Aque dizem respeito as fórmulas na psicanálise?(...) Existem conceitos



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Transcrição:

EDITORIAL Aque dizem respeito as fórmulas na psicanálise?(...) Existem conceitos analíticos de uma vez por todas formados? A manutenção quase religiosa dos termos dados por Freud para estruturar a experiência analítica, a que se remete ela? Tratar-se-á de um fato muito surpreendente na história das ciências a de que Freud seria o primeiro e permaneceria o único, nessa suposta ciência, a ter introduzido conceitos fundamentais? Sem esse tronco, sem esse mastro, esse piloti, onde amarrar nossa prática? Poderemos dizer mesmo que se tratam, propriamente falando, de conceitos? Serão conceitos em formação? Serão conceitos em evolução, em movimento, a serem revistos? Lacan formula estas questões em 1964, início de seu seminário na École Normale Supérieure, tempo profundamente alterador dos rumos que dali por diante iria tomar e propor. O momento era o de recente afastamento, a dita excomunhão do institucional psicanalítico oficial, ao mesmo tempo início da configuração que seu ensino iria assumir: o debate forte com o meio intelectual de seu contexto, a reunião dos jovens em formação, o reposicionamento dos laços daqueles que seguiram com ele compartilhando a experiência clínica e associativa. Nessa altura dos acontecimentos, já não era novidade a crítica que Lacan dirigia ao pós freudismo, desde o primeiro seminário até o contundente Direção da cura (dirigir a cura não é dirigir o paciente risco de fazer do manejo da transferência um instrumento de poder). No turning point do seminário de 64, a ousadia é relançada, mais aguda, levando a interrogação ao limite: a transferência ao fundador e aos fundamentos, confrontada com os termos da religião, da ciência e da práxis. Nos encontramos com a atualidade dessas questões, incluindo, hoje, a revisão da experiência lacaniana. Partimos do que Lacan enuncia nesse seminário no qual, justamente, o termo fundamentos é trazido ao primeiro plano, junto aos conceitos: Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Responsabilidade que é a nossa, na sustentação da prática analítica em nosso tempo e quadro discursivo, tarefa em exercício na APPOA, neste ano, e inspiradora dos textos que compõe este número do Correio. C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 1

NOTÍCIAS NOTÍCIAS OFICINA DE TOPOLOGIA: OS NÓS No dia 11 de março manhã de um lindo sábado de verão, com a casa tomada de atividades neste início de ano letivo na APPOA ocorreu a primeira Oficina de Topologia do ano, sobre o tema dos Nós. A seguir, um resumo do que foi trabalhado. Existem várias maneiras de abordar os nós: as mais conhecidas são a artística, que podemos ver nas capas de livros, nas decorações e nas obras de arte; e a matemática, que deseja definir os nós, classificá-los e diferenciá-los uns dos outros. Lacan propôs uma outra abordagem ao descobrir que eles poderiam representar o funcionamento da mente do sujeito da linguagem. E não apenas representar, mas dar conta da estrutura do sujeito, formada pela relação entre as instâncias do Real, do Simbólico e do Imaginário, enlaçadas de tal forma que estivessem ao mesmo tempo juntas e independentes. Lacan foi ainda mais ousado ao dizer que o nó borromeu era a própria estrutura do sujeito e que nós pensamos em forma de nós. A cadeia de significantes pode ser simplificada em forma de link, ou seja, vários nozinhos interligados em uma seqüência infinita. Após Lacan, a psicanálise ocupa-se dos nós como uma maneira de abordar o inconsciente e as relações entre Real, Simbólico e Imaginário. Em sua definição, temos que os nós são todas as superfícies homeomorfas à circunferência. Ou seja, um círculo desenhado no papel é um nó, visto que é a projeção de uma esfera no plano. Podemos imaginar um nó como um fio deformável, cujas extremidades são grudadas uma na outra. Ele pode ser aberto e enlaçado em si mesmo ou em outros nós, formando enlaçamentos bem complexos (depois deve ser fechado novamente). Uma cadeia de nós ou link é a união disjunta de dois ou mais nós. O que conhecemos como nó borromeu na verdade é uma cadeia, pois possui três círculos (três nós). Um enlaçamento pode ser projetado no plano R 2, gerando as chamadas projeções do enlaçamento. Chamamos de cruzamentos aos lugares onde um enlaçamento cruza a si mesmo. Geralmente Lacan trabalhava com projeções de enlaçamentos. As cadeias de nós podem ser construídas também a partir de tranças, como no Seminário O Sinthoma neste caso, suas extremidades deveriam estar ligadas para não escaparem. Assim, um nó, nas vizinhanças de um cruzamento, é localmente equivalente a uma trança. A teoria dos nós se desenvolveu da racionalidade algorítma: para cada classificação há uma equação definitiva, no sentido de definitória, o que faz com que ele seja único, e possa ser escrito em linguagem científica. Há várias classificações para os links, a partir do número de nós e de cruzamentos. A de Milnor é a mais conhecida. Michel Thomé, um dos topólogos de Lacan, desenvolveu uma classificação que se dá a partir do número de nós, número de cruzamentos entre eles e a topografia destes (lugar onde se cruzam). Esta classificação seria mais conveniente à teoria lacaniana, pois na classificação de Milnor não há diferença alguma entre o nó do fantasma, o nó da relação sexual e o nó da não-relação sexual: todos possuem dois nós livres (número de enlace zero). A prática dos nós evidencia uma hermenêutica, uma subjetividade de interpretação, à qual se tem atribuído questões do inconsciente freudiano. Uma das teses freudianas sobre as conseqüências da interdição da masturbação infantil, é que isso geraria uma inaptidão para a matemática e a criatividade futuras. A inibição do tocar e do olhar procederia do recalcamento das moções sexuais e se manifestaria futuramente na prática artística como incompetência motriz e, na pesquisa, como inibição à liberdade do pensamento. Na criança, quando ela pôde receber o interdito e esquivar-se desta prisão, criando suas próprias teorias sexuais, a aprendizagem e o desenvolvimento seriam mais eficientes e efetivos. Do contrário, a criança presa, petrificada ( medusada ), se interdita para as matemáticas, as artes, e entre elas para o desenho dos nós. Esta desaparição coincide com a realização zoocial (cf. termo de Charles Melman) do interdito sexual. Não lhe resta escolha: ou se rigidifica na lógica, ou se refugia no delírio. Porém, se tal concepção da interpretação freudiana ainda não se desenvolveu é porque nos faltam conhecimentos com os quais se poderiam abordar os movimentos do inconsciente que a prática dos nós desenha. Daí a idéia de que a plasticidade dos nós estaria a meio caminho entre a topologia 2 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 3

NOTÍCIAS NOTÍCIAS e a psicanálise. O topólogo a mantém como um sistema especulativo, um delírio totêmico, ou até um fetiche; o psicanalista, que a aprecia pela normatização dos sistemas e se beneficia dela para compreender os conceitos lacanianos, tem dificuldade para tirar proveito dela na clínica e para desenvolvê-la em seus estudos. Daí a minha proposta de continuarmos desenvolvendo a prática e a pesquisa sobre os nós nas Oficinas da APPOA. A plasticidade dos nós é uma formação do inconsciente, da lógica, da forma, da percepção das estruturas, da fluidez das relações, da tentativa e do erro, do reconhecimento dos erros, do referencial de nossas resistências e da resistência dos materiais (como constatamos na Oficina: eles têm vontade própria!). Desafia nossa inteligência, nossos conflitos e transferências. Ela realiza uma relação prática, estrutural, e de governabilidade incontrolável! A parte fraca do incalculável na prática dos nós deixa o campo aberto às nossas resistências e suas manifestações: a incerteza, a incompletude e a frustração... Além do princípio do prazer, a plástica neudiana (nó + freudiana) é uma maneira de expressar o pensamento. A arte de desenosar é a mesma do associar livremente, de transmitir, interpretar, de escutar, de surpreender e se divertir. Ligia Gomes Victora NOVA PUBLICAÇÃO DA APPOA SOBRE AS PSICOSES A Comissão de Aperiódicos está organizando um livro sobre o tema das psicoses. Trata-se de um campo que vem sendo trabalhado por vários membros da APPOA e tal publicação permitiria compartilhar a produção na área e dar visibilidade ao trabalho que vem sendo consistentemente realizado. Os associados que desejarem inserir seu trabalho na publicação podem enviar seus textos para apreciação da Comissão até o dia 31 de maio de 2006, impreterivelmente. Os textos deverão ser enviados por email à APPOA, aos cuidados da Comissão de Aperiódicos. 150 ANOS DE FREUD A Associação Psicanalítica de Porto Alegre em conjunto com o Santander Cultural convidam para o evento comemorativo aos 150 anos de Sigmund Freud. Aos 150 anos da data do seu nascimento é visível a importância de Sigmund Freud, inventor da Psicanálise, para a cultura mundial. Desde o início do século XX, os postulados freudianos revolucionaram a postura e a relação do homem consigo mesmo, com seu semelhante e com a cultura. Estes conceitos continuam sendo fundamentais para o ofício do psicanalista e, além disso, articulam-se a diversas áreas do conhecimento. Não é demais lembrar que diferentes ciências, movimentos artísticos e correntes de pensamento tomam como referência a descoberta do inconsciente. Além disto, conceitos psicanalíticos como complexo de Édipo, sexualidade infantil, recalque e muitos outros transformaram-se em expressões cotidianas tanto nas conversas familiares quanto nas trocas sociais. Por tudo isso propomos, nesta data, relançar o debate a respeito da originalidade da invenção freudiana o inconsciente estruturado como uma linguagem - em face das transformações sociais e das mudanças tecnológicas. Ou seja, a atualidade da herança de Freud e suas perspectivas para o século XXI. Evento: Freud, presente e futuro Data: 06 de maio, sábado, das 10h 30min. às 18h. Local: Santander Cultural, Rua Siqueira Campos, 1028, Praça da Alfândega, Porto Alegre. Informações e inscrições: F. 33332140 ou appoa@appoa.com.br. 4 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 5

