Prof. Dr. Pe. Paulo Sergio Lopes Gonçalves. Ética, Epistemologia e Religião CCHSA Faculdade de Filosofia paselogo@puc-campinas.edu.



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Transcrição:

A EXPERIÊNCIA RELIGIOSA NO COMENTÁRIO DE SANTO AGOSTINHO A PRIMEIRA EPÍSTOLA DE SÃO JOÃO João Ricardo de Moraes Faculdade de Teologia e Ciências Religisas CCHSA Joao.rdm@hotmail.com Prof. Dr. Pe. Paulo Sergio Lopes Gonçalves. Ética, Epistemologia e Religião CCHSA Faculdade de Filosofia paselogo@puc-campinas.edu.br Resumo: Na condição de Doutor e Bispo da Igreja, Santo Agostinho investiu na leitura da Escritura. Sabe-se de sua dedicação à primeira epístola de São João, principalmente pela afirmação de que Deus é amor. Não se cansou de dialogar com Deus, cuja experiência se efetivou mediante a via interior: o olhar para si mesmo para encontrar Aquele que é a sua beata vita. Mas esse olhar considera a Escritura como livro da revelação divina, sendo a referida epístola uma obra que explicita a revelação da caridade divina em Cristo. Ao escrever o Comentário da primeira epístola de São João (415), Santo Agostinho mostra um método exegético próprio, uma mística profunda no ato da leitura da epístola e o saborear de Deus mediante a dialética do seu eu interior e o eu de Deus testemunhado na Escritura. Para realizar este trabalho tomar-se-á a obra supracitada como fonte principal, amparada nas interpretações de Martin Heidegger e Étienne Gilson. O primeiro interpreta a experiência religiosa de Agostinho à luz da faktische Lebenserfahrung e segundo realça a dialética entre Deus e o homem nas inquietações do pensador de Hipona. Desta fora, objetivar-se-á inferir elementos filosóficos e teológicos que apontem o significado da experiência religiosa de Santo Agostinho. Em termos interrogativos: Como se efetiva a experiência religiosa, enquanto experiência amorosa do encontro entre Deus e o homem, conforme a interpretação de Santo A- gostinho acerca da primeira epístola de São João? Palavras-chave: Via interior, hermenêutica da vida fática, Santo Agostinho, Deus. Área do Conhecimento: Fenômeno Religioso: Dimensões Epistemológicas Ética, Epistemologia e Religião FAPIC/REITORIA 1. INTRODUÇÃO Santo Agostinho (354-430), um dos maiores pensadores cristãos do ocidente, teve uma produção literária imensa. Dentre suas obras, podemos destacar as de caráter filosófico, que foram escritas através de diálogos (Solilóquios, De Magistro, Contra os acadêmicos), sendo esses escritos redigidos na sua fase ainda jovem recém-convertido ao cristianismo. Junto às obras filosóficas, temos as apologéticas ( A verdadeira religião) que foram feitas em período próximo ao supracitado. Depois de sua conversão, já como bispo, temos as obras da sua vida madura, dentre elas podemos destacar os tratados teológicos e doutrinais (A cidade de Deus, A Trindade), e a sua obra magna considerada uma verdadeira obra prima tanto do ponto de vista filosófico quanto literário: Confissões. Trata-se de uma autobiografia de Agostinho em que descreve sua vida desde a sua concepção até a sua conversão e relação com Deus. Mesmo sendo uma autobiografia, essa obra possui um caráter teológico explícito principalmente dos livros XI ao XIII. Já na fase considerada madura do autor, observamos seus escritos no campo da exegese bíblica e pastoral, dentre eles podemos destacar a obra Comentários da primeira epístola de São João, datada aproximadamente no ano de 415. Agostinho foi um grande pensador, não só no campo teológico, mas filosófico e literário. Suas obras transparecem sua vida, seu modo de pensar e de entender a realidade material e espiritual e seu de-

