatura. Nos anos 50, fizeram bastante sucesso a História da Literatura Brasileira (1955) de Antonio Soares Amora e A Literatura no Brasil, sob a direção de Afrânio Coutinho. A primeira reserva um espaço razoável para a nossa produção dramática, mas no geral é uma obra de caráter didático, que procura dar conta de toda a nossa produção literária em capítulos sintéticos sobre movimentos, autores e obras. Já na mais ambiciosa de todas as nossas histórias da literatura brasileira, publicada entre 1955 e 1959, em quatro volumes com mais de duas mil páginas escritas por vários colaboradores, o teatro ganha um capítulo geral pouco para obra tão volumosa - intitulado A Evolução da Literatura Dramática. Escrito por um especialista que tinha uma extraordinária capacidade crítica, Décio de Almeida Prado, começa pelo estudo dos autos de Anchieta e chega até o teatro brasileiro dos anos 1950, porém enfocando centralmente, como sugere o título, a dramaturgia. Não podemos deixar de mencionar, aqui, uma obra que, sem ser uma história completa da literatura brasileira, porque trata de apenas dois períodos, é um estudo de caráter historiográfico que lemos ainda hoje com admiração: a Formação da Literatura Brasileira, de Antonio Candido, publicada em 1959 pela editora Martins. Como se sabe, o autor debruçou-se sobre os dois momentos que ele denomina decisivos para a formação da literatura brasileira - o Arcadismo e o Romantismo -, estudando a poesia e a prosa. A seu ver, porém, a exclusão do teatro, que lhe pareceu inicialmente recomendável para a coerência do plano, resultou num empobrecimento, como verificou ao final do trabalho. Ele explica: O estudo das peças de Magalhães e Martins Pena, Teixeira e Souza e Norberto, Porto-Alegre e Alencar, Gonçalves Dias e Agrário de Menezes teria, ao contrário, reforçado meus pontos de vista sobre a disposição construtiva dos escritores, e o caráter sincrético, não raro ambivalente, do Romantismo. Talvez o argumento da coerência tenha sido uma racionalização para justificar, aos meus próprios olhos, a timidez em face dum tipo de crítica a teatral que nunca pratiquei e se torna, cada dia mais, especialidade amparada em conhecimentos práticos que não possuo 10. 10 Antonio Candido, Formação da Literatura Brasileira, 4 ed., São Paulo, Martins, s/d, vol. 1, p. 12.

As palavras de Antonio Candido talvez expliquem o que vem acontecendo nas histórias da literatura brasileira escritas a partir dos anos 1960. A exigência de um instrumental teórico e analítico próprio, que nem sempre é do domínio de quem estuda a poesia e a prosa, e o diálogo dos nossos dramaturgos com seus pares europeus e norteamericanos o que exige o conhecimento de suas obras são dificuldades que afastam os historiadores da literatura brasileira da dramaturgia. Essas dificuldades podem explicar a pequena presença da dramaturgia na série A Literatura Brasileira, da coleção Roteiro das Grandes Literaturas, publicada pela Cultrix nos anos 1960, em seis volumes, e também na história da literatura brasileira mais bem-sucedida de todas que já foram escritas: a História Concisa da Literatura Brasileira, de Alfredo Bosi, publicada em 1970, e que já teve mais de quarenta edições. Nessa obra de cabeceira de todos nós há boas páginas sobre os autos de Anchieta e sobre as peças de Martins Pena, Gonçalves Dias, José de Alencar, Agrário de Menezes e Paulo Eiró, Artur Azevedo e Machado de Assis. O estudioso do teatro brasileiro fica satisfeito ao ver um crítico do calibre de Alfredo Bosi se debruçar sobre o principal da nossa produção dramática do século XIX, considerando-a como parte da literatura. Mas se decepciona ao constatar que nenhuma linha é dedicada à dramaturgia do século XX. Quanto à historiografia do teatro brasileiro, depois da obra de Galante de Sousa, as histórias do nosso teatro concentram-se mais no estudo da dramaturgia. É o caso de Teatro in Brasile, de Ruggero Jacobbi, publicada na Itália em 1961. Em 1962 Sábato Magaldi publica o seu Panorama do Teatro Brasileiro, fundamentalmente uma história da dramaturgia brasileira: apenas três dos seus 21 capítulos são dedicados a outros aspectos ligados ao fazer teatral: arte do ator, companhias teatrais modernas, papel do encenador etc. O próprio autor tinha consciência das lacunas de seu trabalho, pois ao final do volume, em nota intitulada Informações bibliográficas, afirma: Ainda está por escrever-se uma História do Teatro Brasileiro. Somente quando se fizer um levantamento completo de textos se poderá realizar um estudo satisfatório de todos os aspectos da vida cênica dramaturgia, evolução do espetáculo, relações com as demais artes e com a realidade social do país, existência do autor, do intérprete e dos outros componentes da montagem, presença da crítica e do público. Por enquanto, mesmo que seja imensa a boa vontade, se esbarrará em obstáculos intransponíveis. Talvez a tarefa não seja de um único pesquisador: exige busca paciente em arquivos e jornais, leitura dos alfarrábios e inéditos, a esperança de que