NOTÍCIAS NOTÍCIAS CARTEL SOBRE O SEMINÁRIO XI - OS QUATRO CONCEITOS FUNDAMENTAIS DA PSICANÁLISE, DE JACQUES LACAN. Em 2006 a APPOA está propondo um retorno, tal como aquele que Lacan nos levou a realizar com Freud. Voltaremos, desta vez, ao próprio ensino de Lacan para estudá-lo e renová-lo. Elegemos o Seminário Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, texto essencial no conjunto de sua obra. Inconsciente, repetição, pulsão e transferência são os conceitos freudianos abordados. Partindo deles, Lacan introduz suas próprias noções, tais como, objeto a, sujeito da ciência, alienação/separação, desejo do analista. Tais articulações inovam a psicanálise freudiana e não cessam de produzir questões. Propomos retornar ao texto de Lacan a fim também de retomar um estilo formativo necessário e profícuo. Trata-se da leitura compartilhada das questões que o texto enseja, incluindo cada um no trabalho de transferência singular com o seminário. Esse modo de estudo e ensino já se tornou tradição entre aqueles que compartilham da herança de Lacan. Cabe-nos agora retomá-lo a fim de engajar as novas gerações a trabalharem a clínica sem dispensar o texto. O trabalho com o seminário nos indica de onde partir, renovando os fundamentos da psicanálise. Essa renovação nos permitirá também atualizar as questões do seminário num cotejamento com a atualidade. Nos dias 16 e 30 de março, trabalhamos os capítulos 3 (Do sujeito da certeza), 4 (Da rede dos significantes) e 5 (Tiquê a autômaton). Durante o mês de abril, dedicaremos nosso debate às lições 6 a 9 que tratam do conceito de pulsão, a partir do objeto olhar. O primeiro encontro desse mês acontecerá no dia 13. Evento: Leitura do Seminário XI Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise, de Jacques Lacan. Data: 13 de abril, quinta-feira, às 20h 30min. Local: Sede da APPOA - Rua Faria Santos, 258 Petrópolis Porto Alegre. Informações: F. 33332140 ou appoa@appoa.com.br. Coordenação: Lúcia Mees, Maria Cristina Poli e Marta Pedó Atividade aberta a todos os interessados. CARTEL RELENDO FREUD ANÁLISE LEIGA No início de março, nos reunimos novamente para debater o texto de Freud que nos ocupará este ano no Relendo. O reencontro com este texto marca pela inspirada exposição geral da psicanálise que Freud ali realiza, bem como pela atualidade das questões que ele aborda e enfrenta. Aparece, então, a análise pessoal como a condição para a formação de um analista; o lugar do inconsciente como pilar da psicanálise; a concepção de aparelho psíquico, já na sua segunda formulação, nomeada com pronomes, como marca o próprio Freud; a inserção da psicanálise na cultura, em articulação com seus diversos campos (literatura, mitologia, antropologia, etc.) e, assim, bem além de um capítulo no campo das terapêuticas e o laço inseparável que une ciência e pesquisa no método psicanalítico, desde o seu surgimento. A partir da discussão que esses e outros aspectos do texto nos suscitaram, surgiu o interesse em relembrar (ou, para uns, lembrar) nossa própria história nessa perspectiva. Assim, na próxima reunião, pretendemos debater a questão da análise leiga, à luz da história do movimento psicanalítico em Porto Alegre. A informação da data da próxima reunião está disponível na secretaria da APPOA. A participação é aberta e bem-vinda. JORNADA DE CONVERGÊNCIA IDENTIFICAÇÃO E IDENTIDADE Entre os dias 04 e 06 de maio, ocorrerá em Recife a Jornada da Comissão de Enlace Regional (Nacional) de Convergência Movimento Lacaniano para a Psicanálise Freudiana. O encontro ocorre todos os anos, sendo a cada vez sediado por uma das instituições integrantes do movimento. Neste ano, a Interseções Psicanalíticas do Brasil organizará o evento, cujo tema é Identificação e Identidade. Como de costume, o trabalho é 6 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 7

NOTÍCIAS NOTÍCIAS antecedido por uma reunião interna, da qual participam representantes das instituições membros de Convergência e convocantes do encontro, cujo tema desse ano é O significante lacaniano. Neste encontro, a APPOA estará representada pelas colegas Ana Costa, que apresentará o trabalho Marcas corporais: em busca do traço unário, e Maria Cristina Poli, com o trabalho Lacan e a questão da identificação ao analista. Na reunião interna, propusemos para a discussão o tema O que comporta o nome lacaniano?. Todos os colegas associados estão convidados a participar. Para outras informações (hotéis, etc.) procure um dos membros da comissão de relações interinstitucionais. PSICANÁLISE E VIDA COTIDIANA: UM SARAU PARA CURIOSOS, XERETAS E DESAVISADOS A partir do mês de maio, estaremos retomando as atividades do Sarau da APPOA. No ano passado, realizamos três encontros, buscando sempre o debate de temas de atualidade e com uma pluralidade de pontos de vista. Os temas enfocados foram: amor.com/sexo.com (07/10/05), Sons que fazem a cabeça (04/11/05), e Felicidade é... (09/12/05). Neste ano, retomaremos a aposta de colocar na roda o diálogo sobre os impasses de nosso tempo. Os temas dos três primeiros encontros serão os seguintes: Maio: Princípio do Lazer ; Junho: Homem gosta de carne, mulher de radiografia ; Julho: Complexo de Cyborg. Em breve, estaremos divulgado as datas e os convidados que darão inicio aos debates. Coordenadores: Eduardo Mendes Ribeiro, Maria Cristina Poli, Mariane Mendes Ribeiro, Mário Corso e Simone Rickes. REUNIÃO DA CEG EM BUENOS AIRES Com um expressivo quorum de mais de 2/3 de delegados das instituições convocantes, realizou-se em Buenos Aires, nos dias 9, 10 e 11 de março a reunião da Comissão de Enlace Geral CEG do movimento Convergência. Na pauta, entre outros assuntos, a realização do próximo Congresso internacional a ser realizado em Paris, no próximo ano. A data foi um dos tópicos discutidos, uma vez que havia uma solicitação de que fosse alterada. Por não se tratar de uma discussão burocrática simplesmente, ela serviu para que a reunião pudesse tomar a organização do Congresso como uma atividade importante para a sustentação do próprio movimento. O tema proposto para o congresso Relato/Transmissão da experiência também propiciou que fosse discutida a situação da transmissão da psicanálise em diversos países, com suas características e vicissitudes. A nova data para o congresso deverá ficar entre os meses de abril e maio de 2007. Maiores detalhes a respeito da organização dos próximos Congressos e das atividades que serão realizadas ao longo do ano (como a Jornada de trabalho em Buenos Aires, em agosto deste ano) serão noticiados em breve; ou podem ser acessados no endereço da página web da Appoa e da própria Convergência. Fórum A posição do psicanalista No sábado, dia 11 de março, durante todo o dia, tivemos uma atividade denominada Forum, para discutir o tema Posição do psicanalista. Experiência nova, interessante. Pela manhã, quem quisesse tomar a palavra se inscrevia. Depois de um tempo, encerradas as inscrições, abria-se a palavra, por sorteio. Assim, todos os inscritos tiveram direito a palavra, mas não sabiam a ordem das intervenções. À tarde, realizaram-se as discussões, agora com inscrições livres, não mais por sorteio, mas por ordem de inscrição. A cada tanto, abriam-se novas inscrições e seguiam as discussões. O efeito surpresa foi um dos que mais me chamou atenção. Por não saber quando seria chamado a falar, tínhamos que acompanhar a discussão. 8 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 9

NOTÍCIAS SEÇÃO TEMÁTICA Cinco minutos de intervenção parecia tempo demais em algumas, ou de menos em outras, mas era suficiente para expor uma idéia breve. O debate aconteceu no período da tarde, mas as intervenções singulares (feitas em nome próprio) já sofriam o efeito das falas que a antecediam e influenciavam as que a precediam. As mudanças aconteciam mesmo no momento de uma intervenção, fosse ela para tentar esclarecer um detalhe do texto ( Posição do inconsciente, inserido nos Escritos, de Lacan) ou mesmo para fazer um comentário a partir do texto. Experiência para ser repetida. MUDANÇA DE ENDEREÇO Robson de Freitas Pereira Marieta Madeira Rodrigues informa o novo endereço de seu consultório e celular: Rua André Puente, 441/402 Fone: 32651877 Celular: 91884080 Simone Moschen Rickes informa o novo endereço do seu consultório: Rua André Puente, 441/402 Fone: 32651877 PENSANDO SOBRE ALGUNS LITORAIS DA PSICANÁLISE Ana Costa Aelaboração deste texto resultou do interesse em recortar alguns elementos que constam do trabalho com o Seminário XI de Lacan, mas que se estendem aos fundamentos de sua obra. Como esse seminário trata de conceitos fundamentais, é lógico que a questão dos pressupostos básicos seja colocada em causa. É também nesse ponto que sua leitura interage com outros trabalhos do próprio Lacan. Entre eles, o escrito A ciência e a verdade 1, que compõe a aula de abertura do seminário - desenvolvido dois anos depois do Seminário 11 - cujo título é O objeto da psicanálise. Como se vê, as questões abertas pelo autor no trabalho dos fundamentos o acompanharão nos anos seguintes. Situaremos, a seguir, algumas dessas questões. Muito já se têm dito que a peculiaridade do campo de saber recortado pela psicanálise faz com que cada analista precise refunda-la, a partir de sua própria prática. Essa inclinação resulta de que o saber em causa implica quem produz, como interioridade ao objeto produzido. Não por outra razão é exigida sua análise pessoal. Assim, mesmo que para outros campos essas questões que envolvem uma imprecisão em relação à inclusão do pesquisador no seu objeto de pesquisa, que rompe com a dicotomia interno/externo, estejam em causa, elas não são reconhecidas, tendo estatuto secundário em relação à própria construção do saber. Já para a psicanálise, elas não são desprezíveis e dizem respeito aos fundamentos mesmo daquilo que define seu campo. Assim, lidando com essa especificidade, a construção de seus fundamentos sempre toma como referência a relação a outros campos. Seu estatuto se constrói como borda na relação a outros saberes. O que significa que a psicanálise não trata exclusivamente da considerada realidade psíquica individual, senão que interage com o que cada campo do saber constrói para operar com o real. Para desdobrar um pouco esse tema, começaremos por situar as dificuldades que fazem parte das formas como o sujeito constrói suas des- 1 Lacan, J. A ciência e a verdade. In: Escritos. Jorge Zahar Ed., Rio de Janeiro, 1998. 10 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 11