sejo que o acompanha desde adolescente de se chegar à verdade, perpassando pelos escritos filosóficos de Cícero, pelo Maniqueísmo (que depois irá combater até o fim da sua vida), ceticismo ( por um curto espaço de tempo), neoplatonismo, até se converter ao cristianismo com a pregação do bispo Ambrósio, que lhe ensinou o método da exegese alegórico-filosófico da Bíblia (REALE, 2005, p 82). Nos seus escritos, em sua grande maioria, podemos observar que neles estão contidos aspectos que demonstram ao leitor elementos que ajudam a entender as suas experiências religiosas, não só através dos seus escritos dogmáticos, mas também filosóficos e exegéticos. Todavia, nós nos perguntamos: por que escolher Agostinho, e não outro autor, para compreender, através da mediação filosófico-teológica, a experiência religiosa? Essa resposta pode ser dada através da análise que o filósofo Martin Heidegger faz no seu livro Fenomenologia da vida religiosa ( cf. HEIDEGGER, 2010, 157-232) sobre do livro X das Confissões. Heidegger analisa Agostinho mediante uma fenomenologia hermenêutica da facticidade para compreender sua experiência religiosa. Para o filósofo alemão, Agostinho vivencia a experiência de Deus sem desvincular-se de sua vida cotidiana, com tudo aquilo que ela contém. É através de sua experiência de vida que A- gostinho tem acesso à verdadeira experiência religiosa ( cf. HEIDEGGER, 2010, p 161), a busca daquele que ele mesmo o denominou como a Beata Vita ( cf. HEIDEGGER, 2010, p.174). 2. A OBRA Santo Agostinho escreveu a obra Comentário da primeira epístola de são João por volta dos anos 313-18. Não se sabe ao certo sua data de composição, porém sabemos que a obra foi escrita durante a oitava da Páscoa, pois, esses escritos, denotam uma preparação meticulosa e cuidadosa referente às homilias que o próprio Agostinho, já bispo da cidade de Hipona, realizou em suas celebrações. Essas homilias, que são comentários da carta epistolar de são João, resultaram na obra. Tendo estudado e analisado o texto da epístola, o bispo de Hipona, redigiu uma série de pregações referentes à carta, deixando somente as explicações dos 18 versículos finais. Agostinho escolheu essa carta porque a mesma estava em perfeita harmonia com as alegrias pascais. Esse escrito nos mostra um Agostinho no auge de sua vida intelectual e apostólica, onde temos concomitante a essas obras a redação das duas outras, como: A Trindade e a Cidade de Deus. Ambas as obras denotam muita técnica e uma preocupação acadêmica em sua redação. Entretanto, o comentário da epístola de São João nos mostra um bispo preocupado com sua comunidade, com a pastoral. Isso não significa que esta obra seja de menor importância teológica que aquelas. Fato que, quando se lê o comentário, é notória a preocupação pastoral de Agostinho com a comunidade de Hipona no que se refere ao cisma dos donatistas que influenciaram muito e dolorosamente os cristãos ao norte da África com as doutrinas equivocadas acerca do Credo, sacramentos e da natureza da Igreja. Agostinho, durante vinte anos, teve uma preocupação de suma importância com os cristãos. Nesta obra, é evidente o cuidado de Agostinho de preservar a fé dos cristãos e da Igreja, una e católica em seu sentido universal, no combate do cisma donatista através da demonstração da verdadeira caridade. Durante a leitura da obra, Agostinho faz seus comentários teológicos versículo por versículo da epístola. Esses comentários mostram a profundidade de suas reflexões pautada em sua experiência religiosa que o pensador africano presenciou em sua vida no passado e na vida presente. Os temas que se encontram na carta e que são trabalhados pelo bispo de Hipona são: a fé na encarnação do verbo divino; a revelação desse verbo como luz e também como amor; e a participação de nós fiéis nesse amor que é a comunhão plena com aquele que é a suma caridade,ou seja, o próprio Deus. Para que ocorra a comunhão e a efetivação dessa experiência com Deus é preciso, portanto, da necessidade de corrigir o pecado através da obediência aos mandamentos de Deus e a aceitação de Cristo em nossas vidas. Entretanto, o que marca no comentário de Agosti-

