REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, MARIA CRISTINA DOS SANTOS DE SOUZA *



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Transcrição:

DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE Recebido em abr. 2006 Aprovado em jan. 2007 MARIA CRISTINA DOS SANTOS DE SOUZA * RESUMO Este artigo visa apresentar o pensamento origina de Nietzsche sobre a vida e a obra do fiósofo grego Demócrito, o qua ee considera o útimo caráter fiosófico puro grego, extraído sobretudo das ições ministradas por Nietzsche na Universidade. PAAVRAS-CHAVE Nietzsche. Pensamento Origina. Vida. Obra. Demócrito. ABSTRACT This artice aims at to present the origina thought of Nietzsche on the ife and the workmanship of the Greek phiosopher Democritus, which it considers the ast phiosophica character pure Greek, extracted over a of the essons given for Nietzsche in the University. Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. KEY WORDS Nietzsche. Origina Thought. ife. Work. Democritus. * Doutoranda em FIOSOFIA na UNIVERSIDADE DO ESTADO DO RIO DE JANEIRO - UERJ e Professora assistente de FIOSOFIA na UNIVERCIDADE. 161

E ste escrito tem como proposta apresentar resumidamente a visão do fiósofo Friedrich Nietzsche sobre o fiósofo grego Demócrito, do qua pouco nos restou em termos de bibiografia. Nos foi possíve chegar a compreender o pensamento de Nietzsche sobre o fiósofo grego graças sobretudo às ições ministradas por Nietzsche em seu período de juventude, na universidade da Basiéia, sobre os fiósofos gregos que ee denomina puros, propriamente aquees anteriores a Patão, considerado por ee o primeiro fiósofo de caráter essenciamente misto. Estas ições estão reunidas sobretudo na obra organizada por Paoo D Iorio, es phiosophes prépatoniciens, e nas ektionen auf Geschichte des iteratur Griechen, texto acessíve até hoje somente na íngua origina. Apesar das ições sobre Demócrito guardarem um tom didático e serem votadas para o curso de fioogia, Nietzsche não deixa de expressar já uma compreensão fiosófica absoutamente origina sobre este fiósofo grego, do qua pouco conhecemos. Demócrito era da cidade de Abdera ou de Mieto. Segundo Apoodoro, comentador antigo preferido de Nietzsche, afirma que o próprio Demócrito decarou em sua obra a Pequena Cosmoogia ser 40 anos mais jovem do que Anaxágoras. A tradição de comentadores faz referência a um outro pensador chamado eusipo, que também teria nascido em uma destas cidades e escrito, como Demócrito, no diaeto de Abdera. Aristótees chama Demócrito o companheiro ou o discípuo de eusipo, afirmando que ambos tinham concepções cosmoógicas bastantes parecidas. Em outras passagens de sua obra ee chega mesmo a os confundir. Por sua vez, Teofrasto Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. 163

SOUZA, MARIA CRISTINA S. DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE. P. 161-176. atribui a Grande Cosmoogia, considerada uma das grandes obras de Demócrito, a eusipo. Esta controvérsia de autoria se aprofunda quando o avo da discussão se refere às obras morais. Grande parte dos comentadores, reconhecendo Demócrito apenas como um estudioso da natureza, as atribui a eusipo. Quanto a este impasse, Nietzsche assevera que admitindo que eusipo era o autor da idéia principa, a diversidade de pontos de vista contidos nas obras certamente era da autoria de Demócrito. Ee se refere, também, ao fato improváve da existência concomitante de dois pensadores tão inovadores, concuindo que se Demócrito foi o discípuo de eusipo ee o ecipsou, fundando uma grande doutrina. Ee concui que esta doutrina se desenvoveu e o nome de Demócrito utrapassou o de eusipo em universaidade. Entretanto, em outra parte de seus escritos, Nietzsche, seguindo a hipótese audaciosa de Epicuro sobre a não existência de eusipo, afirma que este poderia ser, incusive, um pseudônimo adotado por Demócrito para se ivrar de uma possíve investida contra as suas obras. Seguindo a indicação de Nietzsche que Os fragmentos de Mora têm, por uma parte, um tom fáci de homem do mundo e uma bea forma 1, podemos concuir que, estes fragmentos podiam facimente ser atribuídos ao tipo de homem que foi Demócrito. Ee visitou as principais cidades gregas, conhecendo as idéias dos pensadores de sua época. Tavez por ter composto grande parte de seus escritos durante suas viagens, ee seja considerado por Nietzsche o viajante científico. O 1 NIETZSCHE, F. es phiosophes pré-patoniciens, cap. 8, p. 135. 164