SEÇÃO TEMÁTICA COSTA, A. Pensando sobre alguns... crições do real. Essas dificuldades encontram dois extremos igualmente problemáticos. Por um lado, a necessidade de um objetivismo, que permita que a experiência possa ser compartilhada dentro de uma relação universalista; de outro, um subjetivismo, respondendo a uma necessidade de inclusão do sujeito naquilo que descreve. Esse duplo movimento, que sempre acontece um por relação ao outro, é bastante antigo e já assumiu proposições variadas nas produções culturais. Nos extremos do objetivismo, encontramos as posições de exclusão do sujeito da produção de determinados registros. Esses registros assumiram na cultura ocidental pelo menos duas referências. Em primeiro lugar, a produção de uma memória como máquina, constante tanto de traumas sociais, quanto na constituição do anonimato da massa. Em segundo lugar, as construções da ciência e da tecnologia, que precisou excluir a representação do sujeito de suas variáveis, como condição de domínio de seu objeto. No extremo do subjetivismo, encontramos toda a inclinação individualista de nosso laço social. Nesse sentido, as descrições vão encontrar suporte na montagem de um espelho, que parece tornar-se condição necessária para abordagem do real. Como entra, então, a psicanálise nas diferentes descrições de seu objeto? Nesse campo encontramos uma diversidade de proposições, que varia até dentro da produção de um mesmo autor. No entanto, para além de construções teóricas diferentes, encontraremos mais bem posições diferentes na enunciação das questões. Essas diferenças vão dizer respeito ao que situamos antes: a construção de seus fundamentos vai ser situada por relação ao que se define como limite de outros campos. Será nesse limite que Freud e Lacan irão inscrever seu sujeito. Assim, tentaremos precisar como se constróem algumas bordas os limites que fazem parte dessa relação a outros campos. Indagaremos de que limites se tratam. A psicanálise é um campo que não tem uma circunscrição a si mesma. Ela precisa encontrar seus litorais que vão, ao mesmo tempo, recortála e criar seus elementos. Esses litorais estão no encontro de heterogêneos, naquilo que faz borda a outros campos. Ou seja, naquilo que escreve seus impossíveis. São esses impossíveis que, insistentemente, a psicanálise busca mostrar. Tal qual num percurso de análise, para que um impossível se evidencie é necessário trilhar pelos discursos que constróem as condições de alienação. Ou seja, as balizas da posição de mestria de cada tempo e lugar. Lacan, mais especificamente, utilizou essa forma de construção em seu trabalho. Ele buscava ir suficientemente longe, no questionamento do saber de outro campo, de forma que essa entrada pudesse reenviá-lo à enunciação do objeto de seu campo. Ou seja, pode-se reconhecer, nessa forma de proceder, o exercício de um de seus pressupostos: aquele que diz respeito ao retorno da própria mensagem, a partir da passagem pelo campo do Outro, de maneira a possibilitar uma condição de enunciação. Nessa espécie de embate com o campo do Outro, ele foi escrevendo os litorais e, ao mesmo tempo, estabelecendo o discurso analítico. O Seminário 11 é um marco importante nesse estabelecimento. Numa condição em que a garantia de seu discurso deixou de passar pela instituição analítica à qual pertencera, Lacan precisou retomar os princípios da psicanálise apoiado num operador crucial, que ele denominou desejo do analista. É esse elemento que nos faz afirmar que o conceito em psicanálise depende, como colocamos, da construção de suas bordas. Já na primeira aula do seminário, Lacan situa a psicanálise entre religião e ciência. Esse sítio vai ser constantemente retomado, por referência à construção dos litorais resultantes de campos com os quais a psicanálise mantém algum tipo de ligação. Essa ligação pode ser, por exemplo, da ordem da subversão, tal qual Lacan refere o sujeito do inconsciente por relação ao sujeito da filosofia. Ou mesmo uma exclusão interna, expressão usada pelo autor na apresentação de seu objeto por relação ao discurso da ciência. Assim, situaremos três litorais com os quais Lacan estabeleceu fundamentos de seu discurso: a filosofia, a ciência e a arte/ literatura. Cada um desses campos, a partir de seus impossíveis, coloca para a psicanálise uma questão particular. A filosofia coloca para a psicanálise a questão da relação entre verdade e enunciação. Lacan serviu-se desses elementos para precisar a especificidade do sujeito do inconsciente. Pode-se perceber o quanto ele 12 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 13

SEÇÃO TEMÁTICA buscava os limites do campo da filosofia para produzir a singularidade da referência ao inconsciente. É também desse campo que o autor mantém essa ponte entre sujeito e ciência, a partir da referência cartesiana. Por essa via, ele re-introduz o sujeito na consideração científica. Somente nessa referência rápida testemunhamos como a passagem pelos desdobramentos do discurso da filosofia lhe é fundamental. No caso da ciência, a borda se produz no ponto em que esta pode colocar para a psicanálise a questão de qual é seu objeto. É na particularidade do encontro do impossível do lado da ciência que Lacan vai buscar a circunscrição do objeto da psicanálise. No texto A ciência e a verdade, já mencionado antes, é possível acompanhar o desenvolvimento das principais construções do autor, na forçagem para a abordagem de um objeto impossível de definir. As dificuldades na circunscrição desses litorais levam Lacan a enunciados que põem em ato algo do impensável, próprio a seu objeto, como é o caso da afirmação: o sujeito está em uma exclusão interna a seu objeto. O encontro da enunciação dá-se muito mais por uma abertura ao significante, do que pelo estabelecimento de um conceito. Também podemos situar arte e literatura, que vão colocar para a psicanálise as condições do encontro de uma experiência singular e o impossível de transmiti-la. Por último, destacamos um elemento que também vai ocupá-lo na formulação desses litorais e que ele enuncia no seminário como função da causa. Nessas passagens Lacan vai cercar as construções freudianas, tanto quanto a referência à causa nos outros discursos. Dois anos mais tarde ele propõe que a psicanálise aborda a verdade como causa material. Para tanto, a relação a seu objeto é integrada na função da verdade como causa. Aqui, procede-se a uma reversão radical da relação temporal ao objeto, na medida em que Lacan o propõe como causa do desejo. A reversão temporal diz respeito a que o objeto causa não se situa num horizonte de chegada, fazendo parte da falta estrutural da referência à linguagem, sendo da ordem de um registro pré-subjetivo. Este pequeno percurso, realizado acima, somente apresenta elementos que merecem amplo desdobramento. Eles são companhia constante das inquietações de Lacan no estabelecimento de sua clínica. 1 1 = O (E ALGUM RESTO DE IMAGEM) Edson Luiz Andre de Sousa Por que lá do fundo o horizonte virá rolando devagar, e descerá a noite assim como descerão os tempos, e se depositarão outra vez, implacáveis, na manhã das praias, os invisíveis grãos de areia levantados com os sopros de outras noites. E enfim, A epiderme do homem, despirá a própria vida, Cedendo aos poucos a caverna secreta dos seus ossos. E quando estes oscilarem, no primeiro esbarro quente, do redemoinho dos quadrantes, já os olhos terão resvalado das órbitas, vedando na queda simples o apelo cinza do teu mar Mario Peixoto 1 O ritmo das marés cria espaços de trânsito nos litorais. Como lembrou Lacan, são nestes espaços (litorais) que temos que buscar a imagem que indica o encontro dos heterogêneos: litoral, literatura, lituraterra. O poema, portanto, como um resto de um olhar, de uma experiência que no refluxo do contato com este horizonte deixa um texto que nos desequilibra. Ato de criação que vem a produzir uma espécie de subtração em nossas superfícies psíquicas sempre tão ávidas de equilíbrio. Portanto, um resto de imagem, que pode vir a desmontar este equilíbrio tênue, desesperado, automático que 1 PEIXOTO, Mário. Poemas de Permeio com o mar. Rio de Janeiro: Aeroplano Editora, 2002, p.67 14 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 15

