HIBRIDIZAÇÃO: UMA ESTRATÉGIA IDENTITÁRIA EM VIVA O POVO BRASILEIRO KARIN HALLAN SANTOS SILVA RESUMO: Há um consenso de que a história oficial do Brasil é a história escrita pelas elites e assim esta História, em síntese, dá suporte ao reconhecimento do brasileiro enquanto indivíduo e é apreendida em grande parte pela representação literária. Em Viva o Povo Brasileiro o escritor baiano João Ubaldo Ribeiro subverte o cânone e dá voz ao excluído, aqueles que por muito tempo não tiveram o direito de falar. Através da estratégia da hibridização o autor discute a constituição dos elementos étnicos que configuram a identidade cultural brasileira: o índio, o negro, o mestiço. A identidade aqui é problematizada no sentido de uma Questão (HALL, 1998). E assim a sua desconstrução prevalece como a percepção de que uma identidade mestra já não satisfaz o consenso do imaginário cultural, advindo daí a noção de fragmentação ou de uma identidade móvel. A concepção de que a formação do povo brasileiro originou-se a partir da miscigenação ocorrida entre o branco, o negro e o índio tem início no século XIX. Na tentativa de atualizar a literatura brasileira em relação à Europa, o romantismo brasileiro nacionaliza a estética romântica européia. Ou seja, se os românticos europeus buscaram a afirmação de sua identidade no passado com a finalidade de consolidar seus Estados Nacionais, os românticos brasileiros farão o mesmo, mas adaptando um conteúdo nacional à estética européia.
Na ausência de uma Idade Média que sirva como referencial de afirmação da identidade nacional, o romantismo brasileiro se voltará para o índio. Como afirma Merquior (...) esse período de afirmação nacional necessitava,ao nível da cultura de suas elites,de um complexo mitológico suscetível de celebrar a originalidade da jovem pátria ante a Europa e a exmetrópole. (MERQUIOR, 1977, p. 55) Nesse sentido os romances indianistas como Iracema e O Guarani serviram bem a esse propósito: serviram de passado mítico e como passado histórico consolidando uma imagem do índio generoso e cavalheiro. A construção da identidade nacional que contemplasse também o negro só ocorrerá mais tarde. Inicialmente, o negro aparecerá na literatura revestido de um sentimento humanitário dos poetas impulsionado pelo abolicionismo. O negro presente na vida cotidiana em posição subalterna não atendia ao ideal estético romântico idealizador pois não tinha uma lenda heróica e sua condição escrava era degradante. Dessa forma, os primeiros heróis escravos eram mulatos de forma a permitir que suas características físicas fossem branqueadas e facilmente adaptadas aos padrões de sensibilidade européia. É somente com Castro Alves que o negro escravo alcança sua dignidade humana na literatura. Assim, Cândido observa que este se tornara 2 (...) o poeta por excelência do escravo ao lhe dar,não só um bardo de revolta,mas uma atmosfera de dignidade lírica,em que seus
sentimentos podiam encontrar amparo; ao garantir a sua dor, ao seu amor, a categoria reservada aos do branco, ou do índio literário. (CÂNDIDO, 1964, p. 272) A pós-modernidade,por sua vez, repensa essa concepção de formação da identidade nacional. No contexto pós-colonial as representações que contemplam a formação de uma identidade nacional o fazem contemplando as peculiaridades latino-americanas que envolvem os processos de hibridização ocorridos na América.Dessa forma, a identidade é vista no sentido de uma Questão (HALL, 1998) em que uma identidade mestra já não satisfaz o consenso do imaginário cultural, advindo daí a noção de fragmentação ou de uma identidade móvel. A utilização do termo hibridização nesta pesquisa visa acompanhar a proposta de Canclini, em que os processos de hibridização englobam diversas mesclas interculturais não apenas as raciais,às quais costuma limitar-se o termo mestiçagem e porque permite incluir as formas modernas de hibridação melhor do que sincretismo, fórmula que se refere quase sempre a fusões religiosas ou de movimentos simbólicos tradicionais. (CANCLINI, 1998, p. 19) Assim, as particuliaridades que envolvem os processos interétnicos ocorridos na obra Viva o povo brasileiro (1984), de João Ubaldo Ribeiro, objeto de estudo deste trabalho, serão contemplados de forma a abranger não só as mesclas raciais e religiosas, mas tam- 3