próprio Demócrito afirma ter conhecido e estudado os principais pensadores de sua época, incuindo Anaxágoras e Empédoces. Supõe-se que ee não tenha chegado a freqüentar Empédoces, tavez por este ter morrido uma década antes da sua juventude, todavia, ee conheceu, segundo Nietzsche, as obras de Empédoces, o fiósofo trágico. Seus conhecimentos utrapassaram os imites da Grécia, se estendendo até as terras do Oriente. Não é sem motivo que Nietzsche associa o nome de Demócrito à reação dos gregos com o estrangeiro. No entanto, a igação de Demócrito e dos estudiosos orientais deve ser compreendida à uz do que Nietzsche afirma sobre a capacidade grega de aprender dando frutos. Ee diz em uma obra que os gregos assinaaram a cutura viva de todos os povos e, se chegaram tão onge, foi porque souberam continuar a arremessar a ança onde um outro povo a tinha deixado 2. Nesta via, não obstante a erudição herdada por todos os fiósofos e, sobretudo, por Demócrito, Nietzsche defende a originaidade da fiosofia grega. Segundo Nietzsche, as várias viagens de Demócrito assinaam uma curiosidade universa. Ee era o tipo do fiósofo escritor e viajante aquee que conhece tudo não por abarcar peo saber todas as coisas indistinta e absoutamente, mas por engobar tudo o que concerne ao domínio do conhecimento, ou seja, ao conhecíve. A grande quantidade de obras de Demócrito atesta o que Nietzsche diz: Demócrito foi o primeiro a tentar abarcar todo o campo disto que é digno de ser Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. 2 Ibid. A fiosofia na idade trágica dos gregos, cap. 1, p. 19. 165

SOUZA, MARIA CRISTINA S. DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE. P. 161-176. conhecido 3. Assim, ee escreveu sobre matemática, física, astronomia, música, técnica e mora. Neste útimo escrito 4, Nietzsche cassifica o estio iterário de Demócrito como científico e o chama de o primeiro escritor cássico. Científico, no sentido de simpes, caro e demonstrativo, atributos que fizeram de seus escritos, obras de estio grandioso. Ee chega mesmo a afirmar que Demócrito utrapassa Patão em quantidade de obras e em originaidade. Aém disso, Nietzsche afirma que as refexões de Demócrito não se reduzem ao domínio cosmoógico. Eas traduzem preocupações não somente científicas, mas também ontoógicas, morais e até mesmo estéticas. Ora, no que refere as refexões cosmoógicas, Demócrito constatou que para haver movimento era necessária a existência do espaço vazio. Para fim de compreensão da necessidade do espaço vazio, ee desenvoveu uma série de argumentos. E como decorrência da prova do espaço vazio, ee concuiu que se o espaço vazio existe, o não-ser também existe. Se somente houvesse o ser não haveria divisão nem desocamento, se apenas houvesse o não-ser, não haveria nenhuma grandeza, tudo seria o puro vazio. Portanto, há o que é divisíve e o que é indivisíve, o não ser e o ser. Demócrito identificou o ser a unidades penas e indivisíveis, separadas e absoutamente idênticas chamadas atoma (átomos). Pois se houvesse em um ponto mais ser do que em um outro, ou se um átomo não fosse o que o outro é, então um seria o ser e o outro 3 id. ektionen auf Geschichte des iteratur Griechen, p. 174. 4 Cf. Ibid., p. 172. 166

