Como viver junto: visibilidade e legibilidade do cartaz da 27ª Bienal de São Paulo



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Transcrição:

Como viver junto: visibilidade e legibilidade do cartaz da 27ª Bienal de São Paulo Flaviana Machado Tannus 1 Resumo O presente artigo analisa a visibilidade e a legibilidade da imagem impressa no cartaz de apresentação do 27ª. Bienal de São Paulo. O cartaz foi criado pelo artista plástico argentino Jorge Macchi. As idéias de Roland Barthes e as obras conceituais de Hélio Oiticica norteiam toda a produção de mais de 100 artistas participantes da Bienal. No corpo do artigo, citações de autores da comunicação e da psicanálise são entrelaçadas com outras imagens veiculadas pela mídia impressa, em redes de televisão e obras de arte que participam da mostra da Bienal, com a intenção de nortear o desenho deste artigo. Todo este material engendra uma leitura da imagem impressa do cartaz de apresentação em conjunto com a pergunta formulada por Barthes em 1976: A que distância devo me manter de meus semelhantes para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação? Com a intenção de tecer palavras (conceitos) e imagens, este artigo pretende ser um convite ao leitorespectador a sair de seu lugar seguro de mundo e se lançar em busca de novas leituras de si, do outro e do mundo diante da inundação que as imagens provocam. Palavras-chave: imagem impressa, comunicação, psicanálise. Introdução O presente artigo refere-se à visibilidade e a legibilidade da imagem impressa no cartaz de apresentação da 27ª Bienal de São Paulo. O cartaz da Bienal foi projetado pelo artista argentino Jorge Macchi e entrou em circulação um ano antes da sua edição. A imagem intrigante nos meios artísticos, galerias e museus, de longe, lembra traços de pincel com a cor clara sobreposta ao branco chamando a atenção pela sutileza do movimento provocado. De perto, os olhos avistam recortes de aspas colocados de forma simétrica e presos nas pontas, por alfinetes. As aspas foram retiradas do jornal mídia impressa de maior circulação e não trazem nenhuma expressão ou citação. Na construção deste texto, cujo objeto é a análise do cartaz anunciado, recorreu-se a autores da Teoria da Comunicação e da Psicanálise, pois se julgou que eles poderiam nortear a leitura que se pretende fazer. 1 Mestranda do Programa de Pós Graduação em Comunicação, da Faculdade de Arquitetura, Artes e Comunicação da Universidade Estadual de São Paulo, Unesp- Bauru. E-mail: flavianatannus@uol.com.br

Patrick Charaudeau, teórico da comunicação, aponta a mídia impressa como um dispositivo de visibilidade e legibilidade da atualidade e Maria Rita Kehl, escritora e psicanalista defende a força da imagem na construção de subjetividades. Além dos autores, outras imagens foram utilizadas na tentativa de estabelecer um diálogo com a imagem produzida para o cartaz da Bienal. A Globonews, canal da emissora Globo, tem apresentado, tanto em revistas como em propagandas veiculadas nos vários canais que mantem, o sinal de pontuação aspas ( ) em diversas cenas do cotidiano. A obra Cânone do artista plástico baiano Marepe que participa da 27ª Bienal com uma instalação feita de guardas chuvas que remetem à idéia de agrupamento permite abordar a questão da proteção, de uma ou mais pessoas, através do uso de um objeto do cotidiano. Sob este recorte de idéias, conceitos e imagens, uma leitura possível do cartaz da Bienal pode ser feita a partir de uma pergunta elaborada por Barthes: A que distância devo me manter de meus semelhantes para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação? Assim, ao se elaborar este texto, não se pensou na obtenção de respostas, mas em tecer algumas reflexões que convidem à desconstrução de verdades estabelecidas, em busca de novos caminhos. A 27ª Bienal de São Paulo A 27ª Bienal de São Paulo, que ocorreu no Brasil de 07 de Setembro a 17 de Dezembro de 2006, fugiu dos modelos tradicionais adotados pelas últimas edições do evento, na medida em que aboliu segmentos fixos como o das representações nacionais e implodiu algumas formas clássicas de organização como a separação por gêneros, nações ou origens dos artistas. Lisette Lagnado, curadora da Bienal defende a importância essencial da noção de coletividade, expressa no próprio título Como Viver Junto, na montagem sem hierarquias e também na presença marcante de trabalhos feitos por grupos de artistas ou por intervenções que buscam interagir no Penetráveis : Hélio Oiticica Parangolés : Hélio Oiticica