se publiquem documentos inencontráveis. Todos fornecemos subsídios para a obra que acreditemos um dia virá a lume 11. Com a lucidez de quem acompanhou e apoiou o nascimento e o fortalecimento do teatro moderno no Brasil, Magaldi sabia que seu Panorama não atendia ao que ele denomina na citação acima todos os aspectos da vida cênica. E adverte sobre a necessidade de uma obra coletiva. Depois de Magaldi, em 1980, Walter Rela publica Teatro Brasileño, no Uruguai, e Mario Cacciaglia, na Itália, Quattro Secoli di Teatro in Brasile - edição brasileira em 1986: Pequena História do Teatro no Brasil (quatro séculos de teatro no Brasil). Ambos os autores apresentam sínteses da nossa história teatral, dando igualmente maior atenção à dramaturgia. No terreno literário, depois da História Concisa da Literatura Brasileira, surgiram várias outras, com a mesma tendência já apontada: a de suprimir a dramaturgia ou conceder-lhe pouco espaço. Nas obras que abordam desde as origens da literatura brasileira até os tempos modernos e contemporâneos, parece não haver problema em comentar, ainda que com brevidade, a produção dramática da colônia e do século XIX. As dificuldades surgem quando se trata de abordar a dramaturgia moderna e contemporânea. Sirva de exemplo a História da Literatura Brasileira de Massaud Moisés, em cinco volumes (1985-1989). Entre todas as histórias da literatura brasileira publicadas nos últimos cinquenta anos, a de Luciana Stegagno Picchio, de 1997, é a única que traz informações e análises, ainda que muito rápidas, da nossa dramaturgia, desde Anchieta até os anos 1970. Autora de uma importante História do Teatro Português, a familiaridade com o gênero dramático e o interesse por essa forma de arte foram fatores decisivos para que ela incluísse em sua História da Literatura Brasileira vários dramaturgos brasileiros do passado e do presente. Em contrapartida, dois anos depois, em 1999, José Aderaldo Castello publica, em dois volumes, A Literatura Brasileira: Origens e Unidade, obra em que estuda nossa literatura, das origens até os anos sessenta do século XX. Deliberadamente, ele descarta a dramaturgia, que só aparece mencionada nos casos de Anchieta e Botelho de Oliveira, no período colonial, e de Gonçalves de Magalhães, no romantismo. Com parcimônia parecida, Carlos Nejar, na História da Literatura Brasileira, de 2007 12, faz rápidas menções a peças e autores do período romântico e dos tempos modernos, mas sem desenvolver qualquer análise ou interpretação. 11 Sábato Magaldi, Panorama do Teatro Brasileiro, São Paulo, Difel, 1962, p. 271. 12 Carlos Nejar, História da Literatura Brasileira, Rio de Janeiro, Relume Dumará/Copesul/Telos, 2007.