SEÇÃO TEMÁTICA SOUSA, E. L. A. 1-1 = 0 (e algum... nos faz, por vezes, cinzas. Como nos diz Mário Peixoto neste seu O poema do mar cinzento, Há os que preferem não ver. A vista das coisas é profunda demais para tão pequeno contato. Experiência do limite, aliás nome de sua obra prima que marcou definitivamente o cinema brasileiro. Limite que revela justamente o corte da linha que faz verter um heterogêneo no outro. Passagem portanto: o mar na areia, o dia para a noite ( o horizonte virá rolando devagar e descerá a noite ), a vida para a morte ( a epiderme do homem, despirá a própria vida, cedendo aos poucos a caverna secreta dos seus ossos ), do eu para o outro e do outro para o eu órbita que a psicanálise procura capturar em parte com seu método que, como o litoral, cria um espaço para a experiência da passagem. Passagem como experiência, como travessia de um perigo. Por sorte neste contato um desequilíbrio, um tropeço que nos abre novas imagens, não sem um certo sofrimento ( já os olhos terão resvalado das órbitas, vedando na queda simples o apelo cinza do teu mar ). O Seminário XI Os quatros conceitos fundamentais de psicanálise, de Jacques Lacan, desenha uma breve anatomia da função da imagem em um corpo que podemos nomear como estrábico. Freud ao inventar o conceito de inconsciente desenha um novo aparelho ótico que nos abre novos olhares sobre o sofrimento humano. Portanto, um inconsciente ótico, termo proposto por Walter Benjamin e mais recentemente redimensionado pela historiadora e crítica de arte norte-americana Rosalind Krauss em seu magistral livro com este mesmo título. Ótica, portanto, que nos permite ver a invisibilidade guardada nos pequenos pontos (os invisíveis grãos de areia). Freud, ao introduzir a discussão sobre o sexual, nos coloca estes grãos de areia nos olhos. O sexual vem, portanto, introduzir uma espécie de estrabismo no corpo. 1-1= zero funciona como um foco, dois iguais em situação de oposição que se anulam pelo contato, operação onde não há resto, portanto nitidez aparente que indica nossa cegueira. Quando não há resto, não há mais questão, o circuito do pensamento, o circuito libidinal retorna sobre suas próprias vias constituindo algo que Lacan em seu texto Agressividade em psicanálise chama de «ereções emocionais. Quando não há resto, só o silêncio para sinalizar nosso desamparo. Captura especular no semelhante, movimento que nos seduz a todo momento. Obrar do narcisismo que Lacan situa como o motor da paixão. 2 Na clínica psicanalítica vemos esta paixão que resiste na reivindicação orgulhosa do sofrimento 3 e que coloca para o analista o desafio de abrir um litoral neste corpo que se deita no divã embalado pela máxima de La Rochefoucauld Eu não posso aceitar a idéia de ser liberado por um outro que não eu mesmo 4. Precisamos portanto da palavra que faça barreira a esta tendência ao cinza que reúne todos os heterogêneos no mesmo tom. Palavra/desequilíbrio, palavra/rasgadura das superfícies homogêneas. Palavra que possa tocar o sexual. O sexual vem traumatizar a própria teoria e assim problematizar o equilíbrio das classificações sejam elas as particulares, sejam os grandes sistemas que compartilhamos na esperança de instituir contatos. Nosso engano! O mimetismo em sua plasticidade desrealizante nos mostra a extensão das estratégias defensivas que nos instituem. Sexual que reatualiza os heterogêneos fagocitados pelas técnicas e tecnologias do conhecimento. Neste ponto vale lembrar Roger Caillois e seu surpreendente e inspirador O mimetismo e a psicastenia legendária e que Lacan evoca no Seminário XI nas aulas que aprofunda a reflexão sobre o olhar. Diz Caillois: O conhecimento, sabe-se, tende a supressão de todas as distinções, a redução de todas as oposições, de maneira que seu objetivo parece ser o de propor à sensibilidade a solução ideal do seu conflito com o mundo exterior e de, assim, nela satisfazer a tendência ao abandono da consciência e da vida 5. Freud é tão sensível a este ponto que justamente termina seu clássico Três ensaios com um resto que funciona como um rasgo na superfície de toda sua apresentação: rasgo esperança, rasgo provocação, rasgo desafio não podemos formar, com nossas observações isoladas, uma teoria capaz de explicar suficientemente as características normais e patológicas da sexualidade 6. Livro, portanto, que não conclui, e que revela as cicatrizes 2 Ver LACAN, Jacques. Agressividade em Psicanálise, Escritos. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editor, 1998. 3 LACAN, J. op.cit. p. 110 4 LACAN, J. op. cit. p. 110 5 CAILLOIS, Roger. Le mythe et l homme. Paris: Gallimard,, 1938, p.119 6 FREUD, Sigmund. Três ensaios para uma teoria sexual. Obras Completas, Madrid Biblioteca Nueva, 1981, p.1237 16 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 17

SEÇÃO TEMÁTICA SOUSA, E. L. A. 1-1 = 0 (e algum... inevitáveis que o sexual produz. Restos que são como germes do heterogêneo. Neste ponto, algumas perguntas se impõem: O quê faz contato no desejo? O quê faz contato no sexo? O quê faz contato no amor? Onde o contato não se anula um litoral se preserva. Ali aparece o estrabismo do corpo. O corpo estrábico indica um desencontro. Desencontro já muito bem desenhado por Lacan no Seminário XI quando lembra o poema Contracanto de Aragon: É em vão que tua imagem chega ao meu encontro e não me entra onde estou... 7. Freud inclui no amor os sentimentos ternos das primeiras emoções sexuais, mas cujo fim é, dali em diante, inibido ou substituído por um fim não sexual. Nos Três ensaios distingue amor normal (liebe) da paixão amorosa, enamoramento (verliebtheit). Já Lacan vai propor pensar o amor como amar é dar o que não se tem a quem não o quer. Insiste, no seminário da Angústia, que o Outro não quer um amor que venha a obstruir a falta. Diz ele: podemos ver em estado puro nesta situação em que o amor pode colocar a vida em pane. 8 Diante deste amor excessivo e intrusivo o sexual vem lembrar a condição da falta e desequilibrar novamente o sujeito. Fora de foco que instaura o estrabismo do corpo. Não conseguimos focar num mesmo ponto aquilo que me falta e o que falta ao outro. No seminário da Identificação (21/2/62), Lacan indica que o que o amante procura é menos no outro o desejável, que o desejante, ou seja, o que lhe falta 9. Este sujeito a quem dirijo meu amor tem que suportar algo que não tem. Justamente na condição de suportar esse lugar que um contato pode se estabelecer. O impasse é que nenhum pintor consegue olhar ao mesmo tempo para o modelo e para a tela. Podemos lembrar aqui a célebre pintura de Velásquez As meninas. Aí se produz um estrabismo entre a representação e o objeto. Na passagem de um para outro produzimos sombra e esqueci- 7 LACAN, Jacques. Seminário XI. Rio de Janeiro Zahar Editores, 1979, p.79 8 LACAN, Jacques. L Angoisse, Seminaire 1962-1963. Paris: Publication de l Association Freudienne. 9 LACAN, Jacques. L Identification, Seminarie 1961-1962. Paris : Publication de l Association Freudienne, Aula do 21/2/62. mento. Algo escapa na tentativa desesperada de colocar estes dois pontos no mesmo lugar. O que queremos (e não conseguimos) é apagar o estrabismo estrutural de que um olho vai para um lado e o outro vai para o outro. Vivemos hoje uma cruzada chamada técnica e ciência que sonha com discursos onde nada falte. As imagens cada vez mais transparentes, mais nítidas, mais consumíveis, mais saborosas. Neste campo um certo estrabismo é quase uma virtude. Assim podemos fazer algo mais interessante com nosso mal estar: A forma pura do mal entendido é então que o amante não sabe o que lhe falta, que o amado não sabe o que tem, mas de qualquer forma, os objetos não coincidem. 10 Freud apontou o estrabismo estrutural com a divisão do sujeito, o aparecimento do inconsciente. Desejo uma coisa mas meus atos revelam outra, às vezes, o contrário do que eu desejo. Quantas vezes temos notícias do desejo do sujeito pelo que ele recusa. Lacan, no Seminário XI, fala desta insatisfação no amor que consiste em que jamais tu me olhas aonde te vejo: disjunção de lugares. Mas qual seria mesmo este mal entendido? A forma pura do mal entendido é que o amante não sabe o que me falta e o amado não sabe o que tem. De qualquer forma os objetos não coincidem completamente. Vivemos muito mais na esperança deste encontro. O corpo estrábico busca, portanto, articular estes dois pontos, a dimensão do dia e da noite, da ordenação e da vertigem, do mar e da areia, da vida e da morte. Lacan é enfático quando diz que o amor é um engodo já que amar é essencialmente querer ser amado: vapores do narcisismo. Busca da imagem que garanta um lugar. Através do texto sobre Estádio do espelho Lacan indica como a imagem do Eu se forma. O Eu se constitui na identificação com a imagem do outro. Essa identificação só se instaura a partir de uma perturbação, de uma falta. Para que a identificação se consolide é preciso uma perturbação na relação dual a um outro, um terceiro que venha perturbar essa absorção especular, na relação inicial com a imagem do ou- 10 LACAN, Jacques. Le Transfert, Seminaire 1960-1961. Paris : Publication de l Association Freudienne, Aula do 30/11/1960. 18 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 19