campo da arte, segmento normalmente afastado da sociedade. Para criar o conceito da Bienal, a curadora definiu o itinerário como uma tentativa de responder à principal questão do seminário organizado em 1976-77 pelo semiólogo francês Roland Barthes no Collège de France A que distância devo me manter de meus semelhantes para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação? e a experiência existencial do artista brasileiro Hélio Oiticica, que convocou o espectador para sair de sua passividade e interagir com sua obra. Penetráveis. Os diversos ambientes da 27ª Bienal procuraram levar o visitante a abandonar sua posição passiva e entrar no universo criado pelo artista; eram exemplos de como viver junto. Barthes admitiu jamais ter tido uma filosofia de como viver junto, mesmo quando organizou um seminário para discutir a coabitação. Talvez considerasse o isolamento do artista um estilo de vida, parecido demais com o dos conventos para que o indivíduo pudesse exercer sua liberdade sem ser sumariamente marginalizado. O discurso da imagem do cartaz da Bienal Qual o significado das aspas na construção de uma imagem? No Dicionário da Língua Portuguesa (FERREIRA, 1999, p.210), aspas é um sinal de pontuação que, em geral se grafam alceados, para abrir e fechar uma citação ou com o que se inicia e termina a tradução de uma palavra ou expressão estrangeira, ou seja, uma citação dentro de outra citação. O autor do cartaz, Jorge Macchi, de origem Cartaz de apresentação da argentina, foi entrevistado por Carla Zaccagnini 27ª Bienal de São Paulo: Jorge Macchi (LAGNADO, 2006, p.114) e falou da imagem do pôster não como ilustração, mas como possibilidade de estabelecer um diálogo com o evento. Segundo o seu raciocínio as aspas, recortadas de jornal e isoladas, evocam uma convivência de frases e oradores. É uma imagem ambivalente: por um lado alude à convivência democrática dos discursos e, por outro, à sua vacuidade ou paralisação. Macchi disse, ainda, que na

imagem vista de uma distância considerável, todos os detalhes se perdem provocando uma sensação de movimento aquático; só de perto se percebem os detalhes. Terminou apontando seu interesse pelo caráter escultórico que o papel adquire quando desaparece a informação de que era suporte. Sob esta perspectiva palavra que vira imagem o autor francês Patrick Charaudeau aponta que: A imprensa é essencialmente uma área escritural, feita de palavras, de gráficos, de desenhos e, por vezes, de imagens fixas sobre um suporte de papel. Esse conjunto inscreve essa mídia numa tradição escrita que se caracteriza essencialmente por uma relação distanciada entre aquele que escreve e aquele que lê; a ausência física da instância de emissão para com a instância de recepção, uma atividade de conceitualização da parte das duas instâncias para representar o mundo, o que produz lógicas de produção e de compreensão específicas; um percurso ocular multi-orientado do espaço de escritura que faz com que o que foi escrito permaneça como um traço para o qual se pode sempre retornar: aquele que escreve, para retificar ou apagar, aquele que lê, para rememorar ou recompor a sua leitura (CHARAUDEAU, 2006, p.113). Charaudeau aborda a importância da palavra como imagem impressa, pois a partir do registro forma-se um conceito que além de representar algo pode, a todo instante, possibilitar novas leituras de acordo com o olhar ou recorte de cada sujeito. Porém, a representação ou apresentação de aspas, sem a citação, aponta para algo esvaziado de significado, o que tem sido muito presente na sociedade do espetáculo. Também Maria Rita Kehl em seu artigo sobre a realidade ficcional, se pronuncia no mesmo sentido dizendo que: Na sociedade do espetáculo, o mecanismo que garante ao sujeito visibilidade necessária para que exista socialmente, já não é o da identificação. Na circulação das imagens o mecanismo das identificações é substituído pela tentativa de produção de identidades. Já não é mais com a imagem do Outro (ou com o discurso do Outro) que o sujeito tenta se identificar, mas com uma espécie de imagem de si que é apresentada pela mídia. Se a imagem capaz de convocar a multidão de homens genéricos (discursos genéricos) é a imagem mais abrangente e mais vazia possível, a eficácia dessa experiência depende do apagamento de todas as outras dimensões da vida. Com isso a visibilidade não se constrói na ação política, nem pela participação em um grupo, mas depende apenas da aparição da imagem representada pela mídia (KEHL, 2004, p. 158). Os autores citados contribuem para que se possam tecer considerações a respeito do apagamento da palavra e da citação, dando lugar ao surgimento de uma outra imagem que desenha o discurso contemporâneo vazio de significado. A