o não-ser. Esta útima concusão geraria uma contradição no pensamento de Demócrito, pois para ee o átomo era, enquanto uma unidade pena e indivisíve, uma unidade ôntica. Segundo Nietzsche, no âmbito da fiosofia de Demócrito a natureza foi considerada a partir dos mecanismos os mais acessíveis e simpes, ou seja, traduzíveis em inguagem genuinamente científica. Estava excuída a utiização de princípios estranhos ao processo cosmoógico, como em Anaxágoras, ou princípios compexos e inexpicáveis, como em Empédoces, os quais, para Demócrito, representavam verdadeiras rupturas no curso contínuo e reguar do conhecimento da natureza. Neste sentido, o seu pensamento pode ser identificado peo rigor e pea coerência científicas, porquanto eram as quaidades reais e as eis as mais simpes e gerais da matéria que ee buscava investigar. A ordenação progressiva do cosmos foi reconhecida, por Demócrito, como o efeito de uma força cega e mecânica. Esta força não refetia a ação arbitrária e não mecânica de uma substância raciona ou a expressão de uma intenção suprema, como em Anaxágoras, muito menos correspondia à intervenção providencia de um deus ex machina, mas uma espécie de vibração. Apenas a propagação contínua e reguar bastava para expicar os efeitos que pareciam refetir a ógica e a praticidade da inteigência no mundo. Nietzsche compara esta idéia originamente materiaista de Demócrito ao que Kant afirma bem mais tarde: Eu saboreio o prazer de ver, sem a ajuda de invenções Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. 167

SOUZA, MARIA CRISTINA S. DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE. P. 161-176. arbitrárias, sob a ação de eis do movimento bem estabeecidas, se produzir um todo bem ordenado que parece de ta modo a este sistema do mundo, que eu não posso me impedir de o ter peo mesmo [...]. 5 A hegemônica necessidade que regia o cosmos não foi interpretada, em Demócrito, como muitas vezes o foi, como acaso cego. A necessidade é uma espécie de causaidade, mas se trata aqui de uma causa sem avo. A mais rigorosa reguaridade dominava a natureza como ei suprema do universo, segundo o que Demócrito afirma: nada acontece fortuitamente, mais tudo tem sua razão e sua necessidade 6. O que acontece por acaso, em contrapartida, é puramente acidenta. O poder constitutivo da anagkh (necessidade) se justifica, sobretudo, pea identificação, em Demócrito, da força e da matéria. Em Empédoces, ao contrário, os princípios do movimento eram imanentes à matéria, sem, entretanto, serem dea dependente ou possuírem sua natureza. Demócrito, ao estabeecer a matéria como princípio cosmoógico, ao mesmo tempo, eevou sua atividade fundamenta, a necessidade, ao grau de causa natura. Segundo Nietzsche, Demócrito era um racionaista inveterado e confiante. A força de seu sistema advinha sobretudo da sua determinação de tudo tornar caro. Dos fiósofos anteriores, ee conservou apenas o que era simpes e homogêneo. Entretanto, sua segurança e dedicação à ciência, propriamente sua fé em seu sistema de mundo, tinham origem numa extraordinária vontade de encontrar o princípio da paz universa. Nietzsche 5 KANT, I. História natura do céu, p. 48. 6 Cf. ANGE, F. História do materiaismo, p. 13. 168

concui: Demócrito deve sem dúvida ser coocado entre os meancóicos [...] O avo é o otium itteratum: ter a paz. Demócrito este Humbodt do mundo antigo 7. Por este avo ee se ançou em uma vida errante e inquieta, cheia de privações, reduzida ao esforço de penetrar tudo por meio de seu método, que he rendeu uma vehice indigente. Demócrito acreditava estar trabahando em pro de um novo princípio de vida. Querendo fazer do universo um âmbito absoutamente iuminado, ee ansiava por se sentir no mundo como quem se sente em um aposento caro, acreditando que se o homem conhecesse tudo o que concernia a seu mundo ee seria bom e feiz. Para ee a vida científica guardava o princípio de todo eudemonismo. Seu sistema da natureza começa com as seguintes paavras: O homem é ma, porque ee não conhece a natureza 8. Ee oferece aos homens a virtude ibertadora de sua doutrina, uma concepção de mundo desprovida de toda obscuridade e imperfeição. Para Demócrito o conhecimento correspondia à via da pena e verdadeira feicidade. Respondendo às questões sobre a origem e o processo do universo, ee acreditava fazer os homens mais feizes. Ee não pensava em uma fórmua da feicidade do homem médio, comum, ou seja, segundo o parâmetro do bem-estar individua, mas na feicidade oriunda da satisfação concreta e eevada de uma vida votada à investigação do seu sentido universa. Nietzsche identifica, em um fragmento póstumo de 1872-74, a chave do materiaismo de Demócrito a um Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. 7 NIETZSCHE, F. ektionen auf Geschichte des iteratur Griechen, p. 168. 8 Ibid. p. 161. 169

