daniel sampaio Labirinto de Mágoas As crises do casamento e como enfrentá-las Colaboração de Pedro Frazão
Índice 1. Introdução... 9 2. Os dilemas do casal de hoje... 21 3. Padrões de comunicação nos casais... 37 4. Casamentos felizes?... 63 5. O passado dos casais... 91 6. Sexualidade no casamento... 105 7. Contingências... 121 7.1 O divórcio... 124 Quando e como dizer aos filhos... 136 O divórcio e o tribunal... 140 O divórcio e a mediação familiar... 148 7.2 Violência no casamento... 151 8. No que diz respeito ao amor, andamos todos às escuras. Reflexões em torno da conjugalidade gay e lésbica por Pedro Frazão... 171 Introdução... 175 1. Breve história da homossexualidade... 178 2. A homossexualidade em terras lusas... 184 3. Os casais de gays e lésbicas: que realidades?... 190 4. Miguel e João... 201 5. António e Henrique... 205 6. Lara e Cristina... 208 7. Vânia e Mariana... 212 8. Palavras finais... 216 9. Manifesto contra o labirinto de mágoas... 219 Referências... 229
1 Introdução
Depois de trinta anos a ouvir casais resolvi escrever este livro. Nos anos oitenta, completada a minha formação em terapia familiar e conjugal, pensava que uma intervenção terapêutica aprofundada seria a solução para as dificuldades de muitos homens e mulheres que requeriam ajuda profissional. Em Portugal, a terapia familiar sistémica dava os primeiros passos. A Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar, que fundei em 1979 com alguns colegas, organizava em 1982 o primeiro curso de terapia familiar. As nossas intervenções em congressos eram escutadas com interesse e alguma desconfiança. Eram compreensíveis posições de algum fanatismo, veiculadas pelo nosso grupo, porque um novo paradigma só se impõe com grande convicção. A verdade é que vigor não nos faltava e, com a colaboração de muitos colegas estrangeiros e o apoio de alguns nacionais, fizemos o nosso caminho: hoje a Sociedade Portuguesa de Terapia Familiar tem muitos sócios e centenas de técnicos de diversos setores foram treinados na perspetiva sistémica. 11
Daniel Sampaio Nos anos oitenta, eu tinha sempre presente um modelo de família saudável, para o qual o bom entendimento conjugal seria essencial. A conceção estrutural da família, herdeira dos trabalhos de Salvador Minuchin 1, impunha uma visão dos conjuntos familiares na qual o casal de progenitores, numa relação de entreajuda, deveria traçar uma fronteira permeável entre filhos e pais. Desenhávamos o mapa familiar, em que os pais ocupavam o andar superior e os filhos preenchiam o inferior. As disfunções familiares eram interpretadas como desvios em relação a essa arquitetura estrutural e o trabalho terapêutico visava corrigir esse afastamento através da reestruturação. Muitos dos sintomas presentes nos filhos eram concetualizados como resultantes de dificuldades relacionais dos pais, não sendo raro o recurso a terapias conjugais para resolver questões dos mais novos. Deste modo, a conceção dominante do casal era normativa e os divórcios que em Portugal começavam a aumentar eram vistos quase sempre como sinónimo de «patologia da relação conjugal». A prática futura da terapia familiar mostraria que se tratava de uma conceção redutora. A heterogeneidade familiar, os diferentes modelos de casamento e união de facto, as mudanças sociais e o novo papel da mulher, são apenas alguns exemplos que levaram a uma mudança radical das intervenções em terapia familiar. Hoje, algum fanatismo de há três décadas é substituído pela conceção de que a intervenção com casais e famílias se deve organizar num contexto de partilha. O terapeuta faz parte do sistema terapêutico e intervém como potenciador de alternativas, nunca como alguém detentor de uma «verdade» (casal fun- 12