nho é a necessidade de afirmar a presença de Deus na comunidade através dos sinais do amor dele para conosco, porque ele nos amou antes mesmo de nós existirmos. Agostinho ressalta a necessidade também de amar os inimigos através da caridade fraterna que é um amor gratuito, porque o amor que vem de Deus é graça. E foi nessa gratuidade da caridade que Deus nos criou e em seu filho se encarnou a fim de morrer por nós e dar-nos o testemunho do amor. Não só o tema do amor é trabalhado nesse comentário, como também a fé é apresentada de modo articulado com a caridade. A fé é a adesão a esse amor que foi revelado na encarnação e redenção. A fé não é tão somente aderir às verdades dogmáticas, mas aceitar o amor de Deus constante da vida do homem, no qual presenciamos a conversão de um homem todo. Essa adesão é fazer a verdadeira experiência com Deus, com o amor, retornando esse amor gratuito que nos foi dado em direção aos nossos irmãos. No escrito da epístola de são João, que foi redigida em grego, o termo original que se refere ao amor é a palavra agape. Entretanto, Agostinho não teve acesso ao original, mas à tradução vulgata que se traduziu o agape por dilectio. Porém, são Jerônimo traduziu o mesmo termo em caritas. Todavia, Agostinho, no comentário, introduz uma terceira expressão: o amor. Portanto, os termos empregados no comentário, encontramos em três tipos: amor, dileção e caridade. O amor é usado por Agostinho para designar como antítese entre o amor ao bem e ao mal, ou também para o amor as coisas criadas. A dileção já corresponde ao amor das coisas espirituais, o amor da benevolência de Deus para conosco. E a caridade é o amor da virtude teologal, o amor desinteressado e gratuito. As características da verdadeira experiência religiosa da caridade, do amor, são os dois traços revelados por cristo na cruz: a universalidade e a gratuidade. Além desse tema de suma importância que norteia todo o comentário da epístola que Deus é amor (1jo 4, 8.16) Agostinho trabalha sobre o mesmo tema em consonância com o conceito de Igreja como corpo de Cristo, sobre a unidade e caridade contida na Trindade que é dada por nós. O modo que Agostinho escreve o comentário nos parece um exercício exegético da palavra de Deus e também um exercício espiritual sobre o tema do amor de Deus que é a caridade, gratuidade. 3. A INTERPRETAÇÃO DE MARTIN HEIDEGGER SOBRE SANTO AGOSTINHO Heidegger interpreta a experiência religiosa de A- gostinho à luz da faktische Lebenserfahrung (experiência de vida fática), conceito estudado na obra Fenomenologia da vida religiosa, constituída de três preleções realizadas em Friburgo, no período de 1920-21. Na primeira, Heidegger realizou uma introdução à Fenomenologia da Religião e a aplicou na análise referente a algumas cartas paulinas. Na segunda, analisou o livro X das Coinfussões de Agostinho e na terceira analisou a mística medieval. Para Heidegger, Agostinho significa duas coisas para o pensamento cristão ocidental: filosoficamente é um platonismo de coloração cristã contra Aristóteles; e teologicamente é uma determinada concepção da doutrina do pecado e da graça. Todavia, Heidegger não pretende analisar o pensamento agostiniano através de um método histórico crítico, histórico dogmático ou uma filosofia que contribui para uma filosofia da cultura. Heidegger analisa Agostinho especificamente a partir do livro X das Confissões mediante o método fenomenológico e inferindo deste capítulo alguns conceitos-chaves que demonstram um Agostinho não puramente dogmático, mas um pensador que lida com as tensões da vida procurando um caminho para compreendê-las melhor. Através dessa análise podemos inferir da obra Comentários sobre a primeira epístola de são João elementos sobre a experiência de vida Fática contidas no texto. Heidegger interpreta Agostinho não como um pensador dogmático, mas como quem tenta lidar com suas experiências religiosas, que muitas vezes lhe faz viver em tensões. Essas tensões que Agostinho confessa obter significa para Heidegger uma autenticidade da existência fática, pois ele não foge des-