SOUZA, MARIA CRISTINA S. DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE. P. 161-176. cânon mora, enunciado peo próprio fiósofo grego: Contente-se com o mundo ta qua ee é. A mora era a base da física de Demócrito, porquanto o que o movia era o sentimento da ibertação da ciência de todo eemento incognoscíve. As questões profundas e insoúveis não diziam respeito ao conhecimento. Seu ponto de partida no estudo da natureza eram os fenômenos simpes, concretos e inteigíveis. Nietzsche afirma que Demócrito possuía uma aversão peo bizarro e o irraciona. Ee buscava uma simpicidade de método e reduzir todo o processo do cosmos à queda e ao choque visando constituir um sistema de mundo compreensíve e caro. Mundo e conhecimento se correspondiam na medida que sentido de mundo só se dava à uz do conhecimento. Contentar-se com o mundo ta qua ee era significava contentar-se com o universo que se descortinava ao conhecimento. Para as inquietudes míticas ee propunha o racionaismo, para as morais, o ascetismo, para as poíticas, o quietismo e para as inquietudes conjugais, a adoção de fihos. Por estas fórmuas Demócrito buscava demonstrar que era possíve encontrar a estabiidade e a integração de todos os âmbitos da existência grega, através de uma vida fundada no conhecimento. A vida estritamente científica de Demócrito correspondia a ago inaudito em sua época, a qua o visumbrava como um sacerdote entusiasta com uma doutrina bizarra. Com sua cientificidade radica ee chocava os gregos. Sua cidade nata o tinha por um prodígio. Pea diversidade dos temas que abordou e regiões que conheceu, ou seja, como conhecedor 170

aficionado e soitário e como desbravador de novos horizontes, Demócrito era conhecido como um homem do mundo. Mais tarde, seu ímpeto investigador e desmistificador, seu caráter inacreditáve, he rendeu poucos testemunhos, mas muitas anedotas e endas, como, por exempo, a de que ee ria de tudo. Conforme afirma F. ange, em a História do materiaismo, esta imagem de fiósofo que ri [...] somente nô-o mostra como um irônico aegre, que ridicuarizava as oucuras humanas e se fazia o advogado de uma fiosofia superficia e constantemente otimista. Na verdade, ee ria, sobretudo, da mística, que dominava as doutrinas dos grandes conhecedores anteriores a ee. Neste sentido, ee foi o primeiro pensador a excuir todo eemento mítico. Ee condenava ardentemente a intrusão de um artifício mitoógico em um sistema científico do mundo. Nietszche assegura que esta condenação se dirigia, sobretudo, ao caráter arbitrário do Nôus de Anaxágoras e aos princípios míticos de Empédoces, seus antecessores imediatos. Nas etapas da refexão fiosófica que os pensadores anteriores tiveram maior dificudade em estabeecer princípios rigorosos e demonstráveis e se desviaram do caminho da ciência, através de expicações artificiais, arbitrárias, antropomórficas, as quais rompiam a unidade carividente do sistema de mundo em questão, Demócrito estabeeceu mecanismos e eis as mais simpes e cognoscíveis. Ee abominava os véus e bordas impostos à razão pea intervenção de eementos pertencentes a domínios estranhos à ciência. Conforme afirma ange, nas cosmogonias orientais, mais antigas, e nas da tradição grega, imperava a mistura de Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. 171

SOUZA, MARIA CRISTINA S. DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE. P. 161-176. concepções materiaistas e espirituaistas, na medida em que, nas épocas primitivas, a physis era visumbrada no âmbito de representações mágicas e aegóricas. Para Demócrito, entre os gregos imperava uma ortodoxia rude e fanática, sustentada tanto peo orguho das castas sacerdotais quanto pea fé cega do povo nas intervenções divinas. Nesta via, segundo ee, o temor excessivo dos deuses era um dos principais empecihos ao reconhecimento da potência da razão. A athaumastia em reação à ordem física e ao mito caracteriza todos os materiaistas [...], como diz Nietzsche em um fragmento de 1872-74. A athaumastia, ou seja, a ausência do espanto diante da natureza, se fundamentava na fé absouta na cognoscibiidade das manifestações da physis. A Demócrito a natureza se manifestou, sobretudo, como unidade de eementos, reações e mecanismos, ou seja, de fenômenos materiais. Sob esta forma de unidade, a natureza se deu ao conhecimento. Inteigíve, ea substituiu as veneráveis figuras reigiosas como base de sustentação e interpretação da existência grega. Neste sentido, Demócrito empreendeu uma verdadeira dessacraização da mitoogia grega, dissociando-a do rico e maravihoso adorno da reigião e adaptando-a às exigências da racionaidade. Os mitos, os quais serviam, com suas narrativas, de base representativa aos excessos da mística, doravante perderam sua roupagem antropomórfica e fantástica e passaram a ser compreendidos à uz dos mecanismos da natureza. Compreendida como matéria, a natureza foi descoberta como substrato do mundo. Na verdade, 172

substrato do mundo enquanto substrato do conhecimento. Então, não como dado em si mesmo, mas como objeto da representação. Pois, para Demócrito, não era possíve conhecer as coisas como eas eram em si, independentes da representação, âmbito no qua a ciência deimitava o caráter de tudo o que podia ser por ea investigado. O domínio do conhecimento era compreendido como superfície especuar que refetia o mundo não ta qua ee era absoutamente, mas como esfera de representação do universo no qua o homem já se encontrava merguhado inadvertidamente. Assim, em Demócrito, a própria idéia da pena racionaidade da natureza se coaduna à concepção da reatividade de toda verdade sobre o cosmos. Com efeito, na medida em que a forma de apresentação das coisas era regida peas eis da subjetividade, todo objeto era, na verdade, obra da representação. Assim, considerando os imites subjetivos do conhecimento, a ciência foi reconhecida, sobretudo, como instrumento de construção de mundo. Ao visumbrar a natureza como matéria, a fiosofia descobriu a sua verdadeira aptidão. A ea estava destinado não somente o conhecimento mas a produção de mundos. Segundo Nietzsche, todo o rigor científico de Demócrito se justificava não pea intenção do conhecimento absouto, mas pea finaidade de construção de um universo inteigíve e viáve, ou seja, em harmonia com as condições subjetivas, universais e concretas da existência. Ora, na medida em que a concepção de mundo consistia em um objeto de criação, seu eemento era o mesmo da arte, a iusão. Todavia, no domínio do conhecimento a iusão acançou uma forma Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. 173

SOUZA, MARIA CRISTINA S. DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE. P. 161-176. sistematizada e cognoscíve, aém de estar a serviço da constituição da imagem da unidade da existência. Desse modo, Segundo Nietzsche, a cientificidade de Demócrito não se opunha ao caráter da poesia e não era estranha a ee. Ee afirma que entre a concepção de mundo de Demócrito e a poesia havia, na verdade, uma remarcáve afinidade, por vários aspectos, conforme citação de um fragmento póstumo de 1872-74, Demócrito, uma bea natureza grega, igua a uma estátua, fria em aparência, mas pena de um fogo secreto. O fogo secreto ao qua Nietzsche se refere é o éan poético que sustentava a fideidade à ciência de Demócrito. Neste sentido, a poesia estava presente, sobretudo, na crença e no entusiasmo de Demócrito peo saber, na sua entrega à ciência. A fé contempativa de Demócrito em seu sistema era digna de um poeta que se apraz diante da universaidade do mundo construído por sua arte. Esta crença o tornou poeta, mesmo que pouco houvesse de poesia em causa 9, como Nietzsche concui. Nietzsche também identifica a chama poética que aimenta Demócrito na certa ostentação que guardava seu modo eegante, direto e ordenado de escrever. A sua preocupação com o estio, a careza da exposição e a transparência das idéias evidenciava uma busca pea bea forma de seu sistema. Outrossim, ee atribui uma magnífica poesia à interpretação atomística de Demócrito, propriamente, às idéias simpes, precisas e caras, ao mesmo tempo, originais e sutis sobre a formação e os processos da natureza. Ee ançava sobre a natureza ohares exporadores e compiadores 9 NIETZSCHE, F. es phiosophes pré-patoniciens, Notas, p. 347. 174

buscando penetrar em seus eementos e mecanismos os mais ínfimos e compicados através de um método simpes, econômico e sistemático. A concepção mecânica dos fenômenos da natureza guardava uma poesia magnífica, substituindo todo eemento enigmático, compicado e desconhecido por eementos evidentes e inteigíveis através de narrativas e descrições expressas em imagens variadas, concatenadas e quase údicas, como se o cosmos tivesse sido formado e fosse sustentado por um eterno jogo de dados, no qua se faziam e se desfaziam combinações. O atomismo em si comporta uma poesia grandiosa. Uma chuva eterna de pequenos corpos diversos que caem com movimentos muito variados e caindo se emaranham de modo a formar um turbihão. A sutieza da aitoogia caracteriza Demócrito, como Nietzsche diz em um fragmento de 1872-74. Com efeito, Segundo Nietzsche somente após o conhecimento ter atingido o seu imite trágico, ou seja, ter descoberto na iusão, eemento fundamenta da arte, o imite de todo saber, com Empédoces, a fiosofia pôde se entregar sem reservas a sua função artística. Assim, Empédoces preparou Demócrito. Este justificou a arte sobretudo por descrever a origem e a unidade do cosmos como um magnífico processo artístico. Frente à potência da natureza, é a sua imagem estética que ee contempou: uma chuva maravihosa de átomos quedando e se chocando e, assim, formando pequenos e infinitos mundos. Compondo o sistema estético da natureza, Demócrito visava demonstrar que a representação estética correspondia à própria forma de manifestação da natureza. Kaagatos - REVISTA DE FIOSOFIA. FORTAEZA, CE, V. 4 N.7, INVERNO 2007. 175

SOUZA, MARIA CRISTINA S. DEMÓCRITO: O RACIONAISMO COMO REPRESENTAÇÃO ARTÍSTICA DO MUNDO, SEGUNDO O FIÓSOFO FRIEDRICH NIETZSCHE. P. 161-176. É a partir do conceito de matéria do átomo que Demócrito fundou e demonstrou o caráter artístico da natureza. A substância indivisíve, eterna e imutáve, em todo ugar idêntica do átomo, permitiu a Demócrito traçar a concernência entre o cosmos e o pensamento. Os critérios de objetividade da natureza: tempo, espaço e causaidade, representados pea atividade da matéria, que só mais tarde seriam repensados por Kant, correspondiam às próprias condições não só do pensamento, mas de toda apreensão do mundo. Conforme Nietzsche, toda a racionaidade e cientificidade de Demócrito deve ser compreendida segundo a necessidade de sistematização e fundamentação da iusão como substrato absouto e fundamenta não só do conhecimento mas da própria natureza. Não obstante a magnificência artística do sistema de Demócrito ee não foi compreendido e bem recebido por sua época. A grande parte de suas obras foi extraviada, restando para a posteridade somente aguns fragmentos. Para Nietzsche, no fundo, a civiização grega não estava preparada para viver segundo a representação artística do mundo. Tavez este tenha sido o motivo de Demócrito ter sido esquecido tão rapidamente peo próprio povo grego. 176