Cinema e terrorismo: uma relação de história e poder



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Transcrição:

P á g i n a 3 Cinema e terrorismo: uma relação de história e poder Cássio R. H. S. Campos Nicolly da Silva Barbosa Resumo: Este artigo analisa a utilização do discurso ideológico norte-americano pela indústria cinematográfica de forma a manipular e consolidar a ideia dos muçulmanos como inimigo comum do ocidente após os atentados de 11 de setembro de 2001. Essa análise se dá através da compreensão dos processos históricos na relação Estados Unidos e do mundo muçulmano de sua origem até o tempo atual. Palavras chaves: Cinema. Terrorismo. Estados Unidos da América. Muçulmanos. Ideologia. ABSTRACT: This article analyzes the use of North American ideological discourse by the film industry in order to manipulate and consolidate the idea of the Muslims as a common enemy of the West after the attacks of September 11, 2001. This analysis is done by the understanding of the historical processes, in the relationship between United States and the Muslim world, from its origin to the present time. Keywords: Cinema. Terrorism. United States of America. Muslims. Ideology. 1 - Missão e destino do povo eleito Para melhor entender a lógica que rege o discurso político-ideológico norte americano, é preciso analisar sua história e seu passado intervencionista. Os motivos que levam essa nação a se considerar superior, representando e defendendo os padrões da dita cultura ocidental, devem ser compreendidos a fim de traçar um perfil que justifique seu modo de pensar e se relacionar com outras culturas. Neste artigo, tratamos mais especificamente das relações mútuas dos EUA (Estados Unidos da América) com o mundo muçulmano. Logo após os atentados de 11 de setembro de 2001, o presidente Bush discursa no rádio e na televisão anunciando que os Estados Unidos estavam entrando em guerra contra o terror. Frases como a liberdade foi atacada, a democracia foi atacada e esta é uma guerra do bem contra o mal incitavam a América a defender seus valores mais profundos, já que ela estava sendo atacada (JUNQUEIRA, 2003, p.164). A ideia de nação com um passado comum e um povo escolhido começa a ser construída a partir da independência Norte Americana em 1776. Depois de se libertar da Inglaterra, o inimigo comum até então, era preciso forjar a liga que daria coesão às treze colônias com interesses nem sempre convergentes. Era necessário criar uma identidade nacional que desse um sentimento de união a esses diversos grupos que habitavam as colônias. O recurso utilizado foi a criação de um passado comum a eles. O mito da criação de um povo excepcional, destinado por Deus a guiar as demais civilizações para os píncaros do que seria a verdadeira essência da cultura ocidental perdida, remonta a chegada dos primeiros imigrantes ao novo mundo. Os chamados pais peregrinos foram um grupo religioso radical que rompeu com a igreja Anglicana no século XVII e, a bordo do Navio Mayflower, atravessou o Atlântico em direção à Nova Inglaterra. Segundo conta o mito, durante a travessia, esses imigrantes puritanos fizeram um acordo, chamado de

P á g i n a 4 pacto do Mayflower. Nesse, foi estabelecido que todos os homens seriam consultados sobre decisões que tangessem a todo o grupo. Dessa forma, construíram uma sociedade democrática com forte base religiosa. Mesmo sabendo que muitos outros grupos religiosos povoaram as primeiras colônias, foram usadas as imagens desses puritanos, os pais peregrinos, para forjar a amálgama que uniria as treze colônias remetendo-as a antepassados comuns. Outro elemento, além do religioso, foi utilizado para fundamentar os valores pretendidos pelos estadunidenses: a antiguidade clássica. Para alguns políticos e jornalistas da época, cabia aos EUA - sendo o povo eleito por Deus - resgatar os verdadeiros valores do Ocidente perdidos pela Europa monarquista. A perda desses valores se traduzia na corrupção dos princípios fundados na antiguidade Grega e Romana. As noções de democracia e república e as ideias de moral e virtude eram embasadas não somente na Bíblia e em escritores liberais europeus, mas também nos autores clássicos