Labirinto de Mágoas cional, família perfeita) que seria necessária para o bem - -estar de um conjunto familiar. Deste modo, não fazemos mapas familiares nem prescrições sistémicas com o objetivo de reestruturar, porque admitimos que o casal e a família podem adquirir novos equilíbrios a partir do encontro terapêutico. Novas conceções do mundo e da vida em família influenciaram a prática da terapia familiar e conjugal: sem perder a perspetiva sistémica, os terapeutas de hoje abandonaram alguns preconceitos e estão agora mais aptos a mobilizar as mudanças. Em Portugal, os padrões de vida em casal e em família sofreram muitas alterações na segunda metade do século passado, sobretudo depois do 25 de Abril de 1974 2. A partir desse momento histórico, as mulheres conquistaram o direito à igualdade, sem terem de estar sujeitas à figura masculina, como era habitual durante o Estado Novo. Os mais velhos de nós ainda recordam o papel de «fada do lar» que o regime lhes impunha, bem como as críticas a algum comportamento sexual mais ousado, só aceitável para os homens. Nas décadas de 50 e 60, o casamento era, para a maioria dos jovens desse tempo, um ritual de passagem marcado por uma cerimónia católica: os poucos que só recorriam ao casamento civil eram, com frequência, criticados ou mesmo acusados de viverem em concubinato. Depois do casamento, estava reservado ao homem o papel de providenciador de sustento, enquanto para a mulher se destinava a função de educadora e cuidadora da casa. Em lenta evolução desde o final da década de sessenta, em aceleração rápida depois do 25 de Abril, o casamento 13
Daniel Sampaio sofreu marcada alteração, passando a configurar um contrato civil. Hoje casa-se menos e mais tarde, não sendo raros os compromissos na terceira época da vida. Aumentam as uniões de facto e os filhos fora do casamento, num contexto social em que o divórcio se tornou muito frequente. Ferreira e Aboim 3 relacionam o aumento da coabitação com filhos não só com a perda do vínculo institucional entre os cônjuges como também com o acréscimo da autonomia individual (sobretudo das mulheres) e, em consequência, de formas modernas de organização familiar. A expansão recente do fenómeno de coabitação estaria relacionada com dois pares de dissociações: por um lado, entre conjugalidade e casamento, por outro, entre parentalidade e conjugalidade, com o casamento a deixar de ser o único meio legítimo de acesso à conjugalidade ou à parentalidade. Segundo os autores citados 3, «os nascimentos fora do casamento seriam assim cúmplices da instabilidade e da dissolubilidade que se apoderou das atuais formas conjugais e familiares» e o seu número já é significativo: segundo informam Ferreira e Aboim 3, baseando-se nas estatísticas do Instituto Nacional Estatistica de 2000, o registo de nascimentos segundo o «estado conjugal» da parentalidade é codificado segundo três categorias: dentro do casamento, fora do casamento com coabitação e sem coabitação, a que correspondem respetivamente os valores de 77,8%, 16,8% e 5,4%, números que por certo sofrerão alteração com os dados do Censo de 2011, com aumento provável dos dois últimos (dados recentes indicam que 40% dos bebés nascidos em 2010 são filhos de pais não casados mas que vivem juntos). 14
Labirinto de Mágoas Em 1950 95% dos casamentos realizados ocorriam entre solteiros, enquanto em 2006 cerca de 21% se referiam a uniões pela segunda vez, na sua maioria de indivíduos divorciados 2. Em 2002 mais de 90% dos portugueses atribuía a ambos os cônjuges a responsabilidade de sustento da família, sendo agora evidente a maior partilha das tarefas educativas e domésticas. O casamento modificou-se, mas a sua importância não diminuiu. É o seu significado social e individual que se alterou. Neste livro procuro entender essa mudança, na busca de uma perspetiva de trabalho terapêutico que possa minorar as dificuldades das diversas gerações de muitas famílias, imersas na crise conjugal. A visão rígida dos padrões do casamento que vigorava no Portugal da ditadura desembocou numa pluralidade de estilos de vida conjugal no Portugal democrático: entender essa evolução é essencial para a compreensão dos problemas das uniões conjugais de hoje. Embora entre nós se verifique uma valorização do casamento monogâmico, 16,9% dos homens e 7,1% das mulheres a viver em casal há mais de cinco anos tiveram pelo menos um parceiro extraconjugal 3. A fidelidade, contudo, permanece como um valor importante a preservar, porque se mantém intenso o desejo de viver a dois uma experiência de realização pessoal, quer a nível de projetos de vida quer no que diz respeito à satisfação erótica. Nesta perspetiva, pode falar-se de uma «romantização da união a dois» 4. Pouco valorizada no passado, a procura de satisfação sexual dos dois elementos do casal é um traço dominante 15