sas tensões, pelo contrário, ele vive e toma decisões para chegar à beata vita, que é seu objetivo, através da via interior. Não tem como enfrentar essas tensões sem vivencia-las, pois elas se encontram na própria experiência da vida fática. É nesse enfrentar que Heidegger encontra a verdadeira experiência religiosa, o de enfrentar o mundo que circunda o próprio homem, mesmo quando as tensões estão presentes, pois, só assim, o homem assume o risco de decidir as contradições das tentações existenciais encontradas na vida. Deste modo, é assim também que ele irá compreender melhor essas tensões e irá saber de que modo resolve-las através das habilidades no próprio funcionamento das tentações presente nas experiências fáticas da vida. Heidegger buscou compreender em Agostinho as experiências religiosas que o pensador de Hipona confessa no livro X das Confissões. Nesses relatos fica claro que é impossível vivenciar uma experiência religiosa abdicando da própria experiência de vida fática, onde o homem se depara com seus afetos e tensões. A verdadeira autenticidade da experiência religiosa se obtém quando o próprio homem faz sua tomada de decisão diante dos paradoxos das tentações e dúvidas da própria vida. Deste modo, podemos observar claramente no texto de Agostinho Comentários da primeira epístola de são João que Agostinho faz sua tomada decisiva diante da comunidade na luta contra as heresias que estavam ocorrendo ( pelagianismo e donatismo) em sua diocese de Hipona através das homilias e pregações em suas celebrações. Nessas homilias são apresentadas o modo apologético e catequético de Agostinho, onde o próprio assume a sua decisão de enfrentar as tensões que viam ocorrendo em sua comunidade. 4. INTERPRETAÇÃO DE ÉTIENNE GILSON SOBRE AGOSTINHO Étienne Gilson (1884-1978) é exímio escritor e pesquisador da história da filosofia patrística e medieval, e um dos maiores pesquisadores do pensamento agostiniano, dentre os quais, seus trabalhos denotam grande erudição dessa área onde encontramos inúmeras obras e artigos referentes ao pensamento de Santo Agostinho. E é através desse autor que iremos debruçar para entendermos melhor a dialética entre Deus e o homem nas inquietações do pensador de Hipona Um dos seus maiores trabalhos sobre o pensador de Hipona, que podemos observar em Gilson, é a obra intitulada de Introdução ao estudo de Santo Agostinho, no qual encontramos todo um estudo aprofundado sobre os maiores problemas que Agostinho enfrentou em seu pensamento filosófico e teológico após a conversão ao cristianismo. Esta obra está estruturada em introdução, três capítulos, com seus subtítulos, e uma conclusão. Na introdução, Gilson aborda o conceito de beatitude e da finalidade do pensamento agostiniano sobre itinerário da alma para Deus. O autor elucida que, segundo Agostinho, é preciso e necessário que o homem rejeite as paixões e a soberba, pois elas ofuscam o verdadeiro caminho da busca da verdadeira sabedoria que é a beatitude que se realiza no encontro com aquele que é a sua beata vita, isto é, a Verdade que é o próprio Deus. No primeiro capítulo Gilson apresenta Agostinho como àquele que busca a Deus através do viés da inteligência precedida e iluminada pela fé. Neste capítulo encontramos a teoria do conhecimento em Agostinho a quem o mesmo apresenta os graus da racionalidade sempre obtendo a fé como aquela que ilumina e estimula a inteligência. É evidente em seu pensamento, na explicação racional sobre o conhecer das coisas sensíveis, a forte influência neoplatônica e cristã. No terceiro capítulo também são refletidas e estudadas as noções de criação, tempo, matéria e forma e os vestígios de Deus na criação e a noção de contemplação de Deus. Com efeito, esses conceitos são raciocinados, explicados e articulados por Agostinho através de ambas as influências ditas anteriormente. O segundo capítulo da obra de Gilson (Gilson, 2007, 221-350) nos mostra um panorama abrangente dos principais conceitos trabalhados por Agostinho para entender a busca do homem para alcançar a verda-

deira sabedoria que é o próprio Deus. Esses conceitos são: a sabedoria, a virtude, a caridade, a liberdade, a vontade, o mal e o amor. Eles nos revelam a busca do pensamento agostiniano em compreender aquele que se deve buscar, amparado pelo raciocínio lógico da filosofia concernente ao entendimento teológico de Deus. De principio, Gilson demonstra que para buscar a Deus, no pensamento Agostiniano, é preciso entender o conceito de sabedoria que o mesmo ilustra em suas obras. Há dois tipos de concepções do saber: aqueles que buscam por buscar, ou seja, uma busca sem método e sem ordenamento, onde o sujeito da busca jamais sabe o momento certo onde está a sua busca, sem objetivo, a sua busca se funda na alimentação de si mesmo. Por outro