greco-romanos (RICHARD, 1994 APUD JUNQUEIRA, 2003, p.168). Seguindo a perspectiva do mito de herdeiros do ocidente, os americanos teriam criado um modelo universal ao qual todos deveriam convergir e, se não o fizessem, estariam no caminho errado. Os EUA tinham como destino ser uma sociedade virtuosa, guiada por Deus, com a missão de conduzir todos os povos à civilização. Essa ideia, sintetizada no Destino Manifesto, justificou sua extensa expansão territorial durante os séculos XIX e XX, além de diversas intervenções em vários pontos do globo. Levar os princípios morais da civilização ocidental a povos inferiores - conceitos de democracia e liberdade - era a missão do povo eleito. Quando o presidente Bush clama por desarticular o Eixo do mal e declara guerra ao terror, está fazendo valer, através da retórica uma ideologia, um mito construído ao longo dos anos. Ele lembra aos seus compatriotas e ao mundo que atacar os Estados Unidos é atacar o Ocidente como um todo. Bush procurou conseguir na opinião pública, não só na dos Estados Unidos, mas na de todo o ocidente, o apoio para as medidas que pretendia tomar. 2 - Cultivando a semente do mal Nos meses que se seguiram aos atentados de 11 de setembro de 2001, o governo americano inicia uma verdadeira caçada pelo planeta buscando punir os responsáveis pelas mortes e destruição causadas. A autoria é atribuída à organização fundamentalista islâmica Al- Qaeda, na qual Osama Bin Laden é o líder. Todos os que pertencem a etnias identificadas com o mundo muçulmano estão agora sob a mira dos holofotes. Fazer o que devia ser feito e libertar aqueles povos das garras dos terroristas e daqueles que os financiam era missão do povo eleito. Esse argumento servia não só para invadir o Afeganistão e massacrar as populações árabes miseráveis. Justificava também a deposição do ditador Saddam Hussein, permitindo aos EUA controlar uma das maiores reservas de petróleo do mundo no Iraque. O envolvimento mais profundo do mundo muçulmano com os norte-americanos começou durante a Guerra Fria. A polarização do mundo entre a União Soviética comunista e

P á g i n a 5 os Estados Unidos capitalista fazia cm que cada país necessitasse alargar e proteger suas zonas de influência. Para isso, ambos os lados utilizavam países periféricos com o intuito de combater o inimigo. O então jovem Osama Bin Laden liderou a guerra contra os Soviéticos quando estes invadiram o Afeganistão nos anos 80. Quem o escolheu e treinou foram justamente os estadunidenses. O mesmo aconteceu com Saddam Hussein, recrutado e treinado pelo governo dos EUA para atacar o Irã. Com o fim da União Soviética, o sentimento de integração a um dos blocos se dissolve. Países que antes eram atraídos às zonas de influência são deixados de lado por não mais representarem interesses econômicos ou estratégicos do ponto de vista militar. O processo de fragmentação acaba acentuando os conflitos étnicos e faz com que esses países e sua população, que antes estavam destinados ao desenvolvimento, tornem-se áreas de pobreza e conflitos locais. Porém, os maiores conflitos pós-guerra Fria não seriam ideológicos nem econômicos. Eles seriam fruto de embates culturais, ocorrendo entre nações e grupos de diferentes etnias. Neste momento, os valores da cultura ocidental capitalista representada pelos Estados Unidos surgem como vitoriosos e hegemônicos. A supremacia econômica e política do ocidente impõe uma nova divisão mundial: o Ocidente e o resto (AYERBE, 2002, p.17). Aqueles que não compartilham desses valores devem ser combatidos, pois não estão inseridos na lógica capitalista. O discurso maniqueísta de bem e mal ressurge dessa vez para justificar a imposição dos valores e interesses dos ocidentais sobre os outros povos. Era preciso a escolha de um novo inimigo comum. Para Wellausen: Depois da Guerra Fria, a União Soviética deixou de existir como inimigo dos Estados Unidos, que precisaram fabricar um novo inimigo para continuar o jogo maniqueísta e, assim, justificar o terror de Estado desenvolvido pelas políticas administrativas e financeiras americanas. Logo foi apontado o novo inimigo o fundamentalismo islâmico portador do mal, e o próprio satã era Osama Bin