A vez da diversidade cultural no Congresso de História Hobsbawn disse que enquanto houver raça humana haverá história, o que seria uma generalização aceitável e segura. Podemos ampliar este pensamento dizendo que enquanto houver raça humana, haverá cultura e, consequentemente, haverá história. Diversa como a própria humanidade, a cultura é o campo sobre o qual brota a história. É preciso haver uma para que a outra viceje, indissociáveis que são. Assim, quando surge o tema da diversidade cultural em um evento como o Congresso de História do Grande ABC, o que se propõe, em primeiro lugar, é a reflexão sobre uma importante questão: qual o lugar da diversidade na história da nossa região? Mais especificamente, qual o lugar do índio, do migrante, da mulher, do negro e do homossexual na formação cultural dos sete municípios que compõem o Grande ABC? Existe um lugar? Qual o tamanho do espaço para que exerçam seus direitos sociais e culturais? De que modo é tratada a diversidade cultural nas políticas públicas, nos registros de memória da região, nos livros, nas pesquisas acadêmicas, jornais, revistas e nos fóruns de reflexão sobre a história? Que olhares temos sobre esses grupos? Ainda que os congressos anteriores tenham ousado tratar de assuntos diversos, amplos e específicos, todos sob a ótica do sujeito oprimido, subalternizado, nota-se, ao longo de seus 25 anos, um certo filtramento de questões relacionadas diretamente à diversidade cultural, embora ela possa ter orbitado na esfera de influência de outros temas. Eis porque a décima terceira edição se impõe como um desafio aos organizadores e participantes: colocaremos no centro do debate a importância das minorias políticas no desenvolvimento da região, o que é suficiente para provocar novas formas de olhar para a história ou até mesmo recontá-la sob uma nova perspectiva. A questão é: teremos capacidade de articular novos olhares? O Grande ABC, uma das regiões do país mais pujantes economicamente, cravada na Região Metropolitana de São Paulo, não pode
se furtar a esse debate. Seria uma injustiça histórica e estamos dispostos a encarar o desafio. Diversidade cultural e direitos humanos É muito comum ouvirmos que o Brasil é um país rico e diverso e ao mesmo tempo um país de imensa desigualdade. Chavões como esse nos dão uma certa noção de como é contraditória a nossa realidade e o quão complexa é a agenda social do país para as próximas décadas. Somos incapazes de ver a real face da desigualdade. Ela nos parece abstrata, um fenômeno natural, independente da ação do homem. No entanto, muito pelo contrário, a desigualdade é uma construção social de um país forjado na escravidão, no extermínio de povos indígenas, na subalternização da mulher, no patriarcalismo e na heteronormatividade. Reconhecer isso é um passo inicial para entendermos o que somos, o que queremos ser e o futuro que queremos viver. O processo de inclusão social pelo qual o país vem passando há pelo menos 20 anos, com um aprofundamento nos últimos 12, ao mesmo tempo que vence desafios históricos como aumentar a participação de grupos minoritários no processo político, no acesso à educação, saúde, emprego, bens materiais, redes de proteção social e no reconhecimento cultural, também expõe as dificuldades enfrentadas pelo Estado na superação da desigualdade social e da miséria. Os povos indígenas são um exemplo dessa dificuldade. Ao passo que 15 milhões de famílias e 50 milhões de pessoas foram beneficiadas pelas políticas sociais de redistribuição de renda do Governo Federal, o que sem dúvida é um progresso, os povos indígenas, afrodescendentes, comunidade LGBT e a mulher, ainda apresentam indicadores sociais preocupantes. Note-se que, desses 50 milhões de beneficiários, segundo o Ministério do Desenvolvimento Social, 73% são famílias pretas ou pardas e 68% são chefiadas por mulheres negras. Mesmo assim, com a ação indutora do Estado brasileiro, que retirou da miséria 36 milhões brasileiros, e com políticas sociais afirmativas adotadas nos últimos anos, o campo dos direitos ainda não
