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Transcrição:

Princípio do prazer: reflexões teóricas e clínicas 45 45 Princípio do prazer: reflexões teóricas e clínicas* Pulsional Revista de Psicanálise, ano XIII, n o 132,45-51 Lídia Queiroz Silva Magnino O objetivo deste trabalho é fazer uma reflexão sobre o artigo de Freud, Além do princípio do prazer, ampliar a compreensão de sua dominância, de seus dois pólos (desprazer-prazer), de sua relação com a compulsão à repetição. A compulsão à repetição é uma atividade de ligação básica e fundamental do psiquismo, que constitui o terreno do próprio e cria condição para o princípio do prazer. Quando há um excesso de energia livre invadindo o psiquismo, a atividade de ligação e a conversão da energia livre em energia tônica predominam, levando o indivíduo a um nível de funcionamento que está aquém-além do princípio do prazer. O tema é problematizado por meio de material clínico, e uma articulação da teoria e da clínica é apresentada. Palavras-chave: Psiquismo, Freud, compulsão à repetição, Além do princípio do prazer The main purpose of this study is to reflect on Freud s article, Beyond the pleasure principle. The aim is to amplify the comprehension of the dominance of its two poles (non pleasure-pleasure), and of its relation with compulsion to repetition. The compulsion to repetition is an activity of basic and fundamental connection of psychism that constitutes its very realm and creates condition for the pleasure principle. When there s an excess of free energy invading the psychism, the connective activity and the conversion of the free energy in tonic predominates, leading the individual toward a functioning level that is far beyond the principle of pleasure. The theme is treated by the means of clinical material, and an articulation of the theory and of the clinic is presented. Key words: Psychism, Freud, compulsion to repeat, Beyond the pleasure principle * Trabalho de conclusão da disciplina Constituição da subjetividade e psicoterapia II, ministrada pelo Professor Doutor Luís Claudio Figueiredo, no 1 o semestre de 1999, no Programa de Estudos Pós-Graduados em Psicologia Clínica da PUC-SP.

46 Pulsional Revista de Psicanálise Diante das inúmeras possibilidades de iniciar a construção deste trabalho, lembrei-me de que o que um bom leitor deveria fazer é trazer o texto para o campo, para o contexto de suas próprias reflexões e deixar-se tocar pelas questões que o texto lhe faz e pelas respostas que lhe solicita (Figueiredo, 1998). Assim me transporto para a clínica, para meu campo de trabalho, evocando, recortando um tema em que procuro estabelecer um diálogo entre um corpo de questões e questionamentos clínicos, e um corpo de pressupostos, teorias. Contudo, diante da tensão criada pela própria necessidade de contextualizar, descontextualizar, recontextualizar, organizar a escrita vou, na medida do possível, permitindo perturbar-me com esta nova experiência, procurando articular a teoria com a clínica, articular o antigo vivido no novo, o conhecido no estranho. AMPLIANDO A COMPREENSÃO DA DOMINÂNCIA DO PRINCÍPIO DO PRAZER Além do princípio do prazer é um artigo elaborado por Freud entre 1919-1920, em que traz o tema do dualismo pulsional. Seu conteúdo tem a ver com o movimento do retorno ao estado anterior, a restauração de um estado de coisas, o mais pulsional das pulsões, a presença do princípio da constância (Nirvana). É um artigo metapsicológico que tece considerações sobre o amor, o ódio, o sadismo, o masoquismo. Sobre como a pulsão de morte assume a fisionomia do ódio, da agressividade e como ela opera silenciosamente. Aborda a universalidade do caráter restaurador e regressivo das pulsões, sua índole ativa, agressiva, lutadora, combativa. De um lado o princípio do prazer, de outro um mais além. Freud levanta a hipótese de que a compulsão a repetir indica que parece que há algo de mais primitivo, mais elementar, mais pulsional, em cada ser, que o princípio do prazer. Vida e morte lado a lado, em uma relação complexa e não simplesmente uma mera oposição. Utiliza-se da metáfora da vesícula de substância viva e das relações da cápsula que a envolve com o seu exterior e interior. A vesícula defende-se produzindo uma crosta. Quando há uma ruptura dessa crosta, há uma inundação, faz-se necessário ter uma espécie de reserva energética amortecida. Essa reserva morta é essencial para a defesa da vida. A finalidade de toda a vida é a morte. (Freud, 1920) A mesma obra de ligação necessária para constituir a dominância do princípio do prazer e sua modificação em princípio de realidade, ao retirar a energia livre, reduz as possibilidades de prazer-desprazer. Freud aproxima o modo de funcionamento do sistema PCS-CS da noção de cápsula de proteção. Há uma cápsula de proteção, com uma membrana externa, criada por si mesma, até certo ponto inorgânica, resistente aos estímulos. Uma crosta que a protege do que vem de fora, que recebe e amorte-