Daniel Sampaio nas conjugalidades contemporâneas. Foi na mulher que se notaram maiores modificações, porque outrora o seu papel estava muito confinado à procriação e à guarda dos filhos, sendo frequentes os homens que separavam as mulheres com quem tinham satisfação erótica daquelas a quem confiavam apenas um papel de «esposa/mãe». Em Portugal, depois dos anos sessenta e sobretudo depois do 25 de Abril, a componente erótica da vida do casal passou a ser muito valorizada, na sequência da passagem do casamento/instituição para o casamento por amor: casa-se hoje não por negócio ou conveniência, como no passado, mas porque se sente amor, com a esperança de que ele perdure; e o prazer a dois é considerado um vetor essencial para a manutenção da relação conjugal. Vemos hoje muitos casais que valorizam a componente sexual da sua relação, desde a intensidade erótica dos primeiros encontros à manutenção de um padrão de envolvimento sexualizado ao longo da vida. Uma das teses deste livro é, justamente, saber como essa proximidade erótica contribui decisivamente para o bem - -estar da relação conjugal. Fonte importante de prazer, a satisfação sexual é também origem de muitos problemas no relacionamento dos casais. São frequentes os pedidos de consulta por razões de não entendimento erótico, solicitações que seriam impensáveis na primeira metade do século passado. O medo e a ignorância da sexualidade, tão presentes nas mulheres de outrora, deram lugar à procura de satisfação erótica no namoro (por desaparecimento do ideal de virgindade que vigorou na primeira metade do século XX) e na conjugalidade. Esta mudança ameaça por vezes o «domínio» masculi- 16
Labirinto de Mágoas no, como já se verifica em muitos rapazes que pretendem iniciar a vida sexual. Atingimos assim um dos muitos paradoxos que caracterizam os casais modernos: procuram uma relação estável de afeto a dois, matizada por uma sexualidade satisfatória; mas a busca incessante do prazer individual, alimentada pelos permanentes estímulos publicitários, leva por vezes ao desconhecimento dos sentimentos, desejos e inquietações do companheiro/a no campo da sexualidade, abrindo terreno para a conflitualidade. Como escreve Sofia Aboim, «o amor tornou-se, acima de tudo, a gramática das conjugalidades contemporâneas» 2. O casamento já não define o casal, porque são frequentes as co-habitações pré-nupciais e aumentam as uniões de pessoas que têm uma relação estável, sem viver sempre sob o mesmo teto. Caminhamos para uma crescente concordância de diferentes modelos de vida conjugal, mas existe ainda um longo caminho a percorrer. A aceitação do casamento entre pessoas do mesmo sexo, depois de anos de luta da comunidade homossexual para legitimação dos seus direitos se o casal do mesmo sexo se ama, por que razão não poderá consagrar publicamente o seu amor? contribuiu em muitos países, entre os quais Portugal, para compreendermos a diversidade desses modelos. A compreensão das diferenças e o fim do padrão monolítico de entendimento das relações conjugais não fizeram cessar as dificuldades, porque novas questões emergiram. O individualismo e o narcisismo da vida dos nossos dias, as dificuldades de comunicação e as complexas relações com as famílias de origem, temas que desenvolveremos nestas 17