Laden. (WELLAUSEN, 2002, p.106) 3 - A resposta terrorista Outro tipo de polarização ficava em evidência com a fim da União Soviética: em vez de leste e oeste, comunista e capitalista, surgia a polarização entre ricos e pobres. A própria natureza do crescimento econômico através da exploração do petróleo nas mãos de poucas famílias gerava essa polarização da sociedade. No começo dos anos 1990, a desigualdade entre os mais ricos e os mais pobres, a constante presença estrangeira atraída pelos negócios do petróleo e o enfraquecimento do governo de alguns estados com o fim da Guerra Fria era flagrante. Todos esses aspectos contribuíram para a formação de grupos que se identificavam como oprimidos por essa sociedade. Para a maioria desses grupos oprimidos árabes reunidos pela amálgama da religião, restaurar a lei islâmica, que eles consideravam subvertida tanto pelo invasor estrangeiro quando pelos modos importados de governo, deveria ser o objetivo de sua Jihad (guerra

P á g i n a 6 santa). A saída encontrada por muitos desses grupos para afirmar seu modo de pensar, fazendo valer seus valores e anseios, será chamada de guerra por eles e de terrorismo pelo inimigo. É preciso relativizar, porém, o uso de ambos os conceitos, guerra e terrorismo. A mídia ocidental utiliza largamente a expressão atentado terrorista às investidas dos grupos islâmicos, enquanto chama de guerra a resposta dos EUA a eles. Ponderar sobre algumas ações do passado norte-americano é de fundamental importância para compreender que o termo terrorismo poderia ser aplicado a diversos casos. O lançamento das bombas em Hiroshima e Nagasaki, a intervenção em dezenas de países latino-americanos e a invasão e morte de centenas de civis no Afeganistão podem ser classificados como terrorismo de Estado. Para os grupos islâmicos, a guerra de libertação e resistência contra o invasor obedece a uma lógica de ataque surpresa e pontual, sendo uma maneira de conduzir a resistência contra um inimigo belicamente superior. 4 - Tio Sam como o próprio satã Os americanos têm desconsiderado historicamente os direitos humanos e políticos do mundo muçulmano. A nova ordem capitalista que se materializa na política externa norteamericana pressupõe dominação política e econômica desses povos. As constantes intervenções nos assuntos internos de diversos países acabam causando raiva e frustração em suas populações, que se sentem coagidas. A expulsão arbitrária de centenas de milhares de muçulmanos da palestina durante a criação do estado de Israel em 1948, seguido do amplo apoio político, militar e financeiro dado a Israel é um dos principais motivos do ódio contra os EUA. Ao longo dos anos, a posição favorável aos Judeus vem se mantendo na chamada Questão Palestina. Para as organizações fundamentalistas islâmicas, os EUA são o inimigo a ser combatido não só por serem o invasor estrangeiro pró-israel, mas por representarem o modelo de cultura e modernidade ocidental que corrompe os valores dos povos muçulmanos. Religião e política vão se misturando na busca pela libertação do inimigo opressor. (...) A identidade do grupo se sintetiza na única missão política a cumprir matar e expulsar todos os americanos e seus aliados, varrer da terra a cultura americana. (WELLAUSEN, 2002, p.101) Durante a década de 1990, os Estados Unidos e seus aliados se tornam os alvos preferencias dos atentados. Osama Bin Laden está ligado a várias dessas ações cometidas contra os interesses dos estadunidenses. Com os atentados de 11 de setembro de 2001, sua cabeça é colocada a prêmio, tornado-se um dos dez foragidos mais procurados pelo FBI. 5 - Cristalização do discurso através da indústria cinematográfica Uma das grandes contribuições do século XX foi a construção de espetáculos em massa. A internet e o cinema são as duas mídias que mais modelam pensamentos,