SEÇÃO TEMÁTICA tro. Este terceiro, como vai dizer Lacan, pertence ao Simbólico. Outro que se desenha no detalhe, na manifestação por vezes mínima, colocando uma espécie de poeira neste olhar em que dois estão presos. Este Outro funciona como uma mosca que faz bzzzzzzzzz, por exemplo, uma mancha, um grão de areia, uma suspensão, uma careta, o social, a voz do pai, detalhes que vêm perturbar meu deleite imaginário com o outro. 11 O sujeito se identifica a esta pequena insígnia que nada mais é a marca do que lhe falta. Ora, este é o traço, o traçozinho que resguarda o meu estrabismo. O estrabismo é portanto uma das figuras da castração. Há uma passagem em Lacan muito esclarecedora nesse impasse do amor e do desejo. Trata-se de algo que Lacan vai propor a partir de um texto de Abraham de 1924 e que se chama Esboço de uma história da libido, baseada na psicanálise dos problemas mentais. Neste texto, Abraham desenvolve uma teoria do que seria o amor parcial ao objeto. Ele traz neste artigo o sonho de uma paciente histérica que viu o corpo de seu pai nu e desprovido de pelos pubianos. Através de certo número de exemplos equivalentes Abraham chega a conclusão que em qualquer pessoa as partes genitais permanecem irredutivelmente investidas no campo narcísico do corpo próprio. No interior, portanto, do recinto narcísico, o que a imagem do semelhante mostra é um branco nesse local do sexo, ali no sonho o pai está desprovido de pêlos pubianos. O branco na imagem amada é o ponto pivô do desejo, o ponto cego, diante do qual o eu organiza seu desejo. Então amar é dar o que não se tem e só se pode amar fazendo de conta que não se tem porque é preciso preservar a condição da falta no outro. O amor como resposta implica no domínio do não ter. 12 Aí o ponto essencial do trabalho psicanalítico que busca um resto de imagem a partir do qual o sujeito possa vir a construir um percurso. É a este ser de nada que se dirige nossa tarefa cotidiana de abrir novamente a via de seu sentido em uma fraternidade discreta; na medida em que somos demasiado desiguais. 13 11 Ver LACAN, Jacques. L Identification, Seminarie 1961-1962. Paris: Publication de l Association Freudienne. 12 Ver LACAN, Jacques. L Identification, Seminarie 1961-1962. Paris: Publication de l Association Freudienne. 13 LACAN, Jacques. Agressividade em Psicanálise. Escritos. Rio de Janeiro, Jorge Zahar Editor, 1998, p. 126. VISITANDO O SEMINÁRIO XI * Eduardo Mendes Ribeiro Há algo de inquietante e fascinante na forma como Lacan estabelece sua relação com os diferentes campos de saber: por um lado, as referências são constantes e sua importância reconhecida. Seria difícil entender os fundamentos da psicanálise lacaniana, sem considerar a influência e os tensionamentos originados da relação com as filosofias de Descartes e Hegel, por exemplo. Além, evidentemente, de sua assumida filiação à psicanálise freudiana. Entretanto, por outro lado, não há, em Lacan, qualquer intenção ou compromisso de fidelidade com estes saberes. Não é na positividade dos saberes que Lacan está interessado, seu interesse se dirige sempre ao campo do inconsciente, pois para ele todo pensamento começa no inconsciente, e nele encontra seu limite. O foco da teoria e da prática lacaniana é o desejo (inconsciente), que subjaz, orienta e limita qualquer pensamento. Ele mesmo explicita sua posição ao afirmar, no Seminário IX, que não se trata em absoluto de pretender superar a Descartes, mas, sim, de extrair o máximo de efeitos dos impasses a que conduz seu pensamento. O mesmo poderia ser dito sobre sua relação com outros saberes. Um dos pontos de impasse da teoria cartesiana, em relação ao qual Lacan vai apontar seus efeitos, situa-se no que pode ser considerado a primeira teoria psicológica da modernidade, que contribuiu para fundamentar a cisão entre os campos religioso e científico ou, em outros termos, entre o que é da ordem da verdade e o que é da ordem da certeza. Segundo a concepção cartesiana, Deus teria criado os homens dotados de apenas duas faculdades: o entendimento (ou intelecto) e a vontade (ou liberdade), sendo que a primeira delas seria limitada e a segunda, ilimitada. Os erros humanos seriam explicados pelo fato de que, no exercício de nossa vontade/liberdade, sempre pretendemos saber mais do que nos é possível, e toda vez que isso * Este texto está relacionado, mais especificamente, aos capítulos III e IV da edição brasileira do Seminário XI, intitulados, respectivamente, Do sujeito da certeza e Da rede dos significantes. 20 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 21

SEÇÃO TEMÁTICA RIBEIRO, E. M. Visitando o Seminário XI acontece, erramos; ou seja, a ciência, sendo um produto da natureza humana, não pode deixar de ser marcada pela incompletude e pelo não-acesso à verdade, que permanece no âmbito da divindade. Posteriormente, os iluministas que sucederam Descartes, desconsideraram sua fundamentação metafísica da possibilidade do conhecimento (afinal, Descartes esforçou-se para provar, não só a existência de Deus, como também que ele não era um enganador), mas mantiveram o entendimento cartesiano acerca da autonomia da razão. O sujeito deixou de ser pensado como uma criação de Deus, mas permanecia dotado de uma vontade/liberdade (ou desejo) ilimitada. O problema é que, no contexto racionalista em que surge a ciência moderna, o desejo é sempre pensado como sendo consciente e objetivo. Desejar é desejar conhecer, e este conhecimento deve ser impessoal e universal. Não há lugar para um questionamento acerca do sujeito da ciência, do contexto em que ele se constitui, de suas motivações e ideais. Mas, como sabemos, o recalcamento e o retorno do recalcado compõem uma mesma operação psíquica. No Seminário XI, Lacan volta a esta questão, afirmando que, ao contrário do que afirma esta tradição de pensamento, o desejo sempre encontra em alguma parte seu limite. Contrariando também um certo senso-comum de nosso tempo, afirma que nós não temos a possibilidade de desejar qualquer coisa, na medida em que a posição desejante de todo o sujeito se define a partir da historicidade da constituição de sua rede de significantes. O pressuposto iluminista de que somos dotados de uma consciência autônoma permanece hegemônico em nossa sociedade, tanto quanto a crença individualista de que cada um de nós é dotado de uma essência inata, que seria o nosso verdadeiro eu. Esta verdade de cada sujeito estaria encoberta pelos fatos de sua história, como se a relação com o Outro maculasse nossa singularidade. 1 É possível afirmar, com Lacan, que a psicanálise surge como efeito do recalcamento do questionamento acerca da constituição da subjetividade. De fato, O campo freudiano não seria possível senão certo tempo depois da 1 Descartes também considerava que seria desejável que pudéssemos apagar todos os registros de influências exercidas pela cultura, família, escola, etc, em nossa formação, e nos fizéssemos orientar exclusivamente pela uso de nossa razão. emergência do sujeito cartesiano (Lacan, 1988, p. 49). Os desdobramentos de nossa modernidade conduziram a determinados impasses que possibilitaram que se chamasse o sujeito de volta para casa, o inconsciente. (Lacan, 1988, p. 49) Esta constatação nos remete à própria concepção lacaniana de inconsciente, entendido como pré-ontológico, ou seja, nem ser, nem nãoser, mas algo de não-realizado (Lacan, 1988, p. 34). A questão é que este não-realizado busca meios para se realizar, mesmo que nunca seja totalmente bem-sucedido nesta empreitada. A dimensão da falta na psicanálise está relacionada a este caráter deslizante e escorregadio do objeto do desejo: não se trata de algo substantivo, mas, sim, de uma condição intrínseca à natureza simbólica de nossa subjetividade. Constitui função e campo da psicanálise contribuir para o levantamento do recalque do que nos determina, reiterando este chamamento para que o sujeito retorne a sua casa, reconhecendo-se como produto de um desejo inconsciente. É neste sentido que dizemos que o inconsciente é ético, e não ôntico. É a verdade do sujeito, a verdade de seu desejo que pretendemos abordar. Não se trata de uma tarefa fácil em tempos de Viagra, Prozac, etc., pois é certamente mais sintônico com os ideais modernos acreditar, como Descartes, que nossa vontade/desejo seja ilimitada, e que se algo está falhando, alguma técnica, alicerçada em algum saber objetivo, deve poder dar conta disso. Nós, modernos, convivemos mal com a incerteza, com a possibilidade (ou a evidência) de um fracasso. E, mesmo quando somos forçados a confrontar-nos com a não-realização de nossos desejos, resta sempre a alternativa de atribuir nossa frustração a alguma causa objetiva, seja a alguém (para isto pode servir pai, mãe, namorado, professor, patrão, ou mesmo categorias genéricas como os políticos ou o mundo atual ), seja a algum tipo de mau funcionamento de nosso corpo (o que inclui supostos desequilíbrios bioquímicos). O cogito cartesiano é utilizado por Lacan para mostrar que a verdade não pode ser alcançada de forma imediata, através do exercício da consciência, mas, diferentemente de Descartes, que situava a verdade nos desígnios divinos, Lacan vai encontrá-la na dúvida. Seguindo os passos da filosofia cartesiana, a ciência moderna só pode se desenvolver a partir da 22 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 23

