Luís Vinícius Brum da Silva. A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia



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Transcrição:

Luís Vinícius Brum da Silva A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia Porto Alegre 2009

2 Luís Vinícius Brum da Silva A canção regional gaúcha: escutando a letra e lendo a melodia Dissertação apresentada junto ao Programa de Pós-Graduação em Letras do centro Universitário Ritter dos Reis, como requisito parcial para a obtenção do título de Mestre em Letras. Orientadora Prof. Dr. Leny da Silva Gomes Porto Alegre 2009

3

4 RESUMO A canção regional gaúcha, através de suas múltiplas manifestações, vem se constituindo em um objeto cultural relevante. Esta dissertação investiga, a partir das linguagens musical e verbal, imbricadas no gênero canção popular, as contribuições que a construção deste cancioneiro forneceu à consolidação do arquétipo reconhecido como gaúcho. Para efeito desse estudo, situamos uma origem: a obra composta por Luiz Carlos Barbosa Lessa desde o final da década de 40. O autor é um dos responsáveis pela valorização da cultura regional cujo centro é a figura do homem do campo com suas idiossincrasias. Algumas de suas canções atingiram reconhecimento tamanho no imaginário do povo sulino que têm sido cantadas através destes quase sessenta anos nos mais diversos lugares e com as mais variadas interpretações. Além das canções de Lessa, também a investigação recai sobre outras autorias, estabelecendo proximidades e distanciamentos entre distintas manifestações artísticas no sentido de se averiguar os traçados, os estilos, as dicções que construíram e que estão construindo o cenário desse regionalismo que, já se pode afirmar, está consagrado como referência de uma cultura localizada. Através do que aqui convencionamos chamar de audição estética, empreendemos nosso estudo escutando a letra e lendo a melodia.

5 ABSTRACT The regional gaucho folk music, through its various manifestations, has become an important cultural artifact. This study investigates, through the musical and verbal languages, interlaced in the folk music genre, the contributions that the construction of such musical identity gives to the archetype of the gaucho. For the purposes of this study, we have located an origin: a single piece of work composed in the late 40 s by Luiz Carlos Barbosa Lessa. The author, amongst others, is responsible for the valorization of Rio Grande do Sul s regional culture a culture centered in the figure of the countryman and his idiosyncrasies. Some of Lessa s songs achieved such recognition in the southern imagery that they are still sung in several places and within diverse interpretations almost sixty years after the first recordings. Besides the songs of Lessa, this research also addresses other authors, establishing proximities and distances between different manifestations in order to ascertain the routes, the styles and the voices that built and are building the gaucho folk genre a genre that is being already established as a reference of local culture. Through what we call aesthetic hearing, we conducted our study hearing the lyrics and reading the melody.

6 SUMÁRIO 1.INTRODUÇÃO...06 2.CONSIDERAÇÕES SOBRE A PALAVRA POÉTICA...16 3.CONSIDERAÇÕES SOBRE A CANÇÃO POPULAR...20 4. ESCUTANDO A LETRA E LENDO A MELODIA...25 4.1 "Negrinho do pastoreio": uma toada em feitio de oração...28 4.2 "Quero-quero": uma valsa entre a ave e o verbo...43 4.3 "Cantiga de eira : indo e voltando para o mesmo lugar...47 4.4 "Entrevero no jacá": onomatopeia e concretismo...50 4.5 "Carreteiro": alguém cantando dentro da canção...54 4.6 "Feitiço índio": uma evocação do mundo modal...58 4.7 "Quando sopra o minuano": a tradição no voo do vento...63 5. ESTABELECENDO DISTÂNCIAS E PROXIMIDADES...67 5.1 Gildo de Freitas um improvisador entre a oralidade e a cultura escrita...69 5.2 O poder da palavra na roda do canto...76 5.3 A anunciação do canto: um problema enunciativo...80 5.4 Dois guris entre voltar e não partir...84 6. CONCLUSÃO...88 7. REFERÊNCIAS...96 8. OBRAS CONSULTADAS...99 9. DISCOGRAFIA...100