P á g i n a 7 comportamentos e identidades (KELLNER, 2004, p. 5). Recuando um pouco na história dos espetáculos, vemos a utilização dos mesmos na Antiguidade Clássica, quando os grandes banquetes, as tragédias gregas e a política do pão e circo predominavam no cotidiano das classes altas e médias da Grécia e de Roma. Na era Moderna, temos a fundamentação da importância dos espetáculos com Maquiavel em sua obra mais famosa, O Príncipe: Um príncipe deve ainda mostrar-se amante das virtudes dando hospitalidade aos homens virtuosos e honrando os melhores numa arte. (...) Além disso, nas épocas convenientes do ano, deve distrair o povo com festas e espetáculos. E porque toda cidade está dividida em corporações ou em circunscrições, deve cuidar dessas coletividades, reunir-se com elas algumas vezes, dar provas de humanidade e munificência, mantendo sempre firma, não obstante, a majestade de sua dignidade. (MAQUIAVEL, p. 135) Como foi dito anteriormente, o cinema é uma mídia que ultrapassa os limites de espaço, tempo e, sobretudo, de público. Não há nenhum tipo de distinção quando falamos de produções cinematográficas, já que estas mexem com a experiência sensorial, ou seja, não há necessidade de conhecimento prévio para compreender o enredo. Seguindo essa lógica, símbolos são essenciais para induzir, ou até mesmo manipular, o grande público. Para Bourdieu, sociólogo francês que discute sobre a teoria social, pode-se compreender que: Os sistemas simbólicos, como instrumentos de conhecimento e comunicação, só podem exercer um poder estruturante porque são estruturados. O poder simbólico é um poder de construção de realidade (BOURDIEU, 1989, p. 9). Mas o que são os símbolos? Podemos encarar como uma forma importante da construção da linguagem humana. Determinados signos correspondem a um determinado grupo e só ele é capaz de reconhecê-los. Por exemplo, o herói conhecido como Superman é o símbolo da esperança para o mundo ocidental não por acaso, seu uniforme têm as mesmas cores da bandeira norte-americana - que, frequentemente, combate os inimigos e traz a manutenção de segurança nacional. Quem adere ao conjunto ideológico subjacente às histórias do Superman é considerado, para todos os efeitos, parte de um grupo que sustenta a simbologia do mito. Logo emerge uma grande indústria especializada em captar e construir símbolos que expressam questões culturais, políticas e sociais para defender uma ideia, geralmente a de uma classe dominante. A ideia de usar a indústria cultural como forma de disseminar a ideologia norte-americana vem com a necessidade do Estado Moderno de se unificar através da economia e cultura. O espetáculo da mídia invadiu todos os campos da experiência, desde a economia e cultura, até a vida cotidiana (KELLNER, 2004, p. 11). Apropria-se de experiências, sejam elas boas ou ruins. Com uma mistura de sensacionalismo ou fantasia, legitima uma ação e/ou reforça um discurso. Após o atentado de 2001 nos Estados Unidos, há necessidade de criar e expor símbolos no imaginário popular com o intuito de nutrir uma ideia de segurança nacional. Analisando a produção cinematográfica posterior à ação terrorista do 11 de setembro, vemos

P á g i n a 8 dois gêneros que reforçam o discurso e acentuam os símbolos que foram comentados anteriormente. O primeiro se enquadra na questão dos dramas pessoais dos que sofreram com o ataque. Voo 93 (2006) e As Torres Gêmeas (2006) são filmes que entram no campo afetivo, envolvendo o povo em uma tristeza comum. Sempre há um sentimento de unificação e compartilhamento de emoções, pois somente com a integração da massa poderá haver a racionalização do discurso. O segundo gênero é a visível entrada de filmes com super-heróis que buscam a paz lutando contra os inimigos comuns da nação que está ameaçada. Podemos usar como exemplo o filme Homem de Ferro (2008), que teve sua história em quadrinho criada durante a Guerra do Vietnã (1955-1975). Seus inimigos dos quadrinhos, os vietcongs, seriam substituídos pelos árabes mulçumanos no filme de 2008. Isso pode ser encarado como uma forma efetiva e maleável de criar histórias alterando sua fonte de ameaça, substituindo o vilão conforme a necessidade político-ideológica. Para um estudo de caso mais aprofundado, foram selecionados três filmes que retratam o diálogo entre a indústria cinematográfica e o discurso ideológico norte-americano, trazendo uma característica que não se enquadra nos filmes citados anteriormente: eles estão presentes em categorias importantes na maior premiação do cinema mundial, o Oscar. A escolha desses filmes tem uma simples justificativa: desbancaram filmes high-tech que trouxeram inovações tecnológicas e sensoriais para os espetáculos em massa, como é o caso de Avatar (2008) e Aventuras de Pi (2013). Os filmes selecionados para demonstrar esta relação foram Guerra ao Terror e A hora mais escura, dirigidos por Kathryn Bigelow, e Argo, dirigido pelo também ator Ben Affleck. Todas essas produções têm em comum, além de serem gravadas pós 11 de setembro, o fato de apontarem o mundo muçulmano como inimigo comum do ocidente. 