A CAVALARIA COMO IMAGEM DE MUNDO: a fotografia e as ambivalências da imagem THE CAVALRY AS WORLD IMAGE: the photography and the image s ambivalence



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A CAVALARIA COMO IMAGEM DE MUNDO: a fotografia e as ambivalências da imagem THE CAVALRY AS WORLD IMAGE: the photography and the image s ambivalence Ada Cristina Machado da Silveira 1 Resumo: O texto circunscreve aspectos da complexidade significacional de uma imagem técnica que atravessou um século e meio acumulando sedimentos oriundos da vida pública brasileira. Buscando-se adentrar o campo do imaginário que a circunda, percebe-se que se trata de uma imagem utilizada como arsenal para muitas batalhas, dada sua evocação do simbolismo da cavalaria. Ao conectar imagem e imaginário, a fotografia dos oito cavaleiros converteu-se num objeto simbólico. Em meio à ambivalência em que se inscreve, consagrou-se como texto fundador que, partindo da ordem familiar, social e política, concede precedência ao militarismo e o concebe como um poder organizador na vida brasileira. Palavra chave: Imagem. Fotografia. Imaginário. Abstract: The text limited aspects of signifying complexity of an imaging technique that spanned half a century accumulating sediments coming from the Brazilian public life. Seeking to enter the imaginary field that surrounds it, you realize that this is an image used as arsenal for many battles, given its evocation of cavalry symbolism. When connecting image and imaginary, the picture of the eight horsemen has become a symbolic object. Amid the ambivalence in which it is included, it was consecrated as a founding text, starting from the family, social and political, gives precedence to militarism and conceives it as an organizing power in Brazilian life. Keywords: Image. Photography. Imaginary. 1. Introdução O presente texto circunscreve aspectos da complexidade significacional de uma imagem técnica que atravessou um século e meio acumulando sedimentos oriundos da vida pública brasileira, buscando-se adentrar o campo do imaginário que a circunda. Uma imagem que provém do Segundo Reinado e permanece em sua transição para uma nova imaginária, decorrente da proclamação da República. Os requerimentos de legitimação simbólica, fruto de novas demandas sócio-políticas, apontam a indagação sobre como o registro fotográfico em questão alcançou estabilizar-se numa dada esfera de culto. Cabe perguntar o que a imagem técnica interpela, especialmente quando ela se converte em www.compos.org.br / page 1/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

material iconográfico, e a que determinações sócio-históricas ela atende. Expõe-se o caso de uma fotografia do panteão republicano, precessora daquilo que se tornaria inseparável na imaginária do século XX, a guerra e sua fotografia. Trata-se de uma imagem técnica utilizada como arsenal para muitas batalhas dada sua evocação do simbolismo inequívoco da cavalaria como matriz de sentido. Mesmo que nela não figurem cavalos, também não se encontra o semblante daquele que, provavelmente, foi seu grande motivador. A fotografia teria sua semiose reconhecida como um testemunho da caça à alteridade comum, o inimigo estrangeiro que ameaçava a soberania brasileira. Francisco Solano López, um homem que, personificando a governança do Paraguai, ao estar ausente na imagem, a ela concede reconhecimento. E é assim que a fotografia passou a integrar o acervo da Biblioteca Nacional, ao registrar a imagem de seus algozes, o comandante do Estado Maior e seu homem de confiança, cercados de seus achegados. Por outro lado, a fotografia em apreço inscreve sua performance no tema da cavalaria. A conservação da matéria cavaleiresca ainda no século XXI permite constatar como é possível alimentar a memória e posicionar uma faceta sua, o militarismo, para além dos regimes políticos. Em sua condição de imagem técnica, a fotografia reanima um passado remoto e penumbroso (SONTAG, 2006, p. 230), encerrando uma circularidade que a permite atestar a percepção histórica que ela, por sua vez, estimulou: La noción primitiva de la eficacia de las imágenes supone que las imágenes poseen las cualidades de las cosas reales, pero nosotros propendemos a atribuir a las cosas reales las cualidades de una imagen (SONTAG, 2006, p. 222). O texto está subdividido em cinco sessões. Após a introdução, apresenta-se uma www.compos.org.br / page 2/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