7 1. INTRODUÇÃO Este estudo investiga do ponto de vista da linguagem (ou das linguagens) de que maneira a canção popular regional produzida no Rio Grande do Sul, a partir da década de quarenta, contribui para o processo de construção de identidade do gaúcho. Evidentemente, a palavra gaúcho remete para além de uma mera designação gentílica e, em nossos dias, já suplantou a designação original riograndense e se plasmou no imaginário popular. Até hoje existem variadas explicações para as origens etimológicas do vocábulo gaúcho. Fala-se em procedências castelhanas, portuguesas, tupis, árabes, charruas, latinas, inglesas. Algumas afirmações fantasiosas, outras mais ou menos aceitáveis, mas todas inconclusas. Os etimologistas ainda não se entenderam a respeito da origem da palavra gaúcho. E, ao que tudo indica, jamais se entenderão. [...] Nessa velha e surrada pendenga, a melhor política é a seguida por Augusto Meyer: depois de apontar as principais versões sobre a etimologia do complicado vocábulo, deu o assunto encerrado, sem adotar nenhuma (REVERBEL, 2002, p. 5). A designação gaúcho, nos dias atuais, parece abarcar um significado antropológico de larga amplitude, um fenômeno de construção de identidade cultural diferenciado num mundo que tende à fragmentação das culturas pela sua inevitável interpenetração. É identificável que o senso popular consagra algumas canções como se fossem de pertencimento coletivo, posto que falam, ou pretendem falar, sobre assuntos que unificam uma determinada comunidade. O que aqui se estuda é, portanto, como as linguagens musical e literária, irrevogavelmente tramadas no gênero canção popular, participam desse processo. Pretende-se, ainda, fazer a verificação de correspondência entre as linguagens literária e musical (encontros, desencontros e justaposições entre texto e melodia) na canção regional gaúcha, percebendose, nessa relação, se existem elementos estilísticos, semânticos, ou de incidência verbomusical que conduzam a uma reunião de caracteres que possam remeter a uma identidade de possível afirmação ou nulidade. Nossa base é a obra de Barbosa Lessa, que se encontra no CD Barbosa Lessa 50 anos de música, por seu aspecto inaugural, e trataremos de cotejá-la com outras manifestações consagradas do gênero através dos tempos no Rio Grande do Sul como a produção musical oriunda dos festivais nativistas iniciados na década de setenta. Receberá destaque o evento que em 1971 deflagra o movimento dos festivais gaúchos: Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana.

8 As primeiras fixações fono-elétricas da obra de Lessa apresentam um grau de espontaneidade criativa, de uma ingenuidade original que parece lhes conferir uma determinada condição de acesso ao estudo que se pretende desenvolver. Esse estágio embrionário da canção regional gaúcha encontra-se (naquele momento mesmo) revestido de características quase intocadas como se fosse possível dar evidências de algum tipo de estado de pureza composicional. Como não há percurso análogo anterior e apenas hoje, um pouco mais de meio século adiante, parece ser possível proceder algumas aferições, creio que se pode falar de alguma pureza estética caracterizando o período. Naturalmente, tal condição é de difícil identificação e nem é do interesse desta análise embrenhar-se por estes (des)caminhos das origens primeiras de qualquer manifestação cultural. Cultura, sabidamente, é processo. Estados puros são de impossível percepção em se tratando das recorrentes interpenetrações e influências que as culturas todas, localizadas ou não, remetem umas sobre as outras. Faz-se necessário, ainda que não se vá tratar aqui especificamente de tal assunto, considerar algo que nos dê subsídio para a abordagem da questão da identidade que, como já foi dito, através das linguagens imbricadas no gênero canção, é o objeto desta reflexão. O nó da discussão parece estar na aparente incongruência de se cogitar a verificação de um processo de construção de identidade dentro de uma realidade mundial que tende à dissolução das identidades. Sendo possível constatar que a natureza nacional (e por abrangência, necessariamente, a regional também) das culturas cada vez mais está sujeita a interpenetrações e a influências que trafegam em múltiplas direções e sentidos, será que se pode ainda falar em identidade em construto num universo de localização tão delimitada quanto o do regionalismo gaúcho? Naturalmente a resposta a tal indagação parece estar condicionada a um conteúdo que pode relativizar determinadas posições. Ainda que se possa constatar processos concretos de esboroamento de uma identidade fixa qualquer, também são de observação possível alguns movimentos que tendem à fixação de determinadas manifestações culturais. O paradoxo entre construção e dissolução das identidades é sistematizado por Stuart Hall (HALL, 2006, p. 69) em três tópicos que se pode reproduzir: as identidades nacionais estão se desintegrando, como resultado do crescimento da homogeneização cultural e do pós-moderno global ; as identidades nacionais e outras identidades locais ou particularistas estão sendo reforçadas pela resistência à globalização; as identidades nacionais estão em declínio, mas novas identidades híbridas estão tomando seu lugar.