6 - And the Oscar goes to... Terrorismo! A proposta da Indústria Cultural de unir os discursos ideológicos com os meios de comunicação pode ser analisada como um fenômeno de longa duração. Sempre apresentando um inimigo comum, a produção de filmes norte-americana traz desde enredos mais complexos e realistas, como em Confissões de um Espião Nazista (1939), até releituras exageradas sobre algum fato histórico, citando o filme Bastardos Inglórios (2009). Outros exemplos da indústria cinematográfica que caíram no gosto popular e são consagrados pela cultura pop: Indiana Jones contra os nazistas em A última Cruzada (1989) e em uma aventura contra os russos comunistas em O Reino da Caveira de Cristal (2008). Podemos citar também o famoso soldado Rambo, que combate os vietnamitas como uma forma de exibir a supremacia de um homem só Lobo Solitário perante uma cidade ou, até mesmo, de um exército. Dessa forma, percebe-se que a produção cinematográfica é influenciada pelos conflitos nos quais os Estados Unidos se envolveram: passando pela Segunda Guerra Mundial (1939-1945), pelo jogo de forças do mundo bipolarizado até os conflitos atuais, como os nossos estudos de caso mostram. Em Guerra ao Terror, dirigido por Kathryn Bigelow, o conflito no Iraque é retratado a partir da visão de um grupo de soldados que pertencem ao esquadrão antibombas do exército americano. Apesar de seu arrecadamento mundial não ter sido impressionante ao contrário

P á g i n a 9 de Avatar (2009) que faturou mais de US$ 2 bilhões de dólares conquistou o maior prêmio da noite do Oscar de 2010. 1 O filme contou com a contribuição no roteiro do excorrespondente da Guerra do Iraque, Mark Boal. Em entrevistas 2 ele alega que Guerra ao Terror não é um documentário e que há uma preocupação em mostrar como a guerra do Iraque foi vista pelos americanos, o que trouxe bastante apreço pela crítica e pelo público 3. A Hora mais Escura, filme também produzido pela diretora Kathryn Bigelow, gira em torno da caçada até o assassinato do líder da Al Qaeda, Osama Bin Laden. Um fato curioso desse longametragem é que o roteiro teve de ser adaptado durante as gravações, quando a notícia da morte de Bin Laden chegou aos meios de comunicação. A arrecadação do filme totalizou cerca de US$ 96 milhões de dólares 4 e teve uma recepção calorosa, obtendo 5 prêmios nas mais diversas categorias em premiações mundiais. Por último, o filme Argo (2013), dirigido por Ben Affleck, trouxe um resgate histórico ao mostrar a ação da CIA durante a Revolução Iraniana no final da década de 70. Baseado em fatores reais, o roteiro foi apoiado no livro Master of Disguise: My Secret Life in the CIA de Antonio J. Mendez, responsável pela operação Argo. O arrecadamento de Argo totalizou US$ 136 milhões de dólares e conquistou o prêmio de Melhor Filme no Oscar de 2013, desbancando o favorito Lincoln (2013), que revivia os tempos da abolição da escravatura. Abraham Lincon é uma referência, sendo considerado um dos maiores presidentes da história da democracia norte-americana. O favoritismo de Steven Spielberg, diretor do filme, era bem explícito - ganhar a maior quantidade de prêmios era esperado na noite do Oscar. Contudo, o resgate histórico de Argo provou que retratar o triunfo sobre o inimigo comum tem sido o aspecto mais válido para conquistar a atenção da Academia de Artes e Ciências Cinematográficas. Ao utilizar a indústria cinematográfica como divulgadora da ideologia norteamericana, o governo resgata símbolos que buscam justificar e legitimar suas ações. Era tarefa fundamental mobilizar, influenciar e conseguir o apoio não só da população estadunidense como de