Daniel Sampaio páginas, são fatores que contribuem para a dificuldade de manutenção de uma relação estável, bem visível no facto de cerca de metade dos casamentos atuais, no nosso país, conduzirem ao divórcio. E se a relação conjugal se caracteriza agora por um contrato mais igualitário, a luta pela igualdade está longe de estar vencida. Em casa, mesmo com a evolução já conseguida, a maioria das tarefas domésticas, incluindo as relacionadas com o cuidar dos filhos, continua a depender das mulheres. No campo profissional, os homens ganham mais e contribuem, em regra, com mais dinheiro para a família, embora muitas vezes se esqueçam desse dado em situações de divórcio. O casal atual privatizou a sua relação, preservando a sua intimidade e tornando-se mais imune aos comentários alheios, quer sejam da família quer surjam da vizinhança. Embora a presente crise económica reponha a necessidade de, em muitos casos, os casais recentes permanecerem em casa de um dos pais, não há dúvida de que a ideia de uma família alargada em co-habitação não pertence ao imaginário das novas gerações. E, no entanto, outro paradoxo: educados em ambiente de alguma permissividade, muitos homens e mulheres na terceira década da vida fazem discursos de autonomia em relação aos pais, mas mantêm fortes laços de dependência emocional em relação aos progenitores, como se a diferenciação em relação à família de origem não tivesse ainda ocorrido. Esta imaturidade, muitas vezes a ocorrer num contexto de ajuda financeira por parte dos progenitores, é causa de conflitos no casal, entre si e com as famílias de ambos os cônjuges. Com o 18
Labirinto de Mágoas nascimento dos filhos e pese embora a decisiva importância da ajuda dos avós em muitos aspetos da vida quotidiana das famílias de hoje, não é raro que conflitos dos jovens pais com os seus progenitores ganhem demasiada relevância no quotidiano das novas famílias. A elevada taxa de divórcios dos nossos dias mudou por completo a realidade de muitas casas. São sobretudo os homens que voltam a casar, dando origem a famílias recompostas, onde muitas vezes coabitam, pelo menos em alguns dias por semana, os filhos dela, os dele e os filhos da nova relação. De notar que são sobretudo as mães que são responsáveis pela guarda dos filhos menores, um exemplo da desigualdade de responsabilidades no seio das famílias modernas. Embora de uma forma lenta, nota-se agora uma crescente aceitação da guarda partilhada, em que pai e mãe dividem as obrigações do poder parental. No entanto, esta modalidade de exercício de uma parentalidade conjunta só tem resultado nos casos em que o divórcio não deixou marcas inultrapassáveis em ambos os elementos do casal. Nesta introdução pretendi dar exemplos da complexidade da relação conjugal dos nossos dias. O casamento deveria ser um ponto de encontro onde convergissem especialistas de diversas áreas, com o objetivo de lançar luz sobre uma questão tão decisiva. Como psicoterapeuta, o meu olhar será sempre parcial e tudo o que se segue deverá ser encarado como ponto de partida de uma reflexão que julgo urgente. Este é um livro que pretende fazer pensar. Não é um livro de autoajuda, nem um manual para salvar um casamento em crise: ninguém aqui encontrará uma solução para os seus males de amor, nem uma receita mágica para ven- 19
Daniel Sampaio cer um conflito conjugal. Se são fornecidas algumas pistas concretas, o objetivo é fazer refletir 1. Como quase todos os problemas das relações amorosas residem em questões de comunicação, esta obra foca sobretudo a forma como os casais (entendidos aqui como duas pessoas numa relação amorosa que se pretende estável) se relacionam e comunicam entre si. Abordarei os problemas dos casais heterossexuais, que é a situação mais frequente e da qual possuo mais experiência. O Dr. Pedro Frazão, Mestre em Psicologia e com trabalho relevante na área, foi o especialista que convidei para escrever sobre as questões específicas dos casais do mesmo sexo. ( 1 ) Neste livro, a situação conjugal e o «casamento» são considerados em sentido amplo, englobando não só as situações conjugais «tradicionais», ou seja, coabitação e casamento, como também os relacionamentos que não envolvem uma vida conjunta, mas implicam uma relação regular de pelo menos seis meses. As questões relacionadas com os casais do mesmo sexo são tratadas por Pedro Frazão no capítulo 8 (pp. 171-216). 20