se expandiu o suficiente. É preciso fazer mais, haver uma abordagem mais profunda para desconstruir a lógica da exclusão sócio-econômica e cultural. Vivemos em um país onde as tradições, línguas e conhecimento indígenas estão sob ameaça de desaparecimento. As terras indígenas e os constantes conflitos com o setor agro-pecuário, com um saldo de morte desfavorável aos indígenas, também continuam a ocorrer com frequência. As eleições de 2014 fortaleceram a bancada ruralista e os povos indígenas seguem sem representação no Congresso Nacional. O primeiro mandato da presidenta Dilma Rousseff, por sua vez, teve um desempenho fraco na demarcação e reconhecimento de terras: O histórico de demarcações de terras indica que o tema é cada vez mais ignorado pelo Estado. Até o final de novembro de 2014 não houve nenhuma homologação de terra indígena no país. Em 2013, apenas uma terra foi homologada pela presidenta Dilma Rousseff. Durante os governos Lula a média foi de 10 por ano. (...) Tanto na perspectiva do ataque físico mesmo, de ações violentas, inclusive de ataques por jagunços, assassinatos, tentativas de despejos extrajudiciais. E também ataques no que diz respeito a tentativas de desconstruir direitos conquistados pelos povos. O uso de instrumentos legislativos nesse processo de ataque tem sido permanente. A influência da cultura africana na cultura e história do Brasil ainda é pouco discutida nas escolas, o que dificulta o entendimento do papel do negro na história do país. A construção da imagem do negro ou é a de servil, dócil e domesticado ou a do marginal, indolente, criminoso. Ainda assim, há pequenos avanços, mas insuficientes para resolverem o problema da discriminação racial no Brasil. Para Dennis de Oliveira, professor e ativista do Coletivo Anti-Racista Quilombação, mesmo os pequenos avanços geram incômodos dos grupos sociais conservadores: O avanço pequeno de negros e negras em determinados espaços que até então lhes eram negados, como a universidade, o parlamento, as instituições governamentais, entre outros e também a tipificação e denúncia de comportamentos racistas em todas as áreas gera incômodos
em grupos sociais acomodados com os seus privilégios raciais. Estas manifestações racistas impedem que direitos fundamentais, como o direito a ser votado, o direito a estudar, o direito de expressar sua religião, o direito a ter sua imagem preservada, a presunção da inocência, entre outros, sejam garantidos a negros e negras. Impõe-se, assim, um estado de sítio, uma negação dos direitos civis a negros e negras, um verdadeiro ataque à democracia. Para Luciano Martins Costa, a população negra sofre um genocídio dissimulado. Segundo o Ipea (4º Boletim de Análise Político-Institucional), 60 mil pessoas são assassinadas a cada ano no Brasil. Essas mortes são enviesadas fortemente pela cor/raça, o que faz do negro um sujeito discriminado duas vezes pela condição social e pela cor da pele: Os indicadores que fundamentam essas conclusões são o retrato de um dos aspectos mais cruéis da desigualdade social no Brasil e um argumento sólido e contundente em defesa das políticas sociais de compensação por questões étnicas. Além da discriminação pela cor da pele, demonstram que o ambiente público é extremamente perigoso para a juventude. Em primeiro lugar, observa-se que o risco de morte violenta se apresenta muito mais elevado para adolescentes e jovens do sexo masculino, independentemente da cor da pele ou da classe de renda e educação, do que para pessoas adultas. Ou seja: no período da vida em que mais se expõem à interação social é quando os jovens brasileiros estão sob maior risco de morte. No recorte por raça, um primeiro destaque estarrecedor: os brasileiros negros e pardos, sejam ricos ou pobres, seja homem ou mulher, têm quase oito vezes mais possibilidade de se tornar vítima de homicídio do que as pessoas não-negras. Para cada três vítimas de assassinato no Brasil, duas têm a pele escura. As mulheres, além da baixa participação na política, estão sujeitas diariamente a casos de assédio verbal, sexual e morte não apenas no Brasil, mas no mundo, o que levou a ONU a divulgar um estudo onde em cada 10 mulheres 7 sofrerão algum tipo de violência na vida. Apenas no dia 17 de dezembro de 2014, foi aprovado no Senado o Projeto de Lei que inclui o crime de feminicídio no Código Penal, impedindo que crimes