9 No dizer de Hall (citando Benedict Anderson), a identidade nacional (parece-me possível da mesma forma considerar a regional) é uma comunidade imaginada. Esta noção de comunidade imaginada parece encontrar ressonância no corpo das canções sobre as quais adiante nos deteremos. Pode-se constatar a existência de um cenário musical e verbal que remete a um coletivo que se distingue do nacional e parece demonstrar tendências de afirmação cultural em suas manifestações. Podemos ainda refletir, dentro do espectro da canção regional, de que maneira se estabelece a condição aparentemente antagônica entre a criação ficcional da personagem gaúcho e sua correspondência na formação histórica do Rio Grande do Sul. Sem querer adentrar por terrenos alheios, devemos, contudo, situar algumas questões que parecem servir para a condução mais acurada desta reflexão. Ao cogitarmos uma construção de identidade, surge inevitavelmente essa relação: no homem inserido, e que talvez busque se reconhecer, dentro deste cancioneiro, que características ficcionais e de fenômenos de correspondência histórica há nele? Pode algo estar envolvido a um só tempo em ambos os mantos? Pesavento (2006) afirma "a presentificação do passado não nos remete apenas para o fato evocado, mas navega no tempo e no espaço, interconectando palavras e imagens, correlacionando sentidos" podemos dizer também interconectando sons, uma vez que se possa considerar que universos verbais, pictóricos/imagéticos e sonoros estão envolvidos na produção da canção. Veremos que a obra em análise remete, invariavelmente, para um éthos que parece definir um grupamento humano dentro de uma experiência memorial significativa. Através das canções vai sendo composta uma narrativa que tende a ampliá-las e a uni-las numa só corrente de construção de sentido. Pode-se ouvir a voz dos cantores (distinta da voz subliminar do autor) e se pode igualmente recortar as vozes co-habitantes dos mundos verbais e sonoros que compõem o espectro das tessituras humanas envolvidas nas experiências vividas ou relembradas. Podemos, pois, de alguma forma, indagar se tal construção de identidade, uma vez evidenciada, configura-se verossímil, considerando assim, por aproximação ou distanciamento, o gaúcho inventado e sua correspondência histórica real. É fundamental, contudo, que se saliente uma evidência contundente: Não podemos jamais ir para casa, voltar à cena primária enquanto momento esquecido de nossos começos e autenticidade, pois há sempre algo no meio [between]. Não podemos retornar a uma unidade passada, pois só podemos conhecer o passado, a memória, o inconsciente através de seus efeitos, isto é,

10 quando este é trazido para dentro da linguagem e de lá embarcamos numa (interminável) viagem. Diante da floresta de signos (Baudelaire), nos encontramos sempre na encruzilhada, com nossas histórias e memórias ( relíquias secularizadas, como Benjamin, o colecionador, as descreve) ao mesmo tempo em que esquadrinhamos a constelação cheia de tensão que se estende diante de nós, buscando a linguagem, o estilo, que vai dominar o movimento e dar-lhe forma. Talvez seja mais uma questão de buscar estar em casa aqui, no único momento e contexto que temos... (CHAMBERS, 1990 apud HALL, 2003, p. 27). Mesmo que Lessa, ao criar suas canções, não tivesse tal consciência, sua obra parece reconhecer a impossibilidade de volta sensível ao lugar cantado. Cantar, então, é sua posição, sua localização. A canção é o seu momento e o seu contexto. É sua casa imaginada e concreta. Essa casa ideal só se torna perceptível pelo movimento da linguagem (das linguagens), da voz ou das vozes que a situam ou projetam. Voz essa que tanto pode ser do autor, do cantautor, do cantor ou daquele que, mesmo em silêncio, a reproduz: a voz empírica que pontua a subjetividade da enunciação. "As emoções suscitadas pelo poeta não pertencem a um passado remoto. Estão aqui vivas e imediatas" (CASSIRER, 1994, p. 241). Quem ouve uma canção, lê um texto, contempla uma obra de arte ou um objeto qualquer da realidade, ainda que de forma silenciosa, estabelece com o objeto contemplado uma relação de contraste e de resposta contínua pertencente à natureza da enunciação. Somos tocados pelo que nos cerca, e esse toque nos posiciona diante das coisas. Está aí a evidência de que as pessoas que compõem o ato enunciativo estabelecem entre si um vínculo inarredável. Evidentemente, a teoria da enunciação tem sua aplicação voltada para os fenômenos linguísticos, e o gênero canção, uma vez que provoca uma ampliação dos campos de linguagem, necessita de outras referências teóricas para o procedimento de análises mais consistentes. Posteriormente trarei à reflexão deste trabalho alguns pressupostos linguísticos formulados por Émile Benveniste, bem como considerarei algumas contribuições de Mikhail Bakhtin e de Ernst Cassirer acerca da filosofia da linguagem. As teorias enunciativas, apesar de suas eloquências de investigação e método, também deixam sempre portas abertas para novas investidas. Essa é a natureza da construção do conhecimento: haverá sempre possibilidade de colocação de mais um tijolo na edificação. Pode-se afirmar, ainda, que é pelo ato enunciativo que se constrói o homem que, permeado por suas inquietações interiores, condiciona-se em sua posição social, portanto, ideológica. Sendo assim, pode-se investigar o papel da canção popular de inspiração rural na construção arquetípica do gaúcho considerando-se as questões sociais e ideológicas aí imbricadas, assim como refletir sobre a subjetividade que orienta o gênero canção, bem como as implicações perceptíveis nas aproximações e nos distanciamentos entre os suportes de natureza linguística