bém as de ordem cultural em que as vozes subalternas foram construídas na alteridade. Inserida na estética contemporânea, a obra constrói sua narrativa tendo como pano de fundo os diversos momentos históricos que ajudaram a construir o que constitui a Nação brasileira: das lutas pela Independência à República, da abolição da escravidão à Guerra dos Farrapos,dentre outros. Ao rever os fatos históricos a partir da historiografia oficial escrita pelas elites a obra questiona sua veracidade confrontando-a com a versão popular baseada na vida das personagens. A construção da personagem Perilo Ambrósio, o Barão de Pirapuama (baleia, em língua indígena),por exemplo, desconstrói toda a imagem criada pela História dos heróis da Independência. Ambicioso, Perilo Ambrósio planeja juntar-se aos brasileiros que lutam pela Independência, mas Se queria que os brasileiros prevalecessem, não era por ser brasileiro e na verdade se considerava português -,mas porque,expulso de casa, abominado pelos pais e por todos os parentes, sob ameaça de deserdação, deliberara adquirir fama de combatente ao lado dos revoltosos. (RIBEIRO, 1984, p. 23) O que denota uma certa ironia com relação aos modelos que servem de base para a representação do povo brasileiro. Na tentativa de sobreviver dignamente na sociedade escravocrata os negros se vêem obrigados a assimilar a cultura hegemônica. Nego Leléu é um ex-escravo que tem negócios próprios e consegue juntar algum dinheiro adulando os brancos e vivendo conforme os 4
senhores. Em diálogo com sua neta Maria Dafé ele deixa clara qual a visão que ele tem do povo: Disseste bem,disseste muito bem: nós somos o povo desta terra, o povinho. É o que nós somos, o povinho. Então te lembra disto,bota isto bem dentro da tua cabeça: nós somos o povinho! E povinho não é nada, povinho não é coisa nenhuma, me diz onde é que tu já viu povo ter importância? Ainda mais preto? Olha a realidade,veja a realidade! Esta terra é dos donos, dos senhores, dos ricos, dos poderosos, e o que a gente tem de fazer é se dar bem com eles,é tirar proveito do que puder,é se torcer para lá e para cá,é trabalhar e ser sabido, é compreender que certas coisas que não parecem trabalho são trabalho,essa é que a vida do pobre, minha filha,não te iluda. E, com sorte e muito trabalho, a pessoa sobe na vida,melhora um pouco de situação,mas povo é povo,senhor é senhor!senhor é povo?vai perguntar a um se ele é povo!se fosse povo não era senhor. (Idibidem, p. 373) Da mesma forma ocorre com Amleto Ferreira um mulato sarará, magro e um pouco melhor falante do que seria conveniente (Idem,p.63) é filho de uma negra com um embarcado inglês. Na tentativa de conquistar um espaço na sociedade Amleto,dentre outras coisas, compra uma certidão de nascimento falsa com o intuito de atribuir à sua genealogia um aspecto nobre. E mesmo (...) agora que encontrara o rumo certo, que cavara com as unhas sua fortuna, ainda tinha de enfrentar o problema da aparência racial, a aceitação das pessoas gradas, as restrições impostas pelos mesquinhos. (Idibidem, p. 231) Chega a ponto de exigir para si um desjejum à inglesa com rins grelhados, arenques defumados, mingau com passas, pãezinhos 5
fofos, chá e torrada com geléia (Idibidem, p. 232). Enquanto que sua filha Carlota Borroméia, tão branquinha, tão alemoada, vai escondido pedir às negras broas, cuzcuz, mingau de tapioca, bolinho de carimã e café com leite (Idem, p.232). Desmistificando, assim, a idéia de que somente a cultura hegemônica é assimilada. Maria da Fé é a grande heroína e a consciência de resistência à cultura européia. Filha do estupro de Vevé, negra escrava, pelo Barão de Pirapuama,criada pelo avô como moça branca e cuja alma é a do índio antropófago é nela que se encarna toda a complexidade da constituição do povo brasileiro.ao contrário de Isaura, a escrava branca e heroína da obra de Bernardo Guimarães, Dafé, como é chamada, é mulata de olhos verdes mas assume sua identidade negra: Eu nunca vou deixar de ser preta, voinho (Idibidem, p. 376). Nas narrativas contemporâneas a figura do mulato não é utilizada de forma a atribuir características européias às personagens e com isso conquistar a empatia do leitor.aqui a figura do mulato é utilizada de forma a problematizar os complexos processos híbridos que compõem a constituição do povo,ou seja, as nações modernas são, todas, híbridos culturais Em sua luta por justiça, Dafé acredita que a liberdade dos negros só virá com o reconhecimento da vida, do trabalho e da raça negra. Quando criança, em viagens com o avô, pedia-lhe que mostrasse pessoas trabalhando nos mais variados serviços e convencia-se cada vez mais de que todo fazer, produzir e servir é sinal da beleza do mundo e somente é homem aquele que faz, produz ou serve (Idi- 6