SEÇÃO TEMÁTICA RIBEIRO, E. M. Visitando o Seminário XI crença de que o Outro (Deus) não é um enganador, e que, portanto, a verdade existe. Assim, tornou-se possível a produção de uma sucessão de certezas (conhecimentos), na expectativa de que se estaria aproximando gradativamente da verdade. Este processo, entretanto, abriga em seu fundamento a negação do que constitui nossa humanidade, a subjetividade. Por outro lado, retomando o percurso lógico que desemboca no penso, logo sou, Lacan vai reconhecer a legitimidade da interrogação primeira acerca do ser: quem sou eu?. Mas, seja qual for a resposta que se produza para esta questão, é necessário que alguém a confirme, que alguém transforme esta certeza em verdade. O que está em jogo é a verdade do sujeito, a verdade de seu desejo, e o temor que se estabelece neste campo não é de que o Outro possa nos enganar como no encaminhamento cartesiano, mas, ao contrário, de que ele possa ser enganado; ou seja, os analisantes temem que nos enganemos e percamos a condição de assegurar sua verdade. Não uma verdade substantiva, que responda afirmativamente sobre sua identidade, mas a verdade sobre o que o move, sobre o que o marca para a vida. Neste processo, é a dúvida e a incerteza que se presentificam em nosso encontro com o Outro. Os saberes que constituem nossas certezas são intersubjetivos, o que não quer dizer que sejam saberes compartilhados por todos, nem que todo saber seja do Outro, principalmente porque o Outro não é um sujeito. O Outro é um lugar, ou uma instância, para onde transferimos uma suposição de saber. É interessante notar que Lacan, na década de 30, esboçou um projeto, em parceria com Kojève, de relacionar as concepções de sujeito presentes nos pensamentos de Descartes e de Hegel, analisando a forma como o eu penso de Descartes se transformava em eu desejo, em Hegel. Este livro nunca foi escrito em sua totalidade, mas, sendo contemporâneo da primeira versão do Estágio do Espelho, nos indica o caminho pelo qual seguia o pensamento lacaniano. Nas poucas quinze páginas escritas por Kojève (Lacan nunca escreveu a sua parte), eram apresentados alguns conceitos que viriam a ser de grande importância na teoria lacaniana: a distinção entre je, enquanto sujeito do inconsciente e moi, enquanto ego; e desejo, como a dimensão da verdade do sujeito. (ver Roudinesco, 1994, p. 119). Segundo Lacan, esta dimensão da verdade (desejo) pode ser encontrada, em Descartes, mesmo que ele próprio não a reconheça. Ele se refere à necessidade de estabelecer uma distinção entre sujeito do enunciado e sujeito da enunciação, para que se possa compreender o cogito, afinal o sujeito da dúvida (sujeito do inconsciente) não é o mesmo sujeito do enunciado (sujeito gramatical). Em Hegel 2, de outra forma, o sentimento de si (imaginário) só se transforma em realidade objetiva através do reconhecimento do Outro. Em ambos os casos, o que Lacan vai enfatizar é o fato de que uma certa dúvida constitui o núcleo da estrutura do inconsciente, algo que ele chama de hiância causal. Em Descartes, sujeito, ciência e verdade são apresentados como elementos integrantes da estrutura própria da realidade humana, sendo que o sujeito efetua a mediação entre ciência e verdade. Ao chamar o sujeito de volta para casa, a psicanálise traz para dentro esta divisão que Descartes propõe como estando fora do sujeito. É o próprio sujeito que se encontra dividido. No campo inaugurado por Freud, o que pode garantir uma certeza é o reconhecimento daquilo que determina o desejo. E foi investigando seu próprio desejo que Freud pôde avançar em suas certezas, que vieram a constituir as bases práticas e teóricas da psicanálise. A este respeito, Lacan volta a questionar se a psicanálise é, ou não, uma ciência, e faz uma observação interessante: O que distingue a ciência moderna da ciência em sua aurora, é que, quando a ciência se levanta, sempre está presente um mestre. Sem dúvida alguma, Freud é um mestre. (Lacan, 1988, p. 49). Entretanto, é preciso lembrar que a função do mestre para a psicanálise não é formular doutrinas e preceitos, mas operar como um significante a partir do qual outros sujeitos podem produzir suas próprias certezas. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: DESCARTES, René. Discurso do Método; Meditações; Objeções e Respostas; As Paixões da Alma; Cartas / René Descartes. Coleção Os Pensadores. São Paulo: Abril Cultural, 1983. 2 Ver na Fenomenologia do Espírito (Hegel, a dialética do reconhecimento e a dialética do senhor e do escravo. 24 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 25

SEÇÃO TEMÁTICA HEGEL, Georg W. F.. La Fenomenologia del Espíriu. México: Fondo de Cultura Econômica, 1966. LACAN, Jacques. O Seminário. Livro 11 Os quatro conceitos fundamentais da psicanálise. Rio de Janeiro: Jorge Zahar Editora, 1988. ROUDINESCO, Elizabeth. Jacques Lacan: esboço de uma vida, história de um sistema de pensamento. São Paulo: Companhia das Letras, 1994. O OLHAR DA MELANCOLIA NA HISTÓRIA DA ARTE Jaime Betts Que necessidade temos da arte? Por que recorremos a ela desde o tempo imemorial do homem das cavernas? A expressão artística antecede em muito a invenção da escrita, que marca o início da história da humanidade enquanto tal. Mas, quando vemos as inscrições pictóricas nas rochas, somos remetidos imediatamente à sensação de que algo da ordem do humano deixou ali seu registro que nos olha do alto dos milênios que nos separam, desafiando-nos a dar uma significação, hoje, ao que nosso artista primevo quis transmitir a um outro. Nesse sentido, assim como o inconsciente freudiano, a arte se faz atemporal, ao mesmo tempo capturando e deixando escapar algo que percorre a história e se singulariza no sujeito. É algo que se repete, que retorna sempre ao mesmo lugar, mas de forma renovada segundo os estilos de cada época e que se atualiza segundo o gozo de cada um. Faz-se presente no olhar enigmático que as obras de arte lançam sobre o espectador. Ver não é olhar. Vemos aquilo no qual nos reconhecemos, vemos o que de alguma forma nos é familiar e fala conosco, vemos o que confirma a identidade de quem somos, causando uma sensação estética que reflete algum ângulo do eu. Nesse sentido, o sujeito se vê após ter sido dado-aver 1. Quando se trata de arte, e não de peça publicitária que busca dar forma estética a uma mensagem unívoca dirigida ao eu do consumidor em favor do consumo daquele produto: por exemplo, Gang, a loja que te entende, direcionada a adolescentes, somos remetidos pelo olhar que retorna da obra a um Che Vuoi?, a um que queres?, que interroga. Nesse sentido, o olhar, enquanto objeto a, pode vir a simbolizar a falta central expressa no fenômeno da castração. 2 Ou seja, quando vemos a obra, somos olhados de 1 LACAN, Jacques. O Seminário, Livro 11. Os Quatro Conceitos Fundamentais da Psicanálise. Rio de Janeiro: 1979, p. 75. 2 Op. Cit., p.77. 26 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 27

SEÇÃO TEMÁTICA BETTS, J. O olhar da melancolia... volta pelo próprio desejo. Quando o ver retorna como olhar, o objeto de arte se eleva então à dignidade da Coisa. Entretanto, quando nos vemos diante do Che vuoi? sem resposta possível, somos confrontados com a emergência nua e crua, traumática, do real. Segundo Lacan, o lugar do real vai do trauma à fantasia, sendo que a fantasia nunca é mais do que a tela que dissimula algo de absolutamente primeiro, de determinante na função da repetição 3, que só se define pelo real que retorna sempre ao mesmo lugar. 4 Nesse sentido, a arte tem função de tela, que faz o velamento do olhar enquanto a falta constitutiva da angústia de a castração. 5 Em outras palavras, através da arte, o Outro lança sobre seu olhar como a esfinge sobre os olhos de quem vê: decifra-me ou te devoro! Não sem antes provocar um efeito de fascinação especular e inscrever pistas significantes para nos defendermos do trauma devorante do real que ameaça se impor sem anteparo nem imaginário ou simbólico. Gostaria de destacar aqui um olhar em particular que acompanha a humanidade ao longo da história e se lança sobre nós hoje de forma marcante. Muito embora seu registro não regrida à pré-história, data de muito longe. O que é deste olhar que parece sempre retornar ao mesmo lugar? Para que este recorte na história da arte possa ter sido realizado hoje, é porque esse olhar organiza um sintoma social contemporâneo. Tanto é assim que mereceu ser destacado numa exposição. Mas para que um recorte histórico do mesmo seja possível, é porque diz respeito a uma posição estrutural da condição humana que retorna sempre ao mesmo lugar. Aconteceu em Paris, de 13 de outubro a 16 de janeiro de 2006, nas Galeries Nationales du Grand Palais, a mostra intitulada Melancolia: gênio e loucura no ocidente 6. Sob a direção de Jean Clair, diretor do Musée Picasso, a exposição reuniu o que de melhor e mais significativo foi produzido sobre o tema no Ocidente, desde a Antigüidade grega até nossos dias. 3 Op. Cit., p.61. 4 Op. Cit., p. 52. 5 Op. Cit., p.74. 6 CLAIR, Jean. Mélancolie genie et folie en Occident. Paris: Reunión des musées nationaux/gallimard, 2005. Entrando no Grand Palais, somos mergulhados num mundo mágico onde a iconografia da melancolia nos faz viajar no tempo. Trata-se de uma nova aproximação da história da melancolia através da arte, na qual o observador entra em contato com a evolução das diferentes formas e nuances de apresentação desse mal sagrado, segundo os juízos de valor e formas de compreensão que a condição foi recebendo nas diferentes épocas, deixando suas marcas profundas da cultura ocidental. Constatamos, percorrendo as galerias, que a melancolia está presente na civilização desde sempre. Parece fazer parte da condição humana nesse sentido, a viagem não é apenas no tempo, mas também pelas camadas mais profundas de nosso ser. A história da humanidade se entrecruza, através da arte, com nossas histórias individuais, atualizando-se. Bile negra, mal de saturno, psicose maníaco-depressiva, doença bipolar são nomes que a melancolia tem recebido. Sua presença é uma constante na história. As características principais - ser uma forma de loucura marcada pela tristeza profunda, desânimo, humor sombrio, estado depressivo, falta de libido e alegria na tristeza (expressos de forma marcante pelo olhar), podendo beirar o delírio e o risco de suicídio e, ao mesmo tempo, podendo dar lugar ao gênio permanecem basicamente as mesmas. Mudam, apenas, a forma de ser apresentada, o modo de ser concebida e o tipo de tratamento proposto. Enfim, muda sua representação na cultura, mas o sofrimento parece retornar ao mesmo lugar... Na tradição da Antigüidade, a melancolia é encarada como causa de sofrimento e loucura. Nas esculturas gregas, a expressão da tristeza profunda surge como contraponto às imagens da beleza serena da razão. Com Aristóteles, passa a ser considerado o temperamento do gênio e do herói: gênio porque conjuga a rebeldia do pensamento em relação aos padrões estabelecidos com capacidade de criação, e herói porque corre na direção de um desejo radical de autodestruição. Na Idade Média, é vista como o banho do diabo, sendo representada como o estado de alma atribulado dos santos que resistem aos tormentos causados pelas diversas figuras do demônio, principalmente o da mulher nua como tentação maior do mal. Após tanta renúncia às satisfações 28 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 29