11 e aqueles de natureza musical que interagem no gênero canção popular. É justamente nessas proximidades e distâncias que pretendo verificar o quanto é possível perceber um processo de construção (ou desconstrução) de uma identidade cultural relevante. Será que esta canção popular, que pretende remeter a uma condição original de uma dada cultura, pode afirmar-se internamente em suas inquietações e em seus motivos, ou tais aferições apenas sejam possíveis pelo que se pode observar externamente? Até que ponto são nítidas essas implicações e imbricações das linguagens envolvidas no gênero neste processo de identificação? Cabe ainda salientar que, em função da natureza do objeto, a canção popular regional, ou seja, sua recente posição histórica, talvez não haja suficiente distanciamento temporal para que se proceda a uma análise crítica isenta de impressões pessoalizantes 1. Devemos, pois, "ultrapassar, por imposição de métodos, as ressonâncias sentimentais com que, menos ou mais ricamente quer essa riqueza esteja em nós, quer no poema (ou na canção), recebemos a obra de arte (BACHELARD, 2000, p. 7). Junte-se a isso a incipiente investigação sobre o tema empreendida até hoje, o que acarreta dificuldade de recortar-se um referente teórico que encerre maior especificidade. Neste ponto é cabe explicitar que, em função desse meu envolvimento com o cenário da música regional, deixo de centrar-me num suporte teórico específico. Nos processos de construção do conhecimento, ou de leitura e interpretação, pode-se criar um deslocamento do par teoria e prática para o par experiência e sentido. Esta é uma posição defendida pelo educador Jorge Larrosa Bondía (2002) no artigo Notas sobre a experiência e o saber de experiência. O autor reflete: A experiência, a possibilidade de que algo nos aconteça ou nos toque, requer um gesto ininterrupto, um gesto que é quase impossível nos tempos que correm: requer parar para pensar, parar para olhar, parar para escutar, pensar mais devagar, olhar mais devagar, parar para sentir, [...] suspender a opinião, suspender o juízo, suspender a vontade, suspender o automatismo da ação, cultivar a atenção e a delicadeza. Chamo neste momento a atenção sobre a questão da experiência principalmente porque e adiante desenvolverei reflexão sobre a velocidade dos acontecimentos que nos envolvem no mundo contemporâneo e sua repercussão na qualidade da audição musical é na minha trajetória como compositor de canções de temática regional e de participante ativo do 1 Ainda que seja difícil, em função do meu envolvimento visceral com a criação de canções de perfil estético análogo àquelas que comporão esta análise, devo estar atento para não me desviar por caminhos um tanto domésticos que pouca ou nenhuma contribuição terão para oferecer.

12 movimento dos festivais nativistas desde o início dos anos oitenta que, possivelmente, eu encontre subsídios que talvez possam suprir a lacuna gerada pela dificuldade de abordar o nosso objeto pelo crivo estrito do par científico teoria e prática. O conhecimento que me foi possível construir, através de experiência e da devida atenção com que me defrontei com os fatos, talvez se constitua em uma base aceitável sobre a qual possam ser apoiadas as considerações aqui desenvolvidas. Aquilo que Larrosa apregoa como "o saber de experiência, que se dá na relação entre o conhecimento e a vida humana (2002, p. 26). A obra em foco já ultrapassou um cinquentenário desde a composição de sua primeira canção (1946), a valsa "Quero-quero", gravada ainda em 78 rotações no ano de 1956. A presente investigação irá incidir justamente sobre o período em que foram efetuadas as primeiras gravações das canções do compositor. Para tais audições, além de alguns elepês dispersos, devo centrar-me no CD Barbosa Lessa 50 anos de música lançado no ano de 2001. Constam dessa edição vinte e seis faixas entre canções de sua autoria e danças folclóricas por ele recolhidas. A totalidade de sua obra conta com cinquenta e duas canções gravadas desde 1953. Para o presente estudo, foram selecionadas as seguintes: "Negrinho do Pastoreio", "Quero-quero", "Entrevero no jacá", "Carreteiro", "Feitiço Índio" e "Quando sopra o Minuano". A partir da audição dessas primeiras gravações, pretendemos efetivar algumas comparações entre características composicionais e interpretativas que foram se plasmando ou se perdendo daqueles primeiros momentos até a atualidade. No transcorrer do trabalho se fará necessário detectar elementos constituintes das linguagens musical e literária que compõem a obra. Tais elementos, para um breve exemplo, podem ser, na linguagem musical, o universo tonal, os coloridos timbrísticos, as nuanças interpretativas, a instrumentação, as cadências rítmicas; na linguagem literária, o metro, a rima, as figuras de linguagem, o ritmo. Tudo isso mediado pelas questões enunciativas, sociais, culturais e ideológicas imbricadas no gênero canção popular. Feita essa análise, parece necessário também proferir uma aproximação entre este momento de criação e a atualidade da produção cancionista de perfil regional no Rio Grande do Sul, fazendo, na medida do possível, uma averiguação que contemple a linha cronológica que perpassa este ciclo evolutivo. Assim sendo, parece-me possível percorrer um traçado que dê conta, ainda que minimamente, do processo de construção (ou desconstrução) identitária do gaúcho. Posso, contudo, dizer algo sobre minha experiência como compositor e como participante do movimento dos festivais nativistas desde o final da década de setenta. Foi nos

