O DESENHO E A CIÊNCIAS NATURAIS Ivoneide de França Costa neidefc@uefs.br Universidade Estadual de Feira de Santana O DESENHO Desde os primórdios, o homem tenta registrar o que lhe é visto e sentido através do desenho. A princípio os desenhos feitos pelo homem eram espontâneos e imitativos, de acordo com as idéias que lhe brotavam a cabeça e, num momento posterior, a necessidade de representar idéias mais complexas obrigou-o a usar um conjunto de representações melhor acabadas. O ato de desenhar é inerente à natureza humana não só sob a perspectiva de sua evolução, como também de seu próprio desenvolvimento biológico. A bibliografia relacionada com o desenvolvimento do desenho infantil indica que o ato de desenho no ser humano se inicia ainda na primeira infância com a produção garatujas, termo utilizado por Viktor Lowenfeld para nomear os rabiscos produzidos pela criança (Bordoni, 2000). Tal produção se constitui na criança em desenhos que expressam uma relação desta consigo mesma e com o mundo que a cerca, configurando uma dita representação do espaço que começa com a figuração. Ao desenhar o indivíduo pode registrar o que é observado ou representar o objeto imprimindo particularidades inerentes ao seu eu com a intenção de modificá-lo. Já quando esse indivíduo se torna observador do desenho, na tentativa de interpretá-lo traça comparações entre as imagens presentes em si e aquelas que observa na busca de sintonizar com a forma, o traçado, a cor, o gesto e a subjetividade da execução visando captar a intenção original do autor do desenho. O desenho em toda sua evolução e em relação as suas diversas modalidades, teve sempre em vista uma interpretação de caráter artístico, técnico ou psicológico, e nesses contextos, ele representa um meio de expressão, linguagem que evolui com o indivíduo, tornando-se pouco a pouco intencional, ao sabor das influências, pelas aquisições culturais do grupo a cuja necessidade passa atender, mostrando-se um meio de comunicação e de registro histórico. Concebendo o desenho como registro histórico, Trinchão e Oliveira analisam a importância dessa combinação, para a reconstrução do passado: Os registros históricos, dentre outros o escrito e o gráfico, são testemunhos que caracterizam uma área do conhecimento que não atinge apenas o tempo vivido, estendo-se em tempo da memória e da experiência, proporcionando a reconstrução do passado(...)história e desenho são canais de transmissão de conhecimento intimamente relacionados, ambos tem a mesma função: a de registrar histórias e estória, individuais e coletivas, grafando no tempo e no espaço a trajetória das civilizações[...].(trinchão e Oliveira, 1998).
Não importando o instrumento utilizando para esses registros - pincel, lápis, tinta ou carvão - quem faz o desenho imprime sua marca, perpetua o momento, informa ou instrui sobre acontecimentos da época que está inserido. O desenhista se vale dessa prática para experimentar, buscando reconhecer as formas do que lhe é observado, enfim, o desenho se revela como uma forma de exploração, interpretação e mudança do mundo. DESENHO DOS VIAJANTES NATURALISTAS O desenho e a pintura atuam como instrumento de investigação para explorar e registrar a natureza, muito utilizado pelos cientistas viajantes naturalistas, inserindo esta união ao campo das ciências. Belluzzo afirma que o cientista utiliza a arte desenho e pintura para realizar experimentos a fim de obter meios de investigação operativa e acrescenta que o sábio não se contenta em observar meticulosamente a natureza e copiá-la, pretende conhecê-la na sua essência (Belluzzo,1994). A observação é o primeiro contato, o olho realiza o conhecimento que posteriormente passará para o registro com o auxilio do desenho e da pintura. O termo cientistas viajantes naturalistas refere-se aos cientistas que realizaram explorações geográficas na área da botânica, zoologia e etnologia. No Brasil, somente em 1808 com vinda da família real portuguesa ao Brasil, fugida das tropas de Napoleão, iniciaram-se as intensificaram as expedições científicas nesse território, graças à abertura dos portos às nações estrangeiras. Entre os viajantes que cá estiveram nesta época, destacam-se os naturalistas Spix e Martius, Eschwege, Saint-Hilaire, o príncipe Maximiliano von Wied-Neuwied, o barão Langsdorff, cônsul da Rússia, os pintores Debret, Rugendas, Ender e os ingleses John Luccock, Maria Graham e John Mawe. Essas pessoas são os responsáveis pelos primeiros estudos de nossa natureza e descrição de nossas paisagens. Destacamos, também a presença de Carlos Frederico Hartt na segunda metade do século XIX. Segundo Belluzzo (1994) desde o século XVII, desenhistas participaram das tripulações que percorreram o mundo. As representações da natureza, realizadas nessas expedições, possuíam notável primor artístico que denotava o conhecimento do desenho e da pintura, tais representações eram feitas por artistas agregados e pelos próprios cientistas. Belluzzo com relação a esse preparo técnico afirma: De maneira geral, além dos artistas agregados às expedições, os naturalistas aprimorados em academias européias e os naturalistas amadores eram dotados de recursos de desenho, que faziam parte da formação naquele tempo. Todos, herdeiros da tradição artística, traziam na bagagem esse meio de que dispunham para realizar a primeira aproximação com um mundo praticamente desconhecido, para enfrentar o cenário não habitual, para preservar a memória visual ao lado do diário manuscrito, quando já não estivessem mais diante do observado. (Beluzzo, 1994).