SEÇÃO TEMÁTICA BETTS, J. O olhar da melancolia... pulsionais, não é de se surpreender que os santos se deprimam, sendo esse estado de torpor psíquico considerado, por sua vez, pecado. Com a Renascença, a melancolia é marcada pela ambivalência: de um lado é associada à transformação do ser humano em animal, sobretudo em lobo, por efeito de um excesso de bile negra que causaria lesões cutâneas e comportamento noturno e solitário, agressivo, devorador, sendo assimilada nessa forma a uma possessão demoníaca; por outro lado, em especial com Dürer, ela articula seus aspectos inquietantes com a melancolia como paradigma da criação, sendo associada a instrumentos científicos que começam a surgir, como o relógio e o astrolábio. A melancolia torna-se moda na Europa do século XVI e é condição reivindicada por pintores, músicos, arquitetos e sábios de toda ordem. Entretanto, o início do século XVII marca um retorno à concepção médica de uma anatomia da melancolia, estabelecida inicialmente na Antigüidade por Hipócrates, e declarar-se como tal passou a ser atestado de loucura. Nesse sentido, seu objeto passou a se centrar em torno da morte. Com isso, a caveira e o esqueleto ganharam proeminência nas representações. O século XVIII é considerado o berço do Século das Luzes por ter começado a colocar a razão no lugar de Deus, como farol da sabedoria e fonte da verdade do conhecimento. As luzes da razão fundaram uma nova ordem social e criaram as suas sombras. A melancolia passou a ser concebida como uma nosologia psiquiátrica, a ser excluída do convívio social, a ser oculta e tratada nos hospícios. Aos melancólicos sentimentais a chamada doce melancolia, como nos tangos restou o recurso de retirar-se do mundo (talvez se refugiando nas artes) do qual se sentiam cada vez mais estrangeiros. O romantismo do século XIX confronta o homem com a morte de Deus. Diante desse vazio melancólico, o sujeito é confrontado com seu desejo criador, um desejo violento e incômodo. Desejo órfão, não sabe o que fazer dele, nem sobre em quê aplicá-lo. A melancolia passa então a ser concebida como expressão do desejo e de sua impossibilidade, como ocorre nos pesadelos e na loucura. Na modernidade, a melancolia é progressivamente associada à mania e medicalizada, tratada como mero desequilíbrio da máquina bioquímica a ser estabilizada com algum psicofármaco. Com o olhar da ciência e da tecnologia, perde-se a noção do sujeito que sofre na melancolia, que fica fascinado pelo vazio existencial de ser mais um objeto num mundo sem coração. Quem resgata a perspectiva da melancolia como uma forma de sofrimento subjetivo, além dos artistas e poetas, é Freud, que a aproxima dos estados de luto por perda de algo ou de alguém importante na vida da pessoa. Ele ressalta que o sujeito erotiza a perda a tal ponto que acaba perdendo a própria noção de quem ele é, ou seja, cai no vazio infinito de um eu perdido que se regozija num luto patológico de si mesmo. O sujeito lamenta a perda de um eu que deveria ter sido e nunca foi. A melancolia é uma doce crueldade que se espraia para todos os lados. Ao longo dos três pisos do Grand Palais, somos conduzidos no fascinante labirinto desse estado de espírito pelas mãos de artistas como Dürer, La Tour, Watteau, Goya, Friedrich, Delacroix, Rodin e Picasso, entre outros. Em todos eles, o sol negro da melancolia deixou em suas obras marcas que nos olham. Até as esculturas gregas, com 2400 anos, nos olham vivas. Somos capturados por esse olhar enigmático de sofrimento, loucura e genialidade e mergulhados nos mistérios do ato de criação do artista que se re-atualiza em cada um em pleno século XXI. Diante dessas obras, podemos oscilar entre o fascínio da imagem que encanta (bela ou não), o horror diante do real melancolicamente inominável que retorna sempre ao mesmo lugar, passando pela familiar e inquietante estranheza da interrogação significante. A arte é peça chave na infindável tarefa civilizatória. Ela se faz autêntica chave mestra quando cria um lugar para o sujeito do desejo inconsciente, tanto do artista, quanto do observador. Essa mostra reafirma a necessidade da arte para a humanização do ser humano. 30 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n.145, abril 2006 31

SEÇÃO DEBATES ALVES, M. G. M. M. B. et al Em busca... EM BUSCA DO SIGNIFICANTE NO BRINCAR, NO DESENHAR E NO ESCREVER Maria das Graças Meirelles M. B. Alves Maria Ignez Lopes Portugal Miriam Cardoso Braz Rosângela Gazzi Macedo Teresa Cristina G. De Almeida Mendes Tonia Maria Boza Lopes Vera Silviano Brandão Correa Lima 1 Aantítese de brincar, não é o que é sério, mas o que é real.(freud, em Escritores Criativos e Devaneios Vol IX) Este trabalho surgiu de um grupo de estudos sobre o Brincar e o Significante na análise de criança e de adolescente. Balbo, em seu texto Do ouvido ao olho e num estalar de dedos 2, nos fala acerca do desenho e de sua leitura prévia para interpretá-lo, frisando a diferença entre leitura e interpretação desse tipo de material e o cuidado que se deve ter para não confundir as duas coisas. Nem sempre a criança usa da linguagem falada numa sessão. Mas a linguagem pode ser buscada no que Balbo chama de escritura latente, que ela faz enquanto brinca, desenha ou escreve. O desenho infantil pode ser comparado a um enigma figurado ou a um hieróglifo, que deve ser decifrado para se poder ler sua mensagem. As imagens dos desenhos podem ser pensadas a partir de um ciframento e seu código. Balbo propõe um trabalho de deciframento prévio desse código até as raízes do traço, para se ter acesso à escritura latente que o conteúdo manifesto encobre. Propõenos então duas perspecitvas de saber que nos pemitem tal acesso: uma que trata da acústica, mas não sem se referir à imagem, e outra que trata da imagem, mas necessariamente também da acústica. 1 Psicanalistas, sócias do IEPSI/BH, participantes do Centro de Estudos e transmissão do IEPSI/BH. 2 BALBO, G. Do ouvido ao olho e num estalar de dedos. Apostila da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. Freud, na sua Contribuição à concepção das afasias 3, fala da prédeterminação da representação-coisa e da representação-plavra pela linguagem, e do papel fundamental que a imagem acústica desempenha nisto. Em O Ego e o Id, Freud nos diz: Os resíduos verbais derivam primariamente das percepções auditivas, de maneira que o sistema Pcs. possui, por assim dizer, uma fonte sensória especial. (...) Em essência, uma palavra é, em última análise, o resíduo mnêmico de uma palavra que foi ouvida. 4 Sabemos, através da Carta 52 de Freud a Fliess 5, que o elemento acústico da linguagem funda a atividade associativa, cujo caráter simbólico inerente especifica a relação entre representação-coisa e representação-palavra. A palavra de um Outro é, pois, estruturante para a criança, e se ela vier a falhar, ou não puder ser ouvida, aquela nada poderá transcrever. Se houver poucas palavras, poucos traços ou um ciframento pobre, o brincar, o desenhar e o escrever vão se apresentar também pobres como percepção futuramente oferecida ao Outro, ou até inexistentes. Se o que for percebido não deixar traços, ou o ciframento for pouco ou nenhum, o sistema de signos ficará falho. Porém, mesmo diante de um sistema falho, de uma linguagem pobre, podemos pensar que a criança, apesar de ser incapaz de fazer uma leitura do material que nos oferece, mesmo sendo aléxica com relação a seus desenhos, por exemplo, não cessa de escrever neles. A pulsão não cessa de se inscrever. Então, ela deve saber alguma coisa sobre essa sua escritura, que é primordial e, através dela, a criança testemunha um retorno à própria letra, isto é, ao momento do ciframento mesmo do traço Wz da Carta 52 que não pode ser senão acústico. O desenho é, então, segundo Balbo, o aval da inscrição primária de um traço de representação de objeto da percepção, mas também constitui uma prova de que essa inscrição foi cifrada, que esse ciframento é feito concomitantemente à constituição de um código, logo, codificação e ciframento ao Outro. Esse código é o Outro, na medida em que é companheiro da linguagem. 6 Para verificar tudo isso na prática, procuramos trabalhar sobre 3 FREUD, S. A interpretação das afasias.edições Persona. 4 FREUD, S. O Ego e o Id. Vol XIX das Obras Completas da E.S.B. 5 FREUD, S. Carta 52. Vol I das Obras Completas da E.S.B. 6 Balbo, G. Do ouvido ao olho e num estalar de dedos. Apostila da Associação Psicanalítica de Porto Alegre. 32 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 33