13 meados daqueles setenta que seriam dez (parodiando uma canção da época) 2, que tive o primeiro contato com o universo cancionista que se inspirava num ambiente regional bem identificado. Claro que já ouvira algo desse regionalismo na voz de alguns como Teixeirinha ou José Mendes, mas tudo tão de passagem aos meus ouvidos adolescentes que pouca importância atribuí ou atenção dediquei àquelas sonoridades. Estava mais interessado na chamada MPB, com suas icônicas referências a Chico Buarque de Holanda e Caetano Veloso. Contudo, ao escutar as primeiras canções advindas da Califórnia da Canção Nativa de Uruguaiana, surpreendi-me interessado com aquilo que aos meus ouvidos soava como pura novidade. E por aí enveredei, como atento apreciador dessa estética musical que se debruçava sobre um paisagismo rural que desde a infância me era familiar. Passaram-se alguns anos até que, em 1980, lá estava eu de violão em punho no palco do Cine Pampa em Uruguaiana participando da décima edição do festival. Recordo cada átimo daquele mergulho inaugural: as canções, as pessoas uns já reconhecidos, e outros tão neófitos quanto eu a entrada do teatro, os camarins improvisados que davam para o pátio da prefeitura. Mas, de tudo mesmo que daquela experiência ficou, dois fatos com certeza foram marcantes e talvez decisivos para a minha trajetória: a apresentação inesquecível do bardo argentino Atahualpa Yupanqui e a então nascente dicotomia entre um regionalismo conservador e um nativismo de vanguarda. 3 Tal dicotomia cruzou os anos 80 e chegou vigorosa aos 90. Os festivais nativistas haviam proliferado. Chegaram a mais de sessenta por ano em praticamente todas as cidades importantes do estado. Neste momento permito-me abrir parênteses nesta condução do texto para dizer algo sobre um autor que também marcou sensivelmente minha impressão a respeito do regionalismo acerca do qual agora empreendo esta análise: o missioneiro Noel Guarany. Foi lá pela metade dos anos setenta que ouvi pela primeira vez a música de Noel Guarany. Tantos anos passados, recordo (ou imagino) tenha sido numa tarde mormacenta de 2 Alusão à canção "Os setenta que serão dez", gravada pelo grupo Utopia liderado pelo hoje consagrado Bebeto Alves. 3 Nos anos 80, houve um despertar da atenção da juventude urbana pela música de inspiração regional. Uma das referências dessa nova onda foi sem dúvida a dupla dos irmãos Ramil, Kleiton e Kledir. A gurizada misturava bombacha com tênis no cotidiano e, aos domingos, se reunia para um bom chimarrão nas praças e nos parques das cidades. Naturalmente, esse comportamento desagradou alguns setores do tradicionalismo mais ortodoxo. Em Porto Alegre, o ponto principal desses encontros era o Parque da Redenção. Casas noturnas especializadas em apresentações dessa nova música eram inauguradas em número significativo. Do contato dos músicos urbanos com aquele regionalismo tradicional surgiu então um movimento que se convencionou chamar de nativismo de vanguarda, no qual havia uma mistura das mais variadas influências musicais em oposição à música até então representada pelos artistas mais tradicionais nesta forma de expressão como Teixeirinha, Irmãos Bertussi e seus seguidores. Até mesmo o gentílico gaúcho foi alvo dessa dicotomia. Os inovadores eram designados como riograndenses, como se isso fosse menor, e os conservadores, esses sim, seriam os verdadeiros gaúchos, e isso era uma conferência de valor preponderante.