Através do desenho os cientistas viajantes sentiram e representaram o que lhe era observado nas expedições, registraram espécies de animais, plantas, pessoas, paisagens; representaram mapas e plantas de fortificações. Usando a expressão de Kuri (2000), o viajante é aquele que decidiu ver com os próprios olhos, acrescentamos contudo, que o ver não seria suficiente para definir tais pesquisas cientificas já que o olhar dos viajantes buscava um conhecimento e uma interpretação mais profunda e minuciosa como afirma Cardoso: O ver, em geral, conota no vidente uma certa discrição e passividade ou, ao menos, alguma reserva. (...) Com o olhar é diferente. Ele remete, de imediato, à atividade e às virtudes do sujeito, e atesta a cada passo nesta ação a espessura da sua interioridade. Ele perscruta e investiga, indaga a partir e para além do visto, e parece originar-se sempre da necessidade de ver de novo (ou ver o novo), com intento de olhar bem. Por isso é sempre direcionado e atento, tenso e alerta no seu impulso inquiridor... Como se irrompesse sempre da profundidade aquosa e misteriosa do olho para interrogar e iluminar as dobras da paisagem (..) que, freqüentemente, parece representar um mero ponto de apoio de sua própria reflexão. (Cardoso, 1990). A representação de paisagens, também foi um ponto forte nas expedições e, pelo aspecto plástico empregado na pintura outocentista, convencionou-se a chamar de romântica. Nesse aspecto, salietamos que o desenho-registro ao qual nos referimos basea-se na concepção de que imagens e meio ambiente interagem continuamente entre si e com o observador (Trinchão e Oliveira, 1998) e que, a partir dele, podemos dialogar com o mundo e interagir com o mesmo. Representar graficamente um objeto é adentrar em sua natureza, concebendo-o como uma coisa viva e que integra o ambiente, dando-lhe também vida (Damasceno, 1980). CONSIDERAÇÕES FINAIS Verificamos aqui a importância do desenho para as pesquisas cientificas. Esta imbricação entre arte e a ciência nos leva a perceber o caráter artístico e pesquisador dado a essa atividade, onde a representação pictórica traduz com máximo de fidelidade possível, agregando conhecimento e sensibilidade. O entendimento do desenho como registro histórico contribui para engrandecimento da prática de desenhar e o fortalece no meio cientifico. As figuras que se seguem constituem ilustrações de uso do desenho por alguns cientistas viajantes naturalistas.
01.Carl Friedrick Philips von Martius Rianthus asper var brasiliensis 02. Frei Christovão de Lisboa Synimbu (camaleão) I Tijuasu Fig. 03 Charles F. Hartt Vista da Serra dos Órgãos, perto de Telesópolis. FONTE DAS FIGURAS 01 e 02. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. V.2: Um Lugar no Universo. Fundação Odebrecht. São Paulo. Metalivros. 1994. 03. FREITAS, Marcus Vinicius. Charles Frederick Hartt, um naturalista no Império de Pedro II. Belo Horizonte. MG. UFMG. 2002. REFERENCIAS 1. BORDONI, T..A Evolução do Desenho Infantil. In: Revista Linha Direta, ano 3, no. 33, dezembro de 2000. Disponível na World Wide Web:
http://www.linhadireta.com.br/revistadedezembro.revista.html 2. BELLUZZO, Ana Maria de Moraes. O Brasil dos Viajantes. V.2: Um Lugar no Universo. Fundação Odebrecht. São Paulo: Metalivros. 1994. 3. CARDOSO, Sérgio. O olhar dos viajantes. In: Olhar: Adauto Novais...(et al). São Paulo: Companhia das Letras. 1998, p.347-370. 4. DAMASCEBO, Manuelito. Desenho: um reflexão conceitual. IN: ANAIS DO GRÁFICA 2000 ( III CONGRESSO INTERNACIONAL DE ENGENHARIA GRÁFICA NAS ARTES E NO DESENHO E IV SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOMETRIA DESCRITIVA E DESNHO TÉCNICO. Ouro Preto. Minas Gerais: 2000, p.104-107 5.KURY, Lorelai. Viajantes-naturalistas no Brasil oitocentista: experiência, relato e imagem. Hist. cienc. saude-manguinhos. [online]. 2001, vol.8 supl. [citado 24 Junho 2004], p.863-880. Disponível na World Wide Web: <http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=s0104-59702001000500004&lng=pt&nrm=iso>. ISSN 0104-5970. 6. OLIVEIRA, Lysie dos Reis e TRINCHÃO, Gláucia Maria Costa. A história contada a partir do desenho. IN: ANAIS DO GRÁFICA 2000 ( III CONGRESSO INTERNACIONAL DE ENGENHARIA GRÁFICA NAS ARTES E NO DESENHO E IV SIMPÓSIO NACIONAL DE GEOMETRIA DESCRITIVA E DESNHO TÉCNICO. Ouro Preto, Minas Gerais: 2000, p.156-164.