SEÇÃO DEBATES ALVES, M. G. M. M. B. et al Em busca... quatro flashes clínicos, que pudessem servir de ponto de partida nesse exercício de busca e reconhecimento dos significantes nas escrituras latentes, e tivemos a surpresa de nos deparar com exemplos simples e bastante claros, para nós, dentro dessa nova perspectiva de trabalho. Vamos começar por um flash de uma entrevista preliminar. G. senta-se no sofá ao lado o pai e se recusa a sair desse lugar para qualquer brincadeira e até mesmo para conversar com a analista. Até que é convidado para jogar, e pergunta que jogos ela tem. Ela responde que poderiam fazer ali o jogo que ele quisesse. Ele então diz: Dama, mas de papel não serve. Eu quero uma Dama de verdade. Então, o pai é convidado a sair da sala, e a partir daí G. e a analista iniciam seu trabalho: uma história a ser escriturada. Vimos que o momento de entrada em análise, que se dá exatamente pela irrupção do significante da transferência, é também o momento de um não se sabia e, portanto, de um encontro com o real (um ponto de tiquê), tanto para o analista como para o paciente. Esse não se sabia, que surge como tiquê, justamente no lugar onde produz a significação, é algo que escapa a todo registro que seja da ordem do significado e da significação, que implicam também o significante escapa, portanto, ao simbólico. 7 Quando G. Disse Eu quero uma Dama de verdade, foi esse significante, dama de verdade, que se destacou entre os demais, e nele foi amarrado o fio sobre o qual seria feita uma nova tecitura. Assim, numa entrevista preliminar, foi possível captar, na palavra que nomeava o jogo escolhido, o ponto de partida para o trabalho. Outro caso interessante é o de uma menina de 8 anos, que depois de terminar a leitura de um livro de estória A mãe da minha mãe, de Angela Lago, deita-se no divã e começa a contar a sua própria história. Relata que sua BIVÓ havia morrido assassinada em São Paulo, quando duma visita a seu irmão que estava doente. Esta morte ocorreu quando a BIVÓ andava pela rua e foi envolvida em uma passeata política. A garota ainda não havia nascido, mas seu BIVÔ ainda é vivo e mantém a casa com tudo da BIVÓ no 7 FERNANDEZ, M. R. A escritura da transferência na psicanálise com crianças. Letra Freudiana, ano X, n. 9 lugar. Ela finaliza, dizendo que se a BIVÓ não tivesse irmão, não teria ido a São Paulo, não teria morrido, e seu BIVÔ não estaria sozinho. Na palavra BIVÓ poderíamos destacar esse significante amarrado na construção da fantasia, a constituição do sujeito que é o tempo inteiro do drama edípico e da ordem de uma estruturação. No seu discurso (deitada no divã), pudemos ver uma tentativa de lidar com a angústia de castração, pois a perda da Bivó remete à própria angústia, a algo inominável, a morte, o real. Vamos trabalhar agora com os desenhos. Balbo nos chama a atenção para a impossibilidade de ler um desenho em relação apenas a ele mesmo. Um signo só faz sentido retroativamente, e seu ponto de basta se refere justamente à dimensão do corte a posteriori, dando possibilidade ao surgimento do sujeito do inconsciente. Os desenhos das crianças se apresentam como os fonemas das palavras numa frase uns após os outros. Eles só adquirem um sentido numa sucessão, num conjunto, inserido no contexto da transferência. Podemos então abordar a prática significante na estruturação subjetiva também tentando ler esse seu discurso desenhado. Temos aqui o caso de A., trazida para a análise por problemas escolares e alimentares. Ao chegar, é uma criança franzina, que precisa ser internada para ser medicada com soro, devido a uma recusa de se alimentar após a morte de sua cachorra. Esta cachorra teve um papel fundamental na sua vida, pois funcionava como babá para ela, filha única de pais ausentes. Foi com a cachorra que aprendeu a andar, a descer e subir escadas; ela dormia na porta de seu quarto e a levava para a escola. Quando morreu, A. Passou a exigir a presença de seus pais, tornou-se agitada e sem limites, parou de comer. Perdeu sua referência menina-cachorra. A seqüência de seus desenhos é a seguinte: (vide anexo 1) 1. animal atrás de grades, acompanhado da fala: - Fico sozinha o dia todo, a empregada não quer brincar comigo. 2. cópia de um cavalinho de plástico do consultório, desenho este que traz seu nome completo por cima. 34 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 35

SEÇÃO DEBATES ALVES, M. G. M. M. B. et al Em busca... 3. três figuras: uma menina com orelhas, uma menina-borboleta e uma menina que ela reconhece como sendo ela mesma. Escreve por cima seu nome/ 4. figura de menina-gente, com flor e rabo-de-cavalo, mas sem rosto. Marca uma ausência. 5. figura completa de menina. Bem estruturada, com flor e pirulito nas mãos. Percebemos que estes desenhos se justapõem, se combinam e se encadeiam, numa série metonímica-metafórica, como numa estrutura de linguagem. Conforme Balbo, um desenho pode ser considerado potencialmente metafórico de um outro, ou pode ser, ele mesmo, uma metáfora. Segundo Lacan, a metáfora se situra no ponto preciso onde o sentido se produz no no sens. O desenho do cavalinho é uma exceção entre outros. À primeira vista, não tem nada a ver com a seqüência apresentada. O pai desta menina é criador de cavalos. Neste momento, em que lhe faltou a referência-cachorra, entra aqui a metáfora paterna, aparecendo o Cavalo como significante de Pai. O significante Cavalo permitiu a entrada do pai, que gerou a metamorfose de menina-cachorra em menina-gente, e, se atentarmos para os conceitos de metamorfose e metonímia, veremos que ambos são claramente ligados e visíveis aqui, fazendo juntos esse deslizamento até a constituição do sujeito menina-gente só possível pela introdução da metáfora Cavalo/Pai. O mesmo tipo de leitura pode ser feita em outro material, que nos surpreendeu por sua condensação (vide anexo 2). Este material pertence a F., um adolescente com problemas escolares e super-agitação. Não lê direito, não aprende pontuação, não consegue se concentrar. F. Resolve escrever uma estória em quadrinhos, mas separa, noutra folha, os dizeres correspondentes a cada figura. Observando bem, concluímos que F. não desenha, propriamente. Ele faz grafite. Usa pouquíssimos traços para criar várias expressões. A surpresa maior reside na constatação de que esses traços correspondem às letras do primeiro nome de sua mãe: SILVIA. A única letra usada por ele que não faz parte do nome é o U, correspondente aos narizes e à língua pendente da boca. Essa letra estranha ao resto, que ele coloca entre os olhos ou saindo da boca, nós vimos como a metáfora. É a exceção de que falávamos acima, a marca diferente que chama nossa atenção. Num segundo encontro, F. faz, também em quadrinhos, sua autobiografia. Comparando esses quadrinhos com os primeiros, percebemos os mesmos traços. Mas aqui, aparecem três diferenças marcantes: ele escreve dentro dos quadrinhos, não faz o contorno dos rostos, e a boca, que se apresentava cheia de dentes e com a língua pendente, aqui é representada apenas por um traço, com exceção do quadrinho onde ele escreve não gostava de ficar sem leite. Outra observação interessante é que, ao escrever sobre sua fuga do castigo, ele não fecha o quadrinho de baixo, e passa para a outra folha, onde coloca a bola que ia jogar, acompanhada de uma seta, apontando para os últimos dizeres. Estes já não estão dentro de quadrinhos. Ele usa as palavras quero e gosto. Não temos muito a dizer sobre estas duas folhas, o próprio F. escreveu nelas o que queria expressar. Está falando de um nascimento para o desejo, de um salto, junto com a bola, rumo a uma libertação. Vimos a letra U como metáfora. Embora o que tenha nos chamado primeiro a atenção nos grafites tenha sido a incidência dos traços com as letras do nome SILVIA, não podemos fazer uma leitura sobre essas letras, mas sobre os próprios traços de F. O perigo aqui é ficarmos presos ao imaginário das letras. Lembramos a referência que Lacan fez à tradução dos hieróglifos por Champollion, mostrando que a metáfora do enigma figurado não tem outro sentido senão: os sujeitos do enunciado e da enunciação falam uma só e mesma língua. Foi necessário para Champollion recorrer a uma terceira língua para realizar sua obra de tradutor. Da mesma forma, é preciso que o analista entre como um terceiro, para possibilitar ao analisante fazer a tradução do que foi transcrito por este na escritura-imagem, no seu texto originário, inconsciente. 36 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 37

SEÇÃO DEBATES ALVES, M. G. M. M. B. et al Em busca... A presença desse terceiro, aqui, possibilitou a F. grafitar a sua metáfora, escriturar em imagens o que para ele é inconsciente. Os traços de seus quadrinhos da Autobiografia são traços metonímicos. Eles deslizaram como partes que se desprendem de um todo preso, amarrado. Eles nos parecem soltos, desdobrados, fora de contornos, sem enquadramento. O sujeito começa a escriturar sua própria história. Libertando-se aos poucos, metonimicamente, de seus contornos, F. escapole à escravidão da própria imagem. A leitura que sugerimos a partir dos primeiros quadrinhos seria a seguinte, buscando nos ater aos traços: V separa olhos vesgos em cara; U é estranho; boca abrindo mostra seus dentes; língua solta, pendente de dentro. Numa leitura fonética teríamos: Vê se pára os olhos vesgos, encara o estranho; abre a boca, mostra os dentes; solta a língua in (dentro) de (proveniente, que nasce)pendente. E, numa última construção, teremos: Para ver é preciso distanciar-se da imagem. Olhar o estranho, abrir a boca, soltar a língua, falar, se independente. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS: BALBO, G. Do ouvido ao olho e num estalar de dedos. Apostila da Associação Psicanalítica de Porto Alegre FREUD, S. A interpretação das afasias.edições Persona. FREUD, S. Escritores criativos e devaneios. Vol IX das Obras Completas da E.S.B. FREUD, S. O Ego e o Id. Vol XIX das Obras Completas da E.S.B. FREUD, S. Carta 52. Vol I das Obras Completas da E.S.B. FERNANDEZ, M. R. A estrutura da transferência na psicanálise com crianças. Letra Freudiana, ano X, n. 9. LACAN, J. O Seminário, Livro 3. As psicoses. Editora Jorge Zahar. LACAN, J. O Seminário, Livro 11. Os quatro conceitos fundamentais. Editora Jorge Zahar. RODULFO, R. O brincar e o significante. Artes Médicas, 1990. DÖR, J. Introdução à leitura de Jacques Lacan. Artes Médicas ANEXO 1 1 2 A Leitura do traço Cachorra sozinha entre barras Cavalinho preto com nome e sobrenome sobre ele Leitura fonética Sou menina/cachorro Brinco de copiar cavalinho do traço Fico sozinha o dia todo e escrevo o meu nome completo sobre ele. Surge um novo significante Leitura psicanalítica Cachorra / mãe para Cavalo salta barras sempre barrada Pela morte Nome do pai V V Identificação com o objeto Metáfora Paterna Melancolia Através (trans) das barras (da morte) salto com o cavalo as barras (obstáculos). e me transformo. 38 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 C. da APPOA, Porto Alegre, n. 145, abril 2006 39