14 domingo, junto a um balcão de bolicho onde se reunia uma gauchada para um jogo de bochas e uma gurizada estudante em férias de verão. De uma pequena vitrola portátil saiam canções que falavam de uma paisagem geográfica e humana, que desde então me encantam. Essas canções, contudo, diluíam-se no meio do burburinho dos jogadores, dos estampidos das bochas arremetidas umas contra as outras e das conversas adolescentes que se desfiavam com descompromisso. No meio dessa confusão de sons na tarde interiorana, chama-me a atenção uma voz vinda da vitrola meio rouca. Afasto-me da roda de amigos e me aproximo do balcão para melhor ouvir aquela canção: "hoje é domingo, encilhei meu estradeiro, já botei água de cheiro, não me falta quaje nada" São os versos iniciais da canção "Destino de Peão" que está no LP Destino Missioneiro de Noel Guarany lançado em 1973. Para mim aquele momento foi revelador de uma estética com cheiro de novidade. Apesar dos verdes anos, nosso grupo (como tantos à época) era apreciador da chamada música popular brasileira. A canção do Noel era feita de um tecido sonoro em tudo diferente do que eu estava habituado a ouvir. Não demorou muito para que o menestrel missioneiro se tornasse uma referência e fosse arrebanhando multidões de apreciadores de seu canto por onde passasse. A formatação banquinho e violão eram a mesma da bossa nova, mas o som era outro. Era pontiagudo, desafiador em sua singeleza e singularidade. A voz fronteiriça parecia ter saído das páginas de Hernandez. Parecia que Isidoro Cruz e Martin Fierro haviam amalgamado suas vozes dentro do pampa riograndense, passando a cantar pela boca daquele filho da Bossoroca, nascido Noel Borges do Canto Fabrício da Silva em 26 de dezembro de 1941 e falecido Noel Guarany em 06 de outubro de 1998. O Brasil vivia os efeitos do regime de exceção e a censura oficial se fazia sentir catalogando aquilo que se podia e não se podia ouvir. Noel, como Fierro, sempre cantou opinando e foi como arauto de uma cultura que ele pretendia defender que se tornou ídolo da juventude universitária em sua desassombrada ânsia de liberdade. Guarany imortaliza a canção "Potro sem Dono", de autoria de Paulo Portela Fagundes, tornando-a um hino à rebeldia. Através do gênero payada, cujo mestre entre nós é sem dúvida o também missioneiro Jayme Caetano Braun, Noel vai desvelando suas impressões sobre o mundo, sobre a América Latina, sobre sua concepção de pátria e seu irrestrito respeito à natureza. Do seu encontro com Don Jayme resulta um dos mais significativos registros daquilo que hoje se convenciona chamar de música missioneira: o LP Payador, Pampa e Guitarra, lançado em 1976 que conta com a participação de um dos ícones do folclore argentino: o virtuoso acordeonista Raulito Barboza.

15 Em uma de suas canções, Noel pede licença que vai cantar um missioneiro com manhas de literato e tino de bom campeiro. Com tais manhas e tino, visita a obra de um dos maiores poetas gaúchos e lança em 1978 o LP Noel Guarany canta Aureliano de Figueiredo Pinto uma das marcantes e definitivas contribuições para a música brasileira. Sim, porque apesar de sua marca eminente e propositalmente regional, ele conquistou a admiração em todo o país. O produtor Marcus Pereira disse certa feita: "Noel Guarany é um dos maiores cantores, compositores e guitarristas deste país. Lá no pago dele [...] adoça suas canções com o mate amargo, hábito do pampa, que também é brasileiro". Ainda que com maior recorrência Noel seja lembrado por sua rebeldia, por sua irreprimível ânsia de liberdade e pela ousadia de um cantar que não se curvava a imposições, creio que o seu lirismo seja tão ou mais contundente dentro de sua obra. Nunca mais me saíram da cabeça os versos, a voz e o violão daquele "Destino de Peão" que ouvi recostado num balcão de bolicho de uma perdida tarde de domingo. Ainda ouço... Um violão ponteia notas limpas, translúcidas como cristais filtrando o tempo. Prepara com arpejos de harpa guarani o cenário sobre o qual o peão, que trabalhou um mês inteiro solito num fundão, vai dizer do seu amor. Como Simões inventa Blau, Noel inventa o peão. Reconhece-lhe até a singularidade linguística e não esconde os quaje, os ansim, os inté... a maneira como um homem rude que vê o mundo desde o seu rincão e sonha em viver melhor junto da prenda que ama para agradecer a Deus por seu destino. Canta um homem que sabe da lida bruta com potros e aramados, mas que guarda delicadezas para as horas de precisão. E ficou-me o Noel Guarany: vigoroso, rude, rebelde e lírico. Barbosa Lessa, na apresentação do LP Destino Missioneiro, escreveu: "quando lhe mostrei uma cantiga minha que fala de um gaúcho moço que quer ir para a cidade a fim de 'deixar de ser bagual', Noel Guarany me confidenciou num tom de voz profundo e com impressionante sinceridade: " Dom Lessa, eu acho muito mais importante continuar sendo bagual..." E continuou. E ainda é. O menestrel missioneiro Noel Guarany bagual e lírico. Em meados dos anos 80, tendo ao centro a figura do escritor e poeta Luiz Sérgio Metz (Sérgio Jacaré), fundamos o grupo Tambo do Bando, que misturava tudo aquilo que eu havia visto e ouvido. Se Noel era bagual e lírico, nossa música era gaudéria 4 e povoeira 5. Por 4 Segundo o historiador argentino Ricardo Rodriguez Molas, em seu livro Historia social del gaucho, antes de haver-se fixado a designação gaúcho, já havia registros chamando gaudério alguns habitantes do pampa sulamericano por volta de 1750. 5 Adjetivações comuns à época que tentavam opor as duas manifestações estéticas em curso: uma proveniente do universo rural e outra da realidade caótica urbana.