sensação que se tem é que se esvaziaram as possibilidades de diálogos e apenas se repetem e se constroem as identidades no discurso produzido pela mídia. Como Viver Junto: texto e imagem A frase Como Viver Junto, impressa no cartaz de apresentação da 27ª Bienal de São Paulo, não está seguida de interrogação, como uma pergunta formulada, mas de um ponto final. Este parece ser uma alusão à proposta principal de Barthes 2. Não é uma pergunta que evoca respostas, mas uma colocação que convida o leitor a refletir sobre caminhos. O principal ponto levantado por Barthes foi: A que distância devo me manter de meus semelhantes para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação? É uma questão intrigante, pois se sabe que não existe uma regra a ser seguida para se encontrar a verdade e que na contemporaneidade o vazio das relações interpessoais é cada vez mais intenso e vem sendo povoado por imagens, por discursos e citações também vazias de significados. Sob este aspecto, é o desejo que parece estar colado nas imagens, nos discursos e nas citações, alienando o sujeito e transformando-o em consumidor inconsciente não só de coisas, mas de idéias. Neste sentido, assim se pronuncia Maria Rita Kehl. A alienação do sujeito contemporâneo completa-se na sua transformação como consumidor. Ainda quando não consome as (outras) mercadorias propagandeadas pelos meios de comunicação, consome as imagens que a indústria produz para o seu lazer. Consome, aqui, não quer dizer apenas que o trabalhador contempla essas imagens, mas que se identifica com elas, espelho espetacular de sua vida empobrecida. (KEHL, 2004, p.44) Cânone : Marepe Levando-se em conta as considerações apontadas pela autora era possível perceber que o cartaz da Bienal remetia o espectador à visibilidade apresentada pelas imagens que povoavam o pavilhão da Bienal e, tal visibilidade, podia ser provocadora de 2 A obra de Barthes objetiva explorar um imaginário particular - não todas as formas do viver junto (sociedades, monastérios, famílias, casais) - mas principalmente o viver junto de grupos muito restritos, nos quais a coabitação não exclui a liberdade individual. De acordo com os princípios do trabalho semiológico, Barthes busca destacar, na massa, modos, hábitos, temas e valores do viver junto: traços pertinentes e, por isso mesmo descontínuos, dos quais cada um pudesse ser subsumido por uma palavra de referência. Sua pesquisa constituiu, portanto, em 'abrir dossiês', tendo sido deixado aos ouvintes o encargo de preencher esses dossiês à sua maneira e o papel do professor consistiu, principalmente, em sugerir certas articulações do tema.