problematização semiótica da composição desde sua perspectiva formal, buscando delimitar o registro visual. Na terceira sessão, debatem-se aspectos da instituição da cavalaria e a imagem de mundo que convoca para, na quarta, contrastar as consequências da concretude do material fotográfico com aspectos de sua concepção imaginária. Ao final, articula-se a competência expressiva da fotografia com a ativação do imaginário político. 2. As armas e os brasões assinalados A fotografia teria sido tomada no final da Guerra da Tríplice Aliança, a popular Guerra do Paraguai (1864-1870). Trata-se de oito homens que, como poderia ocorrer a um bando qualquer, apeia de seus cavalos e interrompe a faina militar para posar, dado que, no século XIX, como agora, fotografar é conferir importância (SONTAG, 2006, p.49). O conjunto de homens permite sintetizar sua leitura prévia nalgumas singularidades, testemunhos e designação. Das singularidades aponta-se o desalinho de uma figura barbuda, o ar de ausência do tocador de corneta, os olhos crispantes de vários homens, o ar zombeteiro e a confiança do acotovelado, o improviso no fardamento. A imagem como testemunho certifica a existência de um grupo formal de oito homens liderados por um deles, organizados em função de um acontecimento de ordem militar. A designação permite identificar além dos homens munidos de espadas, uniformes, uma flâmula e corneta que concorrem para estabelecer a datação do acontecimento fotográfico (FIG.1): FIG. 1 - Os oito cavaleiros www.compos.org.br / page 3/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

Fonte: http://commons.wikimedia... Não é motivo do presente texto indagar a motivação histórica do porquê de oito homens haverem-se reunido um certo dia para um retrato conjunto. No entanto, algo do propósito do registro visual, seu fotógrafo e equipamento poderiam, talvez, esclarecer a natureza da demanda, se pessoal, coletiva ou institucional, com vistas a elucidar aspectos de sua inscrição imaginária. Na publicação organizada por Sales (2003) que selecionou fotografias significativas das coleções da Biblioteca Nacional e da Guerra do Paraguai, pouco está referido acerca das circunstâncias que proporcionaram o registro, seu tempo e lugar e, principalmente, a identidade de todos os indivíduos ali retratados. Como grupo que lutava a morte, os cavaleiros testemunham sua mobilização para um mandato supremo: dar fim ao mais sangrento conflito na história da América do Sul. Sua imagem técnica tem sido utilizada para fazer próxima uma realidade distante ou, também, a irrealidade que de seus feitos se projetou. Um historiador de fotografia uruguaio algo esclarece quando analisa os comentários registrados num jornal local sobre a atividade fotográfica do imigrante Masoni, instalado em Montevideo, os quais permitem recuperar o sentido de irmandade instalado entre brasileiros e uruguaios no período: www.compos.org.br / page 4/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

Durante la Guerra de la Triple Alianza, acontecimiento que incrementó notoriamente la labor de los fotógrafos, se ocupó de retratar a buena parte de la oficialidad brasileña según referencia de La Tribuna del 11 de abril de 1865: [ ] Nos parece que los señores oficiales brasileros deberían hacerse retratar en esa casa [estúdio fotográfico], para que al mirar sus retratos todos reunidos, pudiéramos decir: He aquí los retratos de los valientes jefes y oficiales brasileros que coadyuvaron en darnos la libertad (VARESE, 2013, p. 101). A composição, alinhando duas filas de cavaleiros, desacredita qualquer refinamento à usança na época. A vista frontal atesta a colaboração voluntariosa dos modelos. Os motivos para fotografar ainda não continham um apelo jornalístico, embora não se possa descartar uma certa consciência do horizonte histórico que viviam. No entanto, isso agora importa pouco frente à fortuna midiática que lhe foi conferida. Talvez para seus figurantes se tratasse de um registro do abraço da experiência. Velhos companheiros de guerra que sossegam um momento após sua cruzada ao inferno. Mas do semblante cerimonioso emerge algo ameaçador, o registro do mandato de um certo tempo presente quando albergava um determinado projeto. Antes de tratar disso, algum detenimento na imagem se faz necessário. 2.1. A espectralidade e os limites do registro visual A representação verbal de um registro visual situa o que Eco (2007) aponta como definição clássica da ecfrasis. Na presente situação, trata-se da tentativa de tradução intersemiótica de um nível a outro com vistas a esclarecer algo de seu propósito ou de suas competências. Na fotografia em apreço, observa-se o sentido da temporalidade firmado no acabamento circular nos cantos da imagem, emprestando um ar de época. Esse tipo de enquadre enseja relatar que um grupo de homens organiza-se para um retrato coletivo. São oito homens irmanados num mesmo fardamento escuro. Calçando botas e vestindo www.compos.org.br / page 5/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