16 esta proposição em unir os dois pólos antagônicos, fomos aclamados como redentores e execrados como traidores. O Tambo duraria cerca de dez anos pendulando entre a adoração e o detrato. Hoje, talvez, com a poeira baixada e as ansiedades postas a bom termo, já haja espaço para uma compreensão menos arfante daqueles ferventes episódios, mas isso talvez mereça um outro espaço de estudo. O certo é que além da minha produção como compositor, além das minhas participações como intérprete das minhas canções e das canções de tantos, devem ter sobrado as interrogações que ora faço no sentido de compreender, dentro do que seja possível, a natureza motivadora desses acontecimentos que pude presenciar ou dentro das histórias que pude conhecer. Umas narradas por seus protagonistas, e outras através das pesquisas e do interesse pelo objeto alvo desta investigação. Muito teria a relatar, por certo, destes momentos todos, mas devo, a bem do desenrolar do trabalho, esquivar-me dessas memórias e seguir a elaboração da tarefa determinada.

17 2. CONSIDERAÇÕES SOBRE A PALAVRA POÉTICA A consciência teórica, prática e estética, o mundo da linguagem e do conhecimento, da arte, do direito, e o da moral, as formas fundamentais da comunidade e do estado, todas elas se encontram originariamente ligadas à consciência mítico-religiosa. (CASSIRER, 2006, p. 64) Para dar conta de explicar e compreender os acontecimentos do mundo, o homem primitivo constrói respostas de natureza mítica para suas perguntas de ordem concreta ou abstrata. Pode daí ser depreendido que nesta fase de desenvolvimento a linguagem é tocada de forma decisiva pelo pensamento primitivo. E, sendo assim, a um mesmo tempo, é condicionada por ele e o condiciona. Há um enlace inaugural que possibilita especular-se acerca de uma matriz primitiva que instaure os mundos mítico e linguístico. Ernst Cassirer, citando Max Muller, afirma que "a mitologia é inevitável, é uma necessidade inerente à linguagem, se reconhecemos nesta a forma externa do pensamento"(muller apud CASSIRER, 2006, p. 19). Podemos, apressadamente, entender que tais temas que envolvem concepções não propostas pela racionalidade própria do mundo da ciência, à qual o senso comum atribui o peso da responsabilidade de ser a ferramenta humana para encontrar a verdade, estão um tanto distanciados da nossa realidade neste limiar de terceiro milênio. Basta porém dedicarmos um olhar que ultrapasse minimamente uma atitude contemplativa e talvez distraída, para que nos demos conta de que resquícios indeléveis perduram até hoje desta imbricação original da linguagem e do mito. Ainda citando Max Muller, Cassirer remata um ponto em sua costura reflexiva afirmando que "mitologia, no mais elevado sentido da palavra, significa o poder que a linguagem exerce sobre o pensamento". (MULLER apud CASSIRER, 2006, p. 19) Ora, se a linguagem projeta-se sobre o pensamento em um exercício de potência, e se, naturalmente, a linguagem é o elemento que constitui o homem em sua inteireza e diferenciação, e sendo, por sua vez, o pensamento a atividade orgânica que nos fundamenta, parece haver possibilidade afirmativa suficiente na compreensão de que os mitos não são algo perdido num tempo imemorial da humanidade, mas que estão ainda presentes no cotidiano da nossa contemporaneidade. "Sonho religioso, miragem filosófica, ideação literária desgovernada? Não faz mal. Os povos, como os indivíduos, não dispensam os mitos. (CESAR, 1977 apud HERNANDEZ, 1980 p. 18).