motivados por gênero sejam interpretados como passionais. A violência homofóbica é igualmente preocupante. De acordo com o Relatório sobre Violência Homofóbica (2012), o perfil das vítimas de violência homofóbica compreende 60% gays e 37% lésbicas, sendo que 71% são homens e 20% mulheres. De 2011 para 2012, o número de denúncias aumentou 166%; violações 46%; vítimas 183% e suspeitos 110%. Há, portanto, um grave quadro de violência homofóbica no Brasil. Uma violência que não é apenas física, mas também simbólica, pois nega, oprime e destrói psicologicamente o outro. A importância da diversidade cultural O mundo acordou para a importância da diversidade cultural há pouco tempo. Focada por décadas na preservação de patrimônios culturais monumentais, a Unesco foi publicar sua Declaração Universal Sobre a Diversidade Cultural apenas em 2001. Néstor García Canclini, já em 1995, apontava para o esgotamento dessa visão: Las políticas culturales de los Estados siguen centradas en la preservación de patrimonios monumentales y folclóricos, y en promover las artes cultas que están perdiendo espectadores (plástica, teatro, música clásica). Las acciones públicas respecto de las industrias electrónicas se redujeron al privatizar radios, canales de televisión y otros circuitos de difusión masiva, en los cuales se había intentado sostener casi siempre con poco éxito programas artísticos e informativos que representaran la diversidad cultural (CANCLINI, p. 155). Cerca de quatro anos depois, a Unesco realizou a Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais. Neste documento, ela entende que a diversidade cultural precisa ser protegida e promovida; que é preciso criar condições para que as culturas floresçam e interajam livremente; que é preciso criar diálogos entre as culturas visando a cultura da paz; que é preciso promover o respeito pela diversidade das expressões culturais e a conscientização de seu valor nos planos local, nacional e
internacional; que é preciso também reafirmar a importância do vínculo entre cultura e desenvolvimento. Cá estamos nós, um Município de apenas 120 mil habitantes, dando a nossa contribuição. O tema Tomando como referência o texto da Convenção Sobre a Proteção e Promoção da Diversidade das Expressões Culturais, ratificado pelo Brasil no Decreto Legislativo 486/2006, propomos para o o tema História, diversidade e identidade: o que nos une? E como desdobramentos, apontamos os seguintes tópicos: Diversidade Cultural, como multiplicidade de formas pelas quais as culturas dos grupos e sociedades encontram sua expressão. Identidade Cultural, como um conjunto vivo de relações sociais e patrimônios simbólicos historicamente compartilhados que estabelece a comunhão de determinados valores entre os membros de uma sociedade. Integração Regional enquanto processo caracterizado pela cooperação entre o conjunto de entes envolvidos visando a articulação do planejamento e desenvolvimento regional nas áreas econômicas e sociais. Expressões Culturais, enquanto expressões que resultam da criatividade de indivíduos, grupos e sociedades e que possuem conteúdo cultural. Direitos Culturais, enquanto direito à identidade e à diversidade cultural (ou direito ao patrimônio cultural), à livre criação, ao livre acesso, à livre difusão, à livre participação nas decisões de política cultural, direito autoral e direito ao intercâmbio cultural (nacional e internacional). Políticas Culturais, enquanto ações relacionadas à cultura, seja no plano local, regional, nacional ou internacional, que tenham como foco a cultura como tal, ou cuja finalidade seja exercer efeito direto sobre as expressões
culturais de indivíduos, grupos ou sociedades, incluindo a criação, produção, difusão e distribuição de atividades, bens e serviços culturais, e o acesso aos mesmos. Proteção, enquanto adoção de medidas que visem à preservação, salvaguarda e valorização da diversidade das expressões culturais. Interculturalidade enquanto existência e interação eqüitativa de diversas culturas, assim como à possibilidade de geração de expressões culturais compartilhadas por meio do diálogo e respeito mútuo. E assim desejamos que o, que ocorrerá de 24 a 27 de setembro em Ribeirão Pires, proporcione a reflexão do papel desempenhado pela região do Grande ABC, formado por seus sete municípios consorciados, frente à questão da diversidade cultural tanto no passado como no presente e que possamos construir uma cultura de paz para as próximas gerações. Marcílio Duarte Secretário-Adjunto de Cultura e Turismo de Ribeirão Pires Presidente da Comissão Organizadora do XIII Congresso de História