O que concluir dessa exposição? Vou tentar arrematar estas considerações nos dois campos aqui apresentados: a história da literatura e a história do teatro. No primeiro caso é forçoso reconhecer que a inclusão da dramaturgia nas histórias da literatura escritas depois de Sílvio Romero e José Veríssimo nunca é plenamente satisfatória. Claro que há boas páginas críticas aqui e ali. Mas a impressão que fica é que a dramaturgia, quando não é deixada de lado, parece entrar na história literária a contragosto, como se o gênero dramático não fosse um gênero literário. Essa é a tendência geral. Tudo indica que uma divisão de tarefas foi estabelecida ao longo do século XX, sem qualquer discussão de caráter teórico e crítico: o historiador da literatura brasileira tomou para si o trabalho de discorrer sobre movimentos literários, poemas, contos e romances, deixando a dramaturgia para o historiador do teatro ou da dramaturgia. Essa mesma divisão de tarefas parece estar presente no curso de Letras: pouquíssimos professores de literatura brasileira incluem peças teatrais em suas disciplinas, para estudar, digamos, um movimento literário como o romantismo ou escritores como José de Alencar e Oswald de Andrade. E é uma pena que seja assim, por duas razões: em primeiro lugar, há um bom número de peças teatrais que são excelentes obras literárias, como Leonor de Mendonça, de Gonçalves Dias, ou Vestido de Noiva, de Nelson Rodrigues, ou A Moratória, de Jorge Andrade. O aluno de Letras só tem a ganhar com o conhecimento da nossa melhor literatura dramática; em segundo lugar, o conhecimento da dramaturgia e do próprio movimento teatral pode ajudar na análise e interpretação da poesia e da prosa dos nossos escritores. Poderia dar muitos exemplos, mas o tempo não permite. Amparo meu argumento nas palavras de Antonio Candido, citadas há pouco, e lembro apenas o caso de Alencar, que foi dramaturgo e aproveitou em seus romances alguns temas que havia tratado nas suas peças, como a prostituição e o casamento por dinheiro. O que fazer com a dramaturgia? Eis o problema que os futuros historiadores da literatura brasileira ainda vão enfrentar. Poderão optar por dar continuidade ao padrão estabelecido no decorrer do século XX ou escrever obras em que ficcionistas, poetas e dramaturgos sejam estudados em pé de igualdade. No segundo caso, talvez seja necessário acreditar que uma nova e mais completa história da literatura brasileira deva ser uma obra coletiva, escrita por algumas dezenas de especialistas, dada a enorme dimensão e diversidade da nossa produção literária. Em relação ao curso de Letras, só me resta esperar que os professores de literatura brasileira descubram o quanto têm a ganhar, incorporando a dramaturgia brasileira em suas disciplinas. Quanto às histórias do teatro, vimos que apenas duas são tentativas de abranger dramaturgia e encenação: a de Carlos Sussekind de Mendonça e a de Galante de

Sousa. As demais são histórias da dramaturgia, com pequenas e eventuais incursões pelo terreno da encenação. Estimulado pelas palavras de Sábato Magaldi sobre a necessidade de uma equipe para escrever uma história do teatro brasileiro, apresentei à editora Perspectiva, por volta de 2002 ou 2003 um projeto para dar conta do que nosso historiador denominou todos os aspectos da vida cênica. Afinal, chegáramos ao final do século XX sem uma obra dessa natureza, mas com um conhecimento muito grande de nossa história teatral, disperso nas dezenas de dissertações de mestrado e teses de doutorado escritas nos últimos trinta anos. Era preciso somar o conhecimento produzido no espaço universitário aos estudos críticos feitos no passado, agregar o que se encontrava disperso, reunir especialistas para historiar uma arte que adquiriu especificidades próprias com o passar do tempo. Os 51 capítulos estampados nos dois volumes da mais recente História do Teatro Brasileiro foram encomendados a mais de quarenta especialistas, a maioria formada nos cursos de pós-graduação e atuando no ensino em várias universidades brasileiras. Esse perfil dos colaboradores dá uma dimensão nova a esta história do teatro brasileiro: é a primeira em nosso país escrita com base no espírito universitário de pesquisa. Daí a abrangência, a riqueza de informações, o domínio da bibliografia, a verticalidade das análises e interpretações de peças teatrais, espetáculos, fatos artísticos, ideias, formas dramáticas, bem como do trabalho de atores e atrizes, encenadores, grupos e companhias etc. A divisão em dois volumes obedeceu a critérios cronológicos, artísticos e editoriais. O primeiro volume dá conta do nosso teatro desde Anchieta até meados do século XX. Como se sabe, em grande medida muitas das práticas teatrais do século XIX tiveram continuidade no Brasil até a década de 1950: manutenção do ponto, companhia dramática apoiada no grande astro, repertório de peças convencionais, espetáculos montados por um ensaiador - função mais técnica do que artística. A partir de 1922, a insatisfação com o velho teatro já aparece entre os escritores modernistas por exemplo, na crítica teatral de Antônio de Alcântara Machado, e em seguida nas peças teatrais de Oswald de Andrade e nos trabalhos pioneiros de Renato Vianna, Álvaro Moreyra e Flávio de Carvalho. Durante mais de três décadas nossa vida cênica se exprime em duas vertentes que correm paralelas, até que nos anos 1950 o teatro moderno se impõe. O segundo volume aborda esse processo histórico, em suas múltiplas manifestações, voltando ao movimento modernista de 1922 e seguindo até a contemporaneidade. Creio que no futuro poderemos ter outras histórias do teatro brasileiro escritas a partir do mesmo viés. Mas nada impede, claro, que surjam histórias específicas, seja

da dramaturgia, seja da encenação. Afinal, são campos artísticos ao mesmo tempo independentes e complementares.