18 Por essa ligação primordial entre mito e linguagem, o homem empreende sua fantástica jornada através da qual se empenha em, progressivamente, constituir suas apreensões universais. É a capacidade simbólica da palavra que permite a referenciação das coisas, a nominação dos seres e a inter-relação que se estabelece entre o homem e suas vicissitudes naturais ou não. Palavra é signo. Se recorrermos ao léxico, podemos substituir tal predicativo por sinal reminiscente, indício, marca, símbolo, elemento de projeção ou importância, expoente, luminar. Etimologicamente encontramos em sua derivação latina signum,i a correspondência a sinal, marca distintiva, assinatura. Contudo, existe sempre a tentação de que sejam perscrutadas as fronteiras iniciais, os primeiros tempos, os alvoreceres dos acontecimentos, para que, como se fosse possível, se intentasse, de forma talvez jornalística, apanhar o primitivo ancestral com a palavra primordial prestes a escorrer-lhe da boca e vazar para a eternidade. Rousseau, em seu Ensaio sobre a Origem das Línguas (1978, p. 164), faz-se a pergunta (e responde com estilo): Onde, pois, estará essa origem? Nas necessidades morais, nas paixões. Todas as paixões aproximam os homens, que a necessidade de procurar viver força a separarem-se. Não é a fome ou a sede, mas o amor, o ódio, a piedade, a cólera, que lhes arrancaram as primeiras vozes. Os frutos não fogem de nossas mãos, é possível nutrir-se com eles sem falar; acossa-se em silêncio a presa que se quer comer; mas para emocionar um jovem coração, para repelir um agressor injusto, a natureza impõe sinais, gritos e queixumes. Eis as mais antigas palavras inventadas, eis porque as primeiras línguas foram cantantes e apaixonadas antes de serem simples e metódicas. No capítulo sétimo do livro Marxismo e Filosofia da Linguagem (BAKHTIN, 2006) há um flerte com Cassirer em sua referência ao homem pré-histórico que faz uso de uma mesma palavra para designar várias manifestações. O texto remete a Nicolau Marr 6 É suficiente dizer que a paleontologia linguística contemporânea nos dá a possibilidade de aceder, graças às suas investigações, às épocas que as tribos só tinham à sua disposição uma única palavra para cobrir todas as significações de que a humanidade tinha consciência. Partindo de tal asserção, pode-se inferir que o aspecto sonoro da palavra detém fundamental importância para a construção dos significados, pois podemos especular sobre as variantes entoativas que talvez contribuíssem para a construção das múltiplas possibilidades semânticas do vocábulo original. Tendo como parâmetro o texto fundamental da religiosidade 6 Linguista russo.

19 cristã, constatamos que é pela linguagem, pela potência da palavra que Deus empreende sua inigualável criação. Foi a expressão material da palavra, sua onipotente sonoridade, que deflagrou o construto divino. Rousseau já havia nos alertado para as origens musicais das línguas. Desta forma, sendo a palavra o instrumento pelo qual se engendrou o mundo sensível, impõe-se uma interrogação: o mundo primitivo explica pelo mito suas circunstâncias inerentes, porém se Deus disse faça-se e tudo surgiu, a palavra deflagrou a realidade. Contudo, o real definido por Kant e referenciado por Cassirer indica a necessidade de uma elaboração racional da percepção, mediada por leis gerais e ordenada por um contexto de experiência para que se promova a conceituação do fenômeno realidade. O mundo da ciência é concebido e se desenvolve com uma atitude densamente racionalista. O poder da razão e a potência simbólica: tal é a encruzilhada que acossa esta reflexão. A questão deve ser avaliada levando-se em consideração que neste momento primordial não há experiência anterior nem para a palavra e muito menos para o mito. Retornamos, pois, àquela imbricação original entre ambos. Um espaço-tempo em que a linguagem pela qual a concepção mítica é revelada mistura-se incondicionalmente com sua revelação. Deparamo-nos com a circunstância mágica da palavra. Tendo presentes as reflexões encontradas no livro Linguagem e Mito, notamos um aponte para a existência de uma só matriz para ambas as manifestações. Essa terra-mãe é a metáfora. E entenda-se aqui não a figura retórica (e racional) que promove analogias entre coisas e eventos e que migra a semanticidade em suas incidências, senão como um estado inaugural no qual a manifestação do nome da coisa é a coisa em si. Portanto, não se trata aqui de uma parte da linguagem nem de uma função por ela exercida. Novamente Cassirer cita Max Muller: "O homem, quisesse ou não, foi forçado a falar metaforicamente, e isto não porque não lhe fosse possível frear sua fantasia poética, mas antes para dar expressão adequada às necessidades sempre crescentes de seu espírito" (MULLER apud CASSIRER, 2006, p. 103). A circunstância mágica da palavra, o mistério da palavra, esta inesgotável capacidade de dizer, de apontar, de situar e ao mesmo tempo sonegar, esconder, pluralizar os significados essa é a situação diante da qual emergimos e naufragamos diariamente. Daquela língua inaugural recém referida, na qual a palavra única dava conta de todas as expressões, passamos a uma multiplicidade vocabular praticamente infindável. Digo infindável porque a sofisticação atingida pelo desenvolvimento das línguas e das linguagens parece ter empurrado as fronteiras da palavra para um território além, sempre mais além.

20 É isso que ocorre quando as duas linguagens em foco se tocam. Tanto a palavra quanto a nota musical são ampliadas em suas dimensões semânticas. Evidentemente, se podemos falar em uma semântica musical no universo da canção popular, devemos a essa troca que se realiza dentro do gênero, no qual letra e melodia imbricam-se de forma inexorável. Sendo assim, por seu praticamente inesgotável peso semântico, a palavra tende a exercer certo domínio sobre a nota musical. Tentaremos, dentro do possível, relativizar esse domínio e perscrutar se realmente ocorre alguma dominação ou se o que existe é um perfeito equilíbrio entre essas duas linguagens de naturezas distintas que se fundem. A prédica rousseauniana afirma a natureza musical das línguas "desse modo, os versos, os cantos e a palavra têm origem comum" (ROUSSEAU, 1978, p. 186).