múltiplas interrogações: como os artistas produzem suas obras a partir de um conceito? Como o cartaz pode estabelecer um convite às imagens da apresentação? Como estas obras criam visibilidade para o público? Como as imagens podem convidar o espectador a refletir sobre questões contemporâneas? A partir de tais questionamentos, escolheu-se uma imagem na tentativa de abrir caminhos que possibilitem a produção de um sentido. Chegou-se, assim, à obra Cânone 3, do artista plástico baiano Marepe: uma instalação feita de guardaschuva conectados uns aos outros por ganchos de metal e pendendo do teto do pavilhão sustentados por grandes estruturas que remetem à idéia de balança. Com esta obra, Marepe explora a idéia de repetição e equilíbrio sugerida pelo título do trabalho. Em entrevista concedida à jornalista Maria Hirszman e publicada no jornal Estado de São Paulo, Marepe explicou que o guarda-chuva é um objeto bem clássico que permite abordar a questão da proteção, de uma ou mais pessoas, e possui uma grande beleza plástica. A marca registrada do trabalho de Marepe é o uso de objetos banais do cotidiano. Construa sua própria opinião A outra imagem escolhida foi apresentada pela mídia impressa (revistas), veiculada nos canais mantidos pela emissora Globo e que deu origem a uma nova grade de programações da Globonews. Tal imagem foi apresentada neste artigo como tentativa de Slogan de apresentação estabelecer um diálogo com a imagem do cartaz da do programa entre-aspas Bienal. A imagem do programa entre aspas, da Globonews é formada por cenas do cotidiano, pois apresenta as aspas sendo esculpidas em barro, depois sendo retiradas do forno; na seqüência, as aspas em madeira, sendo lixadas pelo 3 Significado da palavra Cânone Forma de composição muito difundida pelos compositores do séc. XVI, e cujo tema iniciado por uma só voz (antecedente) é rigorosa e continuamente imitado por outras vozes (conseqüente), a distância de um ou mais compassos até o fim. O Cânone pode ser em uníssono, quando as vozes repetem exatamente as mesmas notas, a oitava quando o conseqüente é transposto à oitava; circular ou rota quando as imitações percorrem todos os tons. (FERREIRA,1999, p. 392).

marceneiro e pintadas na cor vermelha e, finalmente, penduradas na parede branca, anunciando as novas programações da emissora. O símbolo é manuseado artesanalmente por pessoas que têm profissões como marceneiro e escultor. O ambiente apresenta uma rusticidade de que a programação televisiva, principalmente a programação de noticiários está desprovida, já há muito tempo. As aspas não remetem a nenhuma expressão ou citação, mas a frase que antecede o anúncio da propaganda é: construa a sua própria opinião para, em seguida, ser veiculada a nova grade de programação acompanhada de uma outra frase: muito mais informação para você construir a sua opinião. Considerações Finais A partir da análise feita não se pensou propriamente em uma conclusão, mas sim em realizar uma reflexão que pudesse produzir novos questionamentos. Na décima terceira aula que Roland Barthes proferiu do seu conjunto de palestras no Collége de France, em 04 de maio de 1977, ele falou sobre a utopia dizendo que: (...) O que é desejado (na relação como viver junto) é uma distância que não quebre o afeto (...) uma distância penetrada, irrigada de ternura (...). Aqui alcançaríamos, aquele valor que tento pouco a pouco definir sob o nome de delicadeza (palavra um tanto provocadora no mundo atual). Delicadeza seria: distância e cuidado, ausência de peso na relação, e, entretanto, calor intenso dessa relação. O princípio seria: lidar com o outro, os outros, não manipulá-los, renunciar ativamente às imagens (de uns, de outros), evitar tudo o que pode alimentar o imaginário da relação = utopia propriamente dita, porque forma do Soberano Bem (BARTHES, 2003, p.260). Destaca-se, da citação acima, a necessidade apontada por Barthes de renunciar ativamente às imagens (de uns, de outros). A partir desta colocação pode-se fazer uma analogia com a imagem que ilustra o cartaz de apresentação da 27ª Bienal em que as aspas (sem palavras) abrem espaços a uma imagem feita de citações vazias. Quando Barthes fala sobre a renúncia faz quase uma alusão ao silêncio. Não ao silêncio vazio, ausente, mas ao silêncio que anuncia uma outra possibilidade de existir: com afeto, ternura, delicadeza... As imagens que povoaram o pavilhão da 27ª Bienal foram construídas a partir de um discurso político utópico que apontou apenas novas possibilidades para o como viver junto. Também as considerações de Charaudeau e Kehl puxaram o mesmo fio quando lembraram que as imagens midiáticas inundam os espaços públicos e