todo mundo ocidental para obter sucesso nas intervenções e ocupações dos territórios muçulmanos. O número crescente de produções premiadas que abordam os conflitos do "mundo ocidental", capitaneado pelos EUA, contra o "mundo oriental", representado nas últimas décadas pelo mundo muçulmano, mostra a preocupação do governo norte-americano com a opinião pública. Manter a união e a coesão de um povo tão heterogêneo como o estadunidense só é possível na medida em que haja a construção de uma história comum, de uma ideologia comum e de um inimigo comum a ser combatido. A preocupação de que suas ações não sejam reprovadas por seu povo e nem pelos povos ocidentais, sendo estas taxadas como "ações terroristas", é visível. A História dirá se serão ou não. 1 Dados retirados do site <imdb.com> 2 Ver o artigo Some Iraq, Afghanistan war veterans criticize movie Hurt Locker as inaccurate do The Washington Post 3 O fato de haver baixa bilheteria não implica necessariamente que poucas pessoas tiveram acesso ao filme, já que a pirataria possibilitou outras formas de assisti-lo. 4 Dados retirados do site <imdb.com>

P á g i n a 10 Referências Bibliográficas AYERBE, Luis Fernando. O ocidente e o resto : argumentos culturais da nova ordem mundial. In: Estados Unidos e a América Latina: a construção da hegemonia. São Paulo, UNESP, 2002. BOURDIEU, Pierre. O poder simbólico, tradução: Fernando Tomaz. Lisboa, Difusão Editorial, 1989. HOBSBAWN, Eric J. Era dos extremos: o breve século XX 1914-1991. 2 Ed. São Paulo, Companhia das letras, 1995. HOBSBAWN, Eric J. Nações e nacionalismo desde 1780: programa, mito e realidade. Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1990. HOURANI, Albert. Uma história dos povos árabes. São Paulo, Companhia das Letras, 2006. IANNI, Octavio. A racialização do mundo. São Paulo, Tempo Social; Revista de Sociologia da USP, p. 1-23, maio, 1996. JUNQUEIRA, Mary A. Os discursos de George W. Bush e o excepcionalismo norte-americano. São Paulo, Margem, p.163-171, 2003. KELLNER, Douglas. O triunfo do espetáculo. Tradução: Rosemary Duarte. Revista Líbero, 2004. MAQUIAVEL, Nicolau. O príncipe. São Paulo, Editora Escala: Coleção Grandes Obras do Pensamento Universal, 4º edição. RICHARD, Carl J. The Founders and the Classics Greece, Rome and the American Enlighnment. Cambridge, Harvard University Press, 1994. WELLAUSEN, Saly da Silva. Terrorismo e os atentados de 11 de setembro. São Paulo, Tempo Social; Revista de Sociologia da USP, p. 83-112, outubro, 2002. Filmes citados ARGO - EUA, 2013, d.: Ben Affleck, p.: Warner Bros., Smoke House Produtions AVATAR - EUA, 2009, d.: James Cameron, p.: 20th Century Fox, Lightstorm Entertaiment. AVENTURAS DE PI, AS - EUA, 2013, d.: Ang Lee, p.: Fox 2000 Pictures, Rhythm and Hues. BASTARDOS INGLÓRIOS EUA, Alemanha, 2009, d.: Quentin Tarantino, p.: The Weinstein Company, Universal Pictures, Zehnte Babelsberg Film. CONFISSÕES DE UM ESPIÃO NAZISTA EUA, 1939, d.: Anatole Litvak GUERRA AO TERROR - EUA, 2009, d.: Kathryn Bigelow, p.: First Light Prodution, Kingsgate Films. HOMEM DE FERRO EUA, 2008, d.: Jon Favreau, p.: Paramount Pictures, Marvel Films. HORA MAIS ESCURA, A - EUA, 2013, d.: Kathryn Bigelow, p.: Annapurna Pictures. INDIANA JONES E A ÚLTIMA CRUZADA EUA, 1989, d.: Steven Spielberg, p.: Lucasfilm Ltd., Paramount Pictures INDIANA JONES E O REINO DA CAVEIRA DE CRISTAL EUA, 2008, d.: Steven Spielberg, p.: Lucasfilm Ltd., Paramount Pictures. LINCOLN EUA, 2013, d.: Steven Spielberg, p.: DreamWorks SKG, Twentieth Century Fox Film Corporation, Amblin Entertainment, The Kennedy/Marshall Company, Imagine Entertainment, Parkes/MacDonald Produtions, Reliance Entertainment. RAMBO: PROGRAMADO PARA MATAR EUA, 1982, d.: Ted Kotcheff, p.: Carolco Pictures TORRES GÊMEAS, AS EUA, 2006, d.: Oliver Stone, p.: Paramount Pictures, Double Feature Films, Intermedia Films. VÔO 93 EUA, França, Reino Unido, 2006, d.: Paul Greengrass, p.: Universal Pictures, Working Title Filmes.

P á g i n a 11 Os autores Nicolly da Silva Barbosa é graduada em História pela UNESA. nicollybarbosa1@gmail.com e Cássio R. H. S. Campos é graduado em História pela UNESA, professor de História em nível Médio. cassiohipolito@hotmail.com