lado, temos a busca por um fim, que se pauta numa direção de uma meta fixa por caminhos determinados, onde há um fim, e esse fim é a plena felicidade. Esta busca pela felicidade só se dá pelo meio da razão superior que é a sabedoria. O homem, segundo Agostinho, é constituído por duas operações: o homem interior e o exterior. Este se equipara aos animais porque possui um corpo material, vida vegetal e sensações iguais aos animais, aquele diz respeito tudo aquilo que os animais não possuem que é a capacidade de raciocinar. O homem exterior se fixa na razão inferior que é a razão da ciência, das coisas criadas. Já o homem interior ultrapassa a ciência, que é subordinada à razão superior e instrumento da mesma, e se lança para a razão superior que é a razão que busca o criador, não mais na busca das coisas materiais, mas na busca das coisas eternas. A sabedoria, portanto, é o conhecimento das coisas divinas, eternas e imutáveis. Só temos esse ensejo de buscar e contemplar o divino porque nos foi dada a capacidade de se chegar à sabedoria. É preciso, portanto, que o homem se submeta à sabedoria para que seu pensamento se ordene e chegue ao seu fim devido que é a felicidade eterna, caso contrário, o homem viverá numa eterna busca sem sentido, onde apenas saciará a si mesmo numa eterna soberba. Cada conceito trabalhado por Gilson é fundamentado em diversas obras de Agostinho, sendo não necessariamente cronológica, mas sim por intensidade dos conceitos contidos em cada obra do pensador de Hipona. Apesar de ser uma obra introdutória a um pensador não significa que seja para iniciantes em filosofia ou teologia, pelo contrário, é uma obra densa, em que se expõe de modo claro e conciso o pensamento agostiniano e os seus principais conceitos. Demonstra-se claramente o raciocínio de Agostinho no entendimento da dialética entre o criador e as criaturas, o sumo bem a ser alcançado e a vontade daquele que deseja entender e possuir aquele que o criou. 5. CONSIDERAÇÕES FINAIS Objetivou-se nessa pesquisa inferir o conceito de experiência religiosa de Santo Agostinho à luz de sua obra Comentário da primeira epístola de São João na tentativa de compreender melhor esse conceito nesta obra. Para isso usamos dois pensadores Martin Heidegger e Étienne Gilson. Heidegger entende que a experiência religiosa vivenciada pelo santo africano se deu através da decadência de sua vida através das tensões vivenciadas e não aniquiladas. Somente através desse modo é que o homem pode viver realmente uma verdadeira experiência religiosa. Gilson buscou compreender a experiência religiosa através da via interior que se dá na dialética e da busca constante entre o homem e Deus, sendo que este é quem interpela primeiro o homem e o ilumina para compreendê-lo através graça. Entretanto, para acolher a graça o homem necessita desenvolver sua liberdade, porque somente através dela é que o homem se depara com o bem que o leva à Beata Vita em que se realiza verdadeiramente a experiência religiosa. 5. AGRADECIMENTOS Agradeço à Pontifícia Universidade Católica Campinas por proporcionar e incentivar aos estudantes de graduação a realização da Iniciação Científica. Agradeço ao meu orientador Prof. Dr. Paulo Sergio Lopes Gonçalves, por sua disposição e inteligência,

cresci e aprendi em cada uma de nossas conversas e orientações prestadas, bem como pela atenção em todos os nossos encontros. Agradeço ao grupo de pesquisa ao qual fiz parte durante esses anos de pesquisa. 6. REFERÊNCIAS [1]AGOSTINHO. Comentário da primeira epístola de São João. Paulinas: São Paulo, 1989. [2]. Confissões. Paulinas: São Paulo, 1984, pp. 249-301. [3]. A verdadeira religião. Paulinas: São Paulo, 1987. [4]GILSON, e. Introdução ao estudo de Santo Agostinho. Paulus: São Paulo, 2007. [5]GONÇALVES, P.S.L. A religião na pósmodernidade. Análise fenomenológica da vida religiosa, in Ontologia Hermenêutica e Teologia. Santuário: Aparecida (SP), 2011, pp. 59-105. [6]HEIDEGGER, M. Fenomenologia da vida religiosa. Vozes São Francisco: Petrópolis Bragança Paulista, 2011. [7]MATTHEWS, G.B. Santo Agostinho. A vida e as idéias de um filósofo adiante de seu tempo. Jorge Zahar Editor: Rio de Janeiro, 2007.