bidem, p. 374). Essa consciência da importância do trabalho traz à tona a valorização das classes mais populares, das vozes que foram silenciadas na História oficial e que fazem parte do que constitui-se como povo brasileiro. Nas narrativas pós-modernas a identidade nacional é vista como uma construção, ou seja, não são inerentes, mas são formadas e transformadas no interior da representação (HALL, op. cit.). Dessa forma, as culturas nacionais como a música, arquitetura, literatura são estratégias representacionais que constroem o senso comum de pertencimento a uma nação. Os sentidos produzidos por essas culturas é que vão nos identificar enquanto povo e acabam por construir identidades. As vozes subalternas como as dos negros, índios, mulheres e minorias em geral, ecoam e configuram também como constructo da identidade cultural brasileira através da obra de João Ubaldo Ribeiro. Como aponta Hall: Em vez de pensar as culturas nacionais como unificadas, deveríamos pensá-las como constituindo um dispositivo discursivo que representa a diferença como unidade ou identidade. Elas são a- travessadas por profundas divisões e diferenças internas, sendo unificadas apenas através do exercício de diferentes formas de poder cultural. (HALL, op. cit., p.62) Os discursos construídos na alteridade produziram identidades constituídas a partir de um modelo europeizante. Já no final da narrativa, em um brilhante diálogo entre Dafé e o comandante do Exército, ela (re)constrói a identidade do povo a partir de uma nova perspectiva: 7
(...)a única coisa que faz sentido,é ver a nós mesmos como devemos nos ver e não como vocês querem que nos vejamos. E ver vocês como devemos ver e não como vocês querem que os vejamos. A História de vocês sempre foi de guerra contra o próprio povo de sua nação (...)Por que, enquanto hipocritamente libertam os negros, porque não mais precisam deles,criam novos escravos,ajudam a transformar seu país na terra de um povo humilhado e sem voz? (RIBEIRO, op. cit., p. 565) Diante da crença que tristeza, luxúria, cobiça e preguiça eram os pecados do índio, caboclo, negro e mulato (IANNI, 1996, p. 129), há que se criar uma imagem que contemple essas identidades não mais a partir de um paradigma que os humilhe. Enquanto sujeito da enunciação, Maria da Fé questiona a legitimidade e a veracidade dos discursos que constroem a imagem dos excluídos tendo como modelo o padrão europeu e propõe a construção de uma identidade a partir de suas diferenças. Viva o povo brasileiro desconstrói a idéia de uma cultura nacional unificada. Ao problematizar os símbolos e representações que conferem ao indivíduo um pertencimento a uma nação, a obra abre um canal de vozes que foram silenciadas ao longo do processo de construção da identidade nacional. Ao longo da narrativa são expostas as múltiplas visões que sempre fizeram parte da nação. O caráter híbrido na obra se configura no momento em que possibilita que os discursos das diversas culturas que convivem sob a mesma idéia de nação tenham visibilidade e sejam formas alternativas ao poder hegemônico constituído. O Brasil, país habitado primeiramente pelos índios, descoberto pelos portugueses, para onde 8
vieram os negros e posteriormente os imigrantes europeus, possui a peculiaridade de abrigar múltiplas vozes que não podem ser silenciadas em detrimento de uma identidade nacional homogênea. Ao invés de desarticular as identidades nacionais a hibridização amplia as possibilidades de identificação e enriquece a História. 9
Referências Bibliográficas CANCLINI, Néstor García. Culturas híbridas: estratégias para entrar e sair da modernidade. São Paulo: USP, 1998. CÂNDIDO, Antônio. Formação da literatura brasileira, (Momentos Decisivos). 2. vol. São Paulo: Martins, 1959. HALL, Stuart. A identidade cultural na pós-modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 1998. IANNI, Octávio. A idéia de Brasil Moderno. São Paulo: Brasiliense, 1996. MERQUIOR, José Guilherme. De Anchieta a Euclides: breve história da literatura brasileira I. Rio de Janeiro: J. Olímpio, 1977. RIBEIRO, João Ubaldo. Viva o povo brasileiro. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 10