privados, rompendo o silêncio para anunciar coisas e idéias vazias de poesia, de beleza e de afeto como aquelas que, normalmente, encontramos nas citações entre aspas. A partir destas reflexões, a obra e o conceito do artista plástico Hélio Oiticica utilizados no projeto da 27ª Bienal de São Paulo, intitulado Como Viver Junto, se entrelaça com as citações dos autores. Entende-se que as obras do artista (Penetráveis e Parangolés), apresentam ambientes e indumentárias que motivam o espectador para que desça de seu lugar de leitor passivo e assuma um olhar de interação a partir de sensações que possam estabelecer o diálogo entre a privacidade do artista e o público e permita que o homem comum se encontre com o diferente para, neste encontro, poder enxergar novos caminhos a percorrer. A obra de Marepe criada com guardas-chuva, objeto de uso cotidiano que não só abriga as pessoas que vivem juntas, mas as protege momentaneamente de forma instantânea quando elas precisam se deslocar sob a chuva ou sob o sol escaldante. Este deslocamento de pessoas isoladas ou com seus pares parece ser apenas o desejo de um breve percurso seguido de despedida para, às vezes, nunca mais se encontrarem. Assim a obra de Marepe parece ilustrar a idéia de abrigo e proteção que os indivíduos buscam no Outro para viver junto. O artista elege um objeto que sendo nomeado como cânone (vozes repetidas que se juntam com a finalidade de percorrer vários tons) assume um caráter significante para entender o entrelaçamento que o título propõe. A imagem televisiva do símbolo das aspas anunciando uma nova grade de programação ocupa um cenário que nos remete a cenas renascentistas em que o ofício do artesão vai dando passagem a uma nova categoria profissional. Os artesãos assumem o poder quando os seus produtos passam a alavancar uma nova categoria econômica e com isto o homem assume a sua condição de escolher o seu caminho, guiado pelo seu desejo. O repertório que a imagem anuncia com uma nova grade de programação parece convidar o espectador a construir novas idéias, em que uma rede de debates sobre assuntos da contemporaneidade oferece ao leitor crítico um novo lugar, assim como o lugar conquistado pelos artesãos renascentistas. A narrativa da imagem que a televisão propõe, anuncia um espaço de construção de opinião, anunciando um caminho de viver junto, estando sozinho. Este entrelaçamento de palavras e imagens, que fazem parte do mundo do espetáculo, parece revelar não apenas o vazio do discurso que envolve o homem

contemporâneo, mas também um convite um abre aspas para que todos os homens participem da construção da História, deslocando-se da inércia em que se encontram para atualizar a visibilidade e legibilidade do mundo (re)interpretando-o com outra lente ocular. Entende-se que, assim, o homem contemporâneo poderá situar o passado e estabelecer um novo diálogo com a contemporaneidade atualizando-se. Quando Barthes formula a questão A que distância devo me manter de meus semelhantes para construir com os outros uma sociabilidade sem alienação? ele situa a condição humana no lugar da falta, e por isso mesmo no lugar de quem deseja, pois só existe desejo quando há falta e quando ele fala em renunciar imagens, na citação acima, aponta também para a importância em renunciar discursos e estabelecer com o outro leitor ou espectador uma distância irrigada de ternura e cuidado, necessários para a sobrevivência da inquietação, situando o sujeito no lugar da falta, não da plenitude. Assim o referido autor atualiza nossa leitura quando fala desta ausência, desta falta. Pode ser que ele tenha pensado numa utopia possível. Quem sabe? Quem se arrisca a questionar? Referências Bibliográficas BARTHES, Roland. Como Viver Junto. São Paulo: Martins Fontes, 2003. CHARAUDEAU, Patrick. Discurso das mídias. São Paulo: Contexto, 2006. FERREIRA, Aurélio Buarque de Hollanda. Novo Aurélio Século XXI: o dicionário da língua portuguesa. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1999. KEHL, Maria Rita Videologias: ensaios sobre televisão. São Paulo: Boitempo, 2004. LAGNADO, Lisette 27ª Bienal de São Paulo: Como Viver Junto: Guia. São Paulo: Fundação Bienal, 2006. Internet: http://www.diversao.uol.br Estou negociando e comunicando para descomunicar disponível em: <http://www.diversao.uol.br/27bienal/ Acesso em 12 nov. de 2006. http://www.forumpermanete.incubadora.fapesp.br 27ª Bienal de São Paulo Como Viver Junto Seminários internacionais relatos disponível em: < http://www.forumpermanete.incubadora.fapesp.br/portal/.event/ Acesso em 12 nov. de 2006.