Princípio do prazer: reflexões teóricas e clínicas 47 ce o impacto das estimulações externas. O pequeno fragmento de substância viva está suspenso no meio de um mundo externo carregado das mais poderosas energias; e ela poderia ser morta pela estimulação que emana destas energias se não fosse provida de uma cápsula de proteção contra os estímulos. Adquire esta cápsula desta maneira: sua superfície mais externa deixa de ter a estrutura própria da matéria viva, torna-se até certo ponto inorgânica e desde então funciona como um envelope especial ou membrana resistente aos estímulos. (Freud, 1920) Uma espécie de morte que protege a vida. (Figueiredo, 1998) A recepção dos estímulos externos é intermitente para impedir uma exposição excessiva do psiquismo às altas intensidades energéticas vindas do mundo externo. A temporalização da experiência consciente é uma decorrência da intermitência que protege interrompendo ritmicamente a recepção, dando tempo ao organismo para se recompor do impacto. A intermitência amortece a estimulação externa. Em relação à estimulação interna, a vesícula não tem a mesma proteção. Como não há uma barreira que proteja a cápsula das estimulações internas, estas, quando excessivas, podem ocasionar perturbações. Quando há uma estimulação intensa proveniente de dentro, deve haver uma estrutura interna que permite os acúmulos e descargas de energia livre; deve existir uma certa proporcionalidade entre as energias liberadas e as forças de resistência e absorção dessas energias. Há algum tipo de contenção. O processo primário pressupõe uma estrutura de contenção formada por energia quiescente. Assim, a dor física resultaria da quebra da proteção em uma área da barreira que será fonte de energia livre desprazerosa, e toda energia existente precisa se mobilizar para conter essa hemorragia. Tal mobilização tem a função de ligar. O superavit de energia que entra precisa ser convertido em reserva. Quanto mais reserva de energia, maior capacidade de ligação. Essa obra de ligação permite a energia livre circular, acumular, escoar, descarregar. As ligações se fazem através da energia livre, quando há risco numa certa parte do sistema. É necessário que a obra de ligação esteja sempre em curso. Em alguns momentos ela é desafiada e pode ser destruída pelas energias livres. Portanto, quando há uma invasão de altas intensidades energéticas, rompe-se a proteção psíquica, libera-se muita energia livre dentro do sistema, com um pouco de reserva de energia quiescente, silenciosa. Essa energia quiescente parece ter elementos da energia livre, constituindo o idêntico prazerdesprazer. O trauma advém não do rompimento, mas da liberação de energia. Observa-se que a tolerância à repetição do desagradável sustenta-se na esperança de uma redução progressiva do desprazeroso. O sonho é um protetor do sono. (Freud, 1915) Freud se refere a um antes e um após as ligações, um aquém e um além do

48 Pulsional Revista de Psicanálise princípio do prazer. Quando ocorre o excesso de energia livre (vai além) da capacidade estruturante da energia quiescente, a tarefa de ligação é fundamental e a compulsão à repetição aparece nitidamente. As repetições revelam que há experiências infantis não ligadas, que excedem e solicitam ligação. A morte como um horizonte da vida e a vida como adiamento da chegada desse momento. Uma das funções do aparelho mental é ligar as pulsões sexuais que incidem nele, substituir o processo primário pelo secundário, converter a energia livre em energia domesticada. É preciso tolerar o desprazer para que as ligações possam ser feitas. As ligações reduzem a intensidade do prazer e desprazer. Se a repetição constitui uma compulsão ou um prazer, se ela se situa aquém ou além do princípio do prazer, essas duas perspectivas não se excluem. As ligações são em si fontes de prazer, e a vigência do prazer, a morte. Repetição e prazer estão estreitamente entrelaçados como um jogo. REFLEXÕES SOBRE A CLÍNICA Uma mulher aos quarenta anos procura-me para fazer análise queixando-se de um grande sofrimento por ter se apaixonado por um homem, um colega de trabalho que não lhe corresponde. Considera-se velha, feia, quer ser outra pessoa. No decorrer das sessões percebia que ela se havia ligado eroticamente a ele, criando psiquicamente um casal imaginário, quase perfeito. Relacionava com ele com a expectativa que lhe atendesse em seus anseios, em suas necessidades. Ficava muito deprimida quando a realidade mostrava o contrário do que desejava. Se ele ia ao clube e não a convidava, se dava atenção especial a outras colegas. Estava atenta a cada movimento seu no trabalho, nos passeios. Todo o convite que recebia dele, estava pronta para atendê-lo. Lamentava quando não saíam juntos, principalmente se ele ia sem lhe contar. Entretanto, guardava para si todos esses sentimentos. Não tinha coragem de lhe falar tudo o que sentia. Justificava para os outros que sua proximidade se devia a uma grande amizade. Ele, por outro lado, alimentava essa relação parasítica. Parece-me que um era hospedeiro do outro. Ela até supunha que alguns amigos sabiam, pois já tinha ouvido deles conselhos para partir para outra escolha. Mas nada disso era suficiente para afastar-se dele. Algo de mais forte a impedia. Não percebia que havia criado um quadro delirante e que se nutria dele. Esse excesso libidinoso, e ao mesmo tempo destrutivo, colocava-a permanentemente em cheque com a sua liberdade e felicidade. Sentia-se presa e achava que a solução era mudar-se de cidade. Fico a me indagar: o que de seu identificou com esse homem? Por que se identifica com um parceiro sexual que apaga os limites e as diferenças entre os dois? Como rastear o parasita que hospeda em seu psiquismo? Freud já destacou que em Eros pode haver dois movimentos simultâneos, o de

Princípio do prazer: reflexões teóricas e clínicas 49 buscar ligações e ao mesmo tempo produzir desligamentos. Da mesma forma em Tanatos há dimensões e formas de uso de forças de destruição que auxiliam na tarefa de manter ligações e coesões. Essa paciente dizia que procurava a análise para buscar outras formas de relação, reduzir aquela excessiva erotização. Não agüentava mais sofrer. Sabemos que o esforço analítico visa capacitar o paciente a tolerar uma certa cota de desprazer. Em sua análise se evidenciavam os conflitos e alianças entre Eros e Tanatos. Já tinha feito uma primeira tentativa de psicoterapia com uma colega, que durou poucos meses. Em cada sessão comigo chegava desanimada, dizendo que se obrigava a ir, que não estava ali por prazer, como às vezes ouvia colegas dizerem com alegria e entusiasmo que iam para análise. Eu sentia na transferência tensão, angústia, aniquilamento, desvalorização de qualquer insight e interpretação que eu formulava. No entanto, a função analítica de tolerar a experiência e investigar a tendência dessa paciente de buscar o retorno ao paraíso e ao mesmo tempo a estadia no inferno da angústia, me evocavam muita paciência e muita cautela em não saturar minha mente com nenhuma expectativa e desejo de cura. Deixava-me conduzir pelo próprio material que ela trazia, com sua capacidade de apelo e ressonância daquilo que continha. Procurava as possíveis ligações. Perguntava-lhe se acreditava mesmo em tudo aquilo que falava. Confrontava o que me dizia com o que fazia. Achava importante contrapor seu relato sem cor, sem vitalidade, carregado de negatividade, com sua vida. O seu jeito colorido de vestir, sua atitude acolhedora para com a família, amigos, o cuidado com seu carro, apartamento. Falávamos das coisas que fazia, mas que não sabia. De sua alta sensibilidade, de tudo que lhe doía, ardia como se tivesse uma pele de bebê, mas que ao mesmo tempo mostrava e se apresentava no dia a dia para si mesma e para os outros, como se fosse dura e enrijecida. Dois movimentos sempre estavam e ainda estão presentes nas sessões: delicadeza-firmeza e passividade-agilidade. Era comum ouvir dela que queria dormir e não acordar mais, que não achava graça em viver, que não via sentido em pessoas comemorarem datas festivas como: aniversários, Natal. Ficava cada vez mais nítido que a sua busca do idêntico a si mesma, do igual, do estável, indicava a presença do princípio do prazer. Provavelmente na sua mente havia uma forte tendência operando aquém (forças produzindo desprazer) e além do princípio do prazer. Sabemos que o desenvolvimento de uma pessoa não se sustenta quando partes dela e de sua história continuam comprometidas com uma tendência regressiva. Quando fala sobre seus pais traz muita mágoa. Queixa-se de experiências dolorosas, de ausências vividas, sentidas. Não se lembra de receber carinho, de ter colo. Era só cobrança, brigas. Diz que seu pai não lhe dava sossego com tanta implicância. Nunca estava satisfeito com o que ela fazia apesar de ter consciência de seu

50 Pulsional Revista de Psicanálise capricho e dedicação. Achava e ainda acha sua mãe muito passiva e cordata com tudo, o que a irrita até hoje. Como seus pais eram muito pobres começou a trabalhar cedo. Estudava e trabalhava. Assim que pôde, prestou concurso em uma instituição, passou e logo saiu de casa. Comprou um imóvel, foi morar sozinha. Fez três cursos superiores, mas nunca os assumiu profissionalmente. Dos irmãos é a que tem melhor condição financeira. Ela é que ajuda a todos, mãe, irmãos, sobrinhos. É interessante pensar o movimento dessa paciente de lançar-se adiante e para fora e ao mesmo tempo de reter e conter. Quando se queixa das mudanças e riscos que seu atual emprego lhe apresenta, conversamos sobre a possibilidade de pensar em aproveitar seus conhecimentos e habilidades, todo esse potencial que lhe serviu para ascender a uma certa independência e buscar outras opções profissionais. Ela, porém, acha absurdo e impossível. Sente-se velha, impotente, incapaz: Já passei da época. É bom lembrar que ela tem apenas quarenta anos, mas psiquicamente... É importante perguntar: o que acontece em seu mundo mental? Por que se arrisca tanto não respondendo aos seus anseios sexuais e à sua própria vida? Em termos narcisistas e de modo alucinatório, é possível que a construção dessa paixão por aquele rapaz possa ser uma tentativa de reencontrar seu ninho. Tudo vale a pena se o ego conseguir regressar ao corpo materno (Figueiredo, 1998). Regressa a uma relação de onde saiu um dia, busca retornar a um estado de que desfrutou em um momento precoce de sua vida. Confirma uma tendência à regressão. Por trás dessa relação heterossexual tão desejada é possível a presença de necessidades bem anteriores, primitivas. Só adquirimos o sentido de realidade quando podemos renunciar a essa regressão, através de uma parte de nossa personalidade. Nossas fantasias, sonhos, permanecem ligados à tendência para realizar esse desejo primitivo. Freud nos diz que os conteúdos reprimidos, infantis, lutam bravamente pela satisfação completa, pela repetição de uma primeira experiência de satisfação em que a estabilidade foi recuperada. No entanto, nessa tentativa de retorno, há resistências que mantêm a repressão, que constrangem a circulação e escoamento de energia livre, que impedem que a descarga direta da vitalidade ponha riscos ao aparelho psíquico. Mas a pulsão não desiste. Busca alternativas para atingir sua meta, pelo menos em parte. Procura, através de um longo desvio, um caminho de retorno a esse estado de perfeição e completude. Fico a refletir até que ponto essa paciente não precisou sobreviver psiquicamente criando este personagem para amar e ser amada, habitar esse hospedeiro aparentemente masculino, mas essencialmente feminino. Um amor objetal passivo, uma ilusão da permanência no aconchego de uma existência precoce. A questão narcísica da constituição e do retorno ao próprio. Tendência regressiva ao estado de paz e absoluta

Princípio do prazer: reflexões teóricas e clínicas 51 constância. Semelhante a fantasia de uma criança estar dentro da mãe e ficar numa passividade absoluta. Recuperar o perdido. Uma tentativa que exige desvios longos, adiamentos, de busca de satisfações nunca perfeitas e definitivas. Cada sessão, cada experiência de retorno recompõe, resgata trechos de uma história que ao mesmo tempo traz momentos de ameaças e angústias, mas também de felicidade. Este ano a paciente conseguiu, pela primeira vez, planejar e comemorar seu aniversário, dando-se de presente uma festa onde pôde reunir seus amigos e sua família. BIBLIOGRAFIA FERENCZI, Sándor. Thalassa Ensaio sobre a teoria da genitalidade. São Paulo: Martins Fontes, 1990. FIGUEIREDO, Luís Claudio. Palavras cruzadas entre Freud e Ferenczi. São Paulo: Escuta, 1998. FREUD, Sigmund. Além do princípio do prazer. ESB., vol. XVIII. Rio de Janeiro: Imago, 1976. O mal-estar na civilização. ESB., vol. XXI. Op. cit. Três ensaios sobre a teoria da sexualidade. ESB., vol. VII. Op. cit. O inconsciente. ESB., vol. XIV. Op. cit. O problema econômico do masoquismo. ESB., vol. XIX. Op.cit. Formulações sobre os dois princípios do funcionamento mental. ESB., vol. XII. Op.cit. A interpretação dos sonhos. ESB., vol. V. Op. cit. Inibições, sintomas e angústias. ESB., vol. XX. Op.cit. Sobre o narcisismo: uma introdução. ESB., vol. XIV. Op. cit. MONZANI, Luiz Roberto. O movimento de um pensamento. Campinas, Editora da UNICAMP. 13 anos não é brincadeira!! Não é por acaso que a Pulsional Revista de Psicanálise é publicada há 13 anos, sem interrupção. Confira. Faça agora sua assinatura. O número de maio da Pulsional Revista de Psicanálise terá como tema Clínica do Social