cinturões com galões, calça, casaca e quepe idênticos. Apenas um tem os botões metalizados da casaca abertos, expondo um colete de mesmo aspecto, sobressaído em função de que somente foi abrochado o botão junto ao colarinho. Os bonés estão posicionados aleatoriamente sobre suas cabeças. Um homem sentado ao centro da imagem carrega uma flâmula em sua espada. Os membros das extremidades encerram um plano côncavo, com os membros sentados mirando para frente, enquanto os de pé miram ao centro do campo visual. As duas duplas do interior do grupo jogam papéis distintos. A dupla sentado-em pé da esquerda mira para fora, à direita do campo visual e a sua própria esquerda. A dupla sentado-em pé da direita mira a lente fixamente. São cinco os homens que miram diretamente a lente do aparato de registro visual: os homens do extremo esquerdo de baixo e de cima e talvez o do canto superior direito, ademais do homem que carrega a flâmula e o que está atrás dele. Três homens têm a mirada desviada: o homem de barba clara e o que detrás lhe respalda, mirando para sua direita (fora do quadro de imagem) e o homem do canto inferior direito que mira para sua esquerda (fora do quadro de imagem). Os três, portanto, enviam sinais de descentramento e vigilância aos cinco que afrontam o fotógrafo. Os quatro homens em pé, postados exatamente ao espaldar dos quatro homens sentados, estão encostados num grupo de três que se aparta do quarto homem. O quarto homem, ou o primeiro homem da direita para a esquerda da imagem, porta na mão esquerda uma corneta em cujas voltas distribuem-se seus dedos. Pode-se visualizar uma espada alinhada ao longo de sua perna esquerda e um bastão sobressai de sua espalda direita (FIG.2): FIG. 2 - O alinhamento das figuras na imagem www.compos.org.br / page 6/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

Fonte:elaboração sobre http://commons.wikimedia... A condição cavaleira afirma-se na presença dos rebenques sustentados pela mão direita sobre a perna do primeiro e do terceiro homem da esquerda para a direita da imagem. Eles suportam o braço esquerdo apoiado sobre a espada na altura do coração. A resolução na empunhadura da linha de quatro espadas levemente inclinadas à esquerda da imagem pode ser tomada como evidência de uma formação disciplinar comum. Distribuídos em duas fileiras de quatro corpos, uma postada à frente da outra, a imagem exibe quatro homens sentados acotovelados que mantêm suas pernas abertas. Estão sobre cadeiras coladas lateralmente. Contam-se pelo menos seis pernas de cadeiras na imagem e quatro travas. O braço direito de quatro homens está flexionado, descansado sobre a perna direita. A proximidade dos corpos permite, no entanto, o desafio insolente de um antebraço apoiado no ombro de seu companheiro da esquerda, bem como o apoio do outro antebraço sobre o ombro do homem sentado a sua frente. O ar folgazão do acotovelado denuncia seu enfado com o prolongado período que se devia sustentar a pose até que todo o grupo estivesse devidamente alinhado e o registro luminoso produzisse marcas na película com sais de prata. O cotovelo confiado sobre o ombro do colega desafiaria principalmente velhas condutas de decoro na www.compos.org.br / page 7/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

conduta e na imaginária, conforme recorda Sontag (2006, p. 239). Por outro lado, sua irreverência frente à gravidade do momento evidencia tergiversar entre os domínios privado e público na composição do grupo. Ademais, o espaço entre seu tórax e o do homem a sua esquerda evidencia o giro de seu corpo em anteparo ao centro do grupo, bem como seu apoio físico sobre os ombros dos dois companheiros que o cercam ao lado e à frente. Os dois homens do centro da linha superior têm seus corpos eretos e quase sem inclinações. O homem em pé que sustenta com seu ombro o cotovelo do homem da lateral direita possui o braço esquerdo dobrado com o punho encostado à linha de botões de seu traje. Ele, por sua vez, mostra seu cotovelo encostado ao tórax do homem ao lado esquerdo que mantém o corpo levemente inclinado na direção do companheiro que lhe aponta o cotovelo (FIG.3): FIG. 3 - Os pontos de contato Fonte: elaboração sobre http://commons.wikimedia... Os oito homens estão agrupados. Sete corpos amembrados pelo contato físico e um oitavo corpo desmembrado do grupo. O equilíbrio dos volumes da linha superior força uma perspectiva que se angula à direita do espectador no extremo superior, enfatizada pela distância do tocador de www.compos.org.br / page 8/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

corneta em pé; ele encontra-se afastado dos outros três que também se encontram em pé. O homem à extrema esquerda superior da imagem está adentrado ao quadro e desguarnece o espaldar do seu companheiro à frente. A perspectiva do grupo tem seu ponto de fuga fixado no ângulo superior direito, justo no espaço isolado do corpo do corneteiro que o inclina para a esquerda do grupo, em direção ao extremo da imagem. A estatura corporal dos homens em pé é bastante aproximada, sendo o homem localizado no centro, à esquerda da imagem, um pouco mais baixo que os demais. A corporeidade dois oito homens é aproximada, sobressaindo-se o avantajado abdome do homem de barba clara sentado na linha à frente. Em sete dos cavaleiros a tez é clara e num único é escura. Os corpos sentados das extremidades estão relaxados sobre as cadeiras. Um tem as pernas retraídas e o outro as mantém distendidas. Os quatro mantêm os joelhos abertos como é próprio da fisicultura dos cavaleiros. As cabeças estão alinhadas frontalmente em direção ao fotógrafo. Os queixos estão colocados de maneira reta e um único se destaca pelo queixo elevado, imprimindo um ar de desafio com sua figura, apoiada ademais sobre seu companheiro da esquerda e o de baixo, os quais facultam a sustentação de seus cotovelos sobre os ombros. As faces voltadas para a lente concedem um ar solene e voluntário ao ato de registro visual. Os olhos crispados de vários deles interpõem um elemento resolutivo ao grupo e incrementam sua comunhão de interesses. A cavidade ocular do terceiro homem da esquerda para a direita da linha superior não permite a visualização de seus olhos. O registro do olhar do homem de tez escura não contou com luz suficiente para conceder-lhe nitidez, ou fora talvez proporcionada por um repentino movimento de cabeça no momento do disparo, ou por um defeito ótico na lente. A inflexão das cabeças para frente, com as duas dos extremos da linha superior levemente www.compos.org.br / page 9/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

inclinadas para a esquerda e para a direita, constroem um fechamento do conjunto; junto às poses estudadas dos corpos, elas proporcionam um sentido de grupo. O abraço do homem localizado na linha superior na extrema esquerda da imagem abarca fraternalmente o grupo, que se abre em direção ao ponto de fuga localizado no canto superior direito pelo sensível deslocamento lateral do corpo do homem situado naquele extremo, embora a profundidade de seu corpo possa ser tomada como a mesma dos demais e ele se incorpore com um leve giro à esquerda do grupo, fechando a borda superior direita da mesma maneira que sucede com o homem do outro extremo. O deslocamento de seu corpo em relação ao grupo dos outros três homens é ampliado pela pequena inclinação em favor do homem em pé a seu lado direito (canto esquerdo superior da imagem). Essa leve inclinação do corpo do homem do canto superior direito em favor do grupo concede um contraponto de união aos membros em seus extremos superiores e coloca um volume comum de anteparo localizado no canto superior direito. Na linha de fundo estão quatro homens em pé e, a sua frente, quatro homens sentados. Se a linha superior evidencia alguma hierarquia, ela não existe no pleno alinhamento da linha inferior de homens sentados a não ser pela presença discreta da flâmula que figura na espada do terceiro homem da esquerda para a direita onde se pode ver as letras PJI e a coroa imperial sobreposta. Um outro detalhe que rompe com a uniformidade consiste nos galões no ombro do homem que ostenta a flâmula e o distintivo ao lado superior esquerdo do peito. O homem ao seu lado esquerdo, muito mais jovem, também ostenta um distintivo semelhante no peito. Em dois homens o boné tem sua copa em pano claro; um deles é o que sustenta a corneta e o outro assenta-se no canto inferior esquerdo. FIG. 4 - A suspensão do corneteiro www.compos.org.br / page 10/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

Fonte: elaboração sobre http://commons.wikimedia... O alinhamento concede alguma primazia à localização de um músico cujo corpo, suspendido lateralmente dos demais, lhe singulariza visualmente (FIG.4). Talvez a função de tocador de corneta lhe tivesse acostumado a guardar uma certa distância para empunhadura do instrumento, preservando os colaterais do volume da emissão sonora: Não é necessário lembrar que todas as ordens de combate eram transmitidas pelo corneteiro, que sem sombra de dúvidas guarda consigo o espírito das comunicações no combate (CARVALHO, s.d, hipert.). A masculinidade vem enaltecida através dos pelos na cara num tempo em que os militares ostentavam barbas. Atentando para as barbas como objeto semiótica (DUARTE, 2000, p. 53), notam-se dois cavanhaques e uma barba rala. Em outros cinco, as caras apresentam bigode e barba nutrida, três escuras e uma delas muito clara, que poderia ser loira ou branca. As barbas aparadas confirmam o asseio pessoal para o ato fotográfico. A idade dos membros do grupo pode ser inferida por poucos elementos, dada a falta de nitidez da cópia digital disponível. A falta de foco no homem de tez escura dificulta perceber sua idade. A aparência dos outros sete homens indica que talvez existam cinco mais jovens que os dois possivelmente mais velhos, quais sejam os dois homens sentados centralmente. O homem de barba clara parece ser o mais velho. Sua ascendência pessoal sobre os demais talvez possa ser www.compos.org.br / page 11/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

deduzida pelo cotovelo do homem que o respalda, o qual estabelece distância com relação ao corpo do homem que lhe cerca pela esquerda. O desalinho na figura do homem de barba clara vem evidenciado pelo volume de seu ventre, cuja peça interior de cor clara se evidencia em meio aos botões do colete, impossibilitando-lhe fechar os botões da casaca. Ele exibe-se como que de peito aberto e isso lhe empresta um ar de franqueza, ademais enfatizado nos pelos leoninos. A independência de seu braço direito sobrepondo o cotovelo sobre o homem jovem daquele lado acrescenta-lhe autonomia e contrapõe-lhe ao angusto homem de sua lateral esquerda, também ao centro da imagem. Emparelhando-lhe talvez em idade, o último mostra um corpo delgado em atitude contrita, enfatizada pelos olhos achinesados. O sentido da espacialidade está esvaziado pela falta de adereços no cenário despojado. O grupo assenta-se sobre um tapete que forra retangularmente o piso e que se encontra levemente franzido à frente, denotando certo improviso ao momento. O enrugamento do tapete e o toque desordenado dos bonés cobrindo as cabeças impõem um contraste com a corporeidade hierática do grupo. Pressa não combina com solenidade; talvez houvesse muitas outras imagens a serem produzidas. Mas, em meio a tudo, o que pensariam esses homens naquele ato tão inédito? Conjeturariam sobre o registro da imagem de si mesmos para a história? Estariam cumprindo mais um ato determinado exteriormente, impregnados do espírito do dever frente a mais uma ordinária tarefa dentre tantas outras? Seja no afã de afirmar a si próprios ou respondendo à ordem heterônima, seu registro fotográfico encara diversas fronteiras semióticas, advindas de sua circulação em meio a mútuas influências de diversas matérias em presença. O entendimento de que se trata de uma foto celebratória da culminação exitosa da missão de um grupo de homens se impôs frente à seleção ocorrida em meio a uma farta mitologia. As incorporações que se solidificaram numa densa interpenetração e que hoje adereçam as legendas que a acompanham são produto de www.compos.org.br / page 12/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

intercâmbios resultantes de concorrências desiguais e de longa duração. Do contexto bélico em que emerge, expondo-se à expectativa social mobilizada no conflito plurinacional de que é flagrante, a fotografia encarou o contexto monárquico e o advento da república, promotor de tantos heróis militares, de que é prova a recuperação do heroísmo do alferes Joaquim José da Silva Xavier, o Tiradentes. As armas e os brasões assinalados na fotografia buscariam atender ao verso contido no Canto I, 1-2 de Os Lusíadas de Camões: "Que da Ocidental praia Lusitana,/Por mares nunca dantes navegados/passaram ainda além da Taprobana,/Em perigos e guerras esforçados/mais do que prometia a força humana/e entre gente remota edificaram/novo Reino, que tanto sublimaram". 3. A cavalaria como imagem de mundo A cavalaria é uma instituição político-religiosa, social moral e estética. Sua existência no Ocidente e seu transplante, como imagem de mundo, do Velho para o Novo Mundo representou o triunfo da utopia cervantina, ao prolongar a errância do Quixote. Como herdeira da matière de Bretagne, consagrada pela matriz celta, a cultura brasileira preservou seu ideal. Um breve inventário da imaginária cavaleiresca demonstra a transculturação Euro-Ocidental para o contexto platino, decorrente da aportação no Novo Mundo, configurando a retomada da empreitada do Quixote, conforme suscitou o crítico Martín de Riquer (1967): www.compos.org.br / page 13/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

Los caballeros españoles leen lãs novelas de la Tabla Redonda y luego, com mayor avidez si cabe, el Amadis de Gaula [...]. Um siglo después estos hombre y hotros parecidos volverán a sona em empresas similares. No serán empresas em Borgoña, Inglaterra, Alemania, Itália, Constantipla o el mar Negro, sino em Méijico, el Peru, Chile, el mar del Sur, etc. Sin nuestros caballeros andantes del siglo XV dificilmente huvieran existido los conquistadores de Índias, tan dados también a la lectura de livros de caballerías. Don Quijote, como estaba loco, siguió el itinerário que podia llevar a unas empresas em su siglo ya caducadas; si hubiesse estado sano hubiera hecho lo mismo que tantos otros contemporâneos suyos: desde la Mancha dirigirse a Sevilla, y de allí embarcarse para Índias, donde era mucho más factible que em Puerto Lápice meter las manos hasta los codos em esto que llaman aventuras (RIQUER, 1967, p 170). Já entre nós, Ferreira (2012, p. 304) recordaria que a presença da imagem mítica da cavalaria no Sertão conta com a força em distintos repertórios como o cordel e ficcionistas consagrados. Graciliano Ramos e José Lins do Rego, os cavaleiros Diadorim e Romulado de João Guimarães Rosa. De Ariano Suassuna, seu enredo exibido já na capa e no título de capítulos da Pedra do reino mergulham a leitura em pleno no espírito da cavalaria. Quando a cavalaria, já com a expansão da classe burguesa e da ordem industrial, conheceu representações plurais no Brasil surgem imagens reveladoras. Na filmografia, personagens destituídos como o jagunço Antonio das Mortes ou o vaqueiro Manuel em Deus o diabo na terra do sol, de Glauber Rocha, referendam o potencial revolucionário da cavalaria. Compondo o farto acervo de representações e materialidade do imaginário figuras de trato ficcional como: Capitão Rodrigo, em "O tempo e o vento" de Jayme Monjardim; "Netto perde sua alma" de Tabajara Ruas e Beto Souza que saíram da literatura para o cinema, ou a matriarca "Anahy de las Misiones" de Sergio Silva. A intertextualidade e o encantamento brotam ainda de telenovelas como Cordel encantado e Meu pedacinho de chão, dentre outras. Sem esquecer da música de Elomar ou de Zé Ramalho que convocam multidões no campo e na cidade. Pode-se evocar a precessão de imagens no tema do que se considerou o encontro do arcaico com a modernidade. A imaginária brasileira da cavalaria conta com narrativas variadas, como o www.compos.org.br / page 14/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

general Rondon entre os Nambiquara e suas linhas telegráficas (LEVI-STRAUSS, 1970, p.243); a assunção de Vargas ao poder, marcada pelo ato de amarrar os cavalos no obelisco carioca; o bando de Lampião igualmente consagraria a produção de imagens técnicas. São, a propósito, esclarecedoras as análises de Ferreira: Alguns dos temas de cavalaria continuam seu caminho entre nós, de uma ou outra maneira, a exemplo das Histórias do Imperador Carlos Magno, lidando com as ideias de bravura, honra e heroísmo. Este texto, em suas seguidas e ilustradas edições, desempenhou o papel de importante matriz para nossa cultura e se constituiu num paradoxo: tão conservador quanto revolucionário. O livro baseia-se também em conversão religiosa e cultural, um dos mais importantes eixos de percepção de nossos tempos coloniais (FERREIRA, 2012, hipert.). A consideração de que a cavalaria erigiu-se em imagem paradoxal, congregando apelos conservadores e revolucionários encerra os sentidos ambivalentes presentes em tantos exemplos. Pactos agônicos tensionam os sentimentos encontrados tanto em perspectivas conservadoras como revolucionárias. O que pode ser lido na polêmica em torno da figura do Cavaleiro da Esperança, alcunha que o comunista Jorge Amado cunhou para celebrar o heroísmo de Luis Carlos Prestes em sua marcha Brasil adentro. Voltando à capacidade representacional da imagem técnica em questão, evidencia-se como, ao largo de seu século e meio, seu potencial agenciador da atualização seja do conceito de nacionalismo, um valor que atualmente, frente à afirmação da cidadania, apresenta-se um tanto descreditado politicamente, ou do patriotismo, revelam-se pertinentes. Para eles pode-se convocar as impressões de Durand sobre o Brasil: www.compos.org.br / page 15/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

Paradoxalmente porém, essas duas culturas com um imaginário tão discordante criaram por meios opostos um patriotismo extremamente forte. De Portugal, a nação unificada mais antiga da Europa moderna, unida por mitolusismos [...] E o do imenso império tão diverso devido às suas raças, às suas misturas, aos seus desnivelamentos culturais, às suas desigualdades econômicas e sociais, mas onde índios do norte, escravos negros do Nordeste, paulistas de origem portuguesa, alemã e italiana, ficam extraordinariamente unidos quando a mátria se encontra ameaçada. A mais recente guerra nacional, a guerra com o Paraguai, fornece-nos disso múltiplos exemplos (DURAND, 1996, p. 203). Nesse percurso, a fotografia em questão encontra um lugar paradigmático com o retorno do militarismo ao poder em 1964. Promovida a texto fundador da república, seu simbolismo teria tido vigor para animar os esforços legitimatórios do regime militar sem esgotar seu fôlego ambivalente. Seu caráter espartano favorecia a vinculação contemporânea da cavalaria ao ethos militar. 4. Um Estado Maior dos confins do Império Convém recordar que o imaginário está no campo filosófico da ilusão, do encantamento e da magia. A partir do imaginário concebe-se a construção e consolidação de arquétipos enraizados e significados que orientam o consumo de imagens técnicas. A imaginária, tomada como conjunto de imagens e suas relações, traduz a percepção de uma realidade exterior. Os produtos desse amálgama instigam a percepção de um diálogo intricado, no qual cabe sustentar a indagação adiantada ao começo: o que a imagem técnica aporta para as manifestações imaginárias? Qual é sua novidade? Sontag apresenta uma leitura de suas ambivalências quando afirma: Toda fotografía tiene múltiples significados; en efecto, ver en forma de fotografía es estar ante un objeto de potencial fascinación (SONTAG, 2006, p.42). A problemática da relação com o significante conta com vários percalços e permite realizar alguns cercos. Munido das armas da ficção, Erico Verissimo notabilizaria seu protagonista como monarquista. No entanto, a história reconhece Joca Tavares como líder www.compos.org.br / page 16/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

guerreiro que, de monarquista passou a ser republicano, remanescente, como os demais cavaleiros, dos troncos povoadores dos campos neutrais entre o império português e espanhol, provenientes das ilhas da Madeira e dos Açores. Imbuídos da missão de dilatação da fé e do Império, marcaram a ferro e a fogo as disputas nos confins meridionais do que hoje é o Brasil. É dali que emerge o Estado Maior de Joca Tavares, um corpo militar integrante da Guarda Nacional e composto por Voluntários da Pátria. E qualquer semelhança sua com imagens provenientes do conflito norte-americano em sua Guerra de Secessão em sua apropriação pela indústria de westerns pelo mundo, neste sentido, não é mera coincidência, mas produto de convergência tecnológica. A legenda da fotografia veiculada em Wikipedia reconhece que: O então Coronel João Nunes da Silva Tavares, conhecido como Joca Tavares (terceiro sentado, da esquerda para a direita) e seus auxiliares imediatos, incluindo Francisco Lacerda, mais conhecido como Chico Diabo (terceiro em pé, da esquerda para a direita). Seu conteúdo é proveniente de Salles (2003, p.180) que atesta que o registro teria ocorrido em um estúdio logo após o término do conflito. Retomando-se a ecfrasis, ou tradução intersemiótica, verifica-se que a ausência de uma imagem para celebrar o fim do confronto teve na trova popular uma representação da extinção do algoz, pois ainda há quem a recorde numa de suas variantes: O cabo Chico Diabo [Francisco Lacerda], do diabo do Chico [Francisco Solano López] deu cabo. Do cadáver de Solano Lopez não há registro fotográfico. Arbitrariamente pode-se apontar que 27 anos após sua morte lhe sucede o registro fotográfico de Antonio Conselheiro, comentado por Euclides da Cunha em Os Sertões, do suicídio de Vargas ou do abate de Ernesto Che Guevara, na Bolívia, quase um século depois, compõem a galeria dos troféus iconográficos do republicanismo. A fotografia aporta elementos de efetividade, funcionalidade e horizontalidade, transmitindo, www.compos.org.br / page 17/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

pela via do militarismo, também uma figura de modernidade da imagem da cavalaria: Las fotografías son un modo de apresar una realidad que se considera recalcitrante e inaccesible, de imponerle que se detenga. O bien amplían una realidad que se percibe reducida, vaciada, perecedera, remota. No se puede poseer la realidad, se puede poseer (y ser poseído por) imágenes (SONTAG, 2006, p. 229). O êxito da fotografia incorpora a tensão contraditória da cavalaria e permite classificá-la No universo mítico dramático (regime noturno), [onde] a ação predominante é reunir ; ela abriga o lema cavaleiresco de empreender o combate e fornece suporte a imagens como a do porvir, a da roda, a da androginia, a do deus plural, que são capazes de harmonizar contradições através do tempo (BARROS, 2009, p.187). Pode-se indagar sobre os vínculos entre os oito homens. Isso equivale a inquirir sobre o grau de parentesco entre eles, antes que a hierarquia. O jovem que apoia os cotovelos em dois outros homens seguramente o fazia por intimidade pessoal. Provavelmente ele e os outros dois gozassem de parentesco. O negro tocador de corneta poderia ser um filho de escravos do comandante. Talvez ele estivesse alforriado ou prestes a sê-lo. Os dois homens mais velhos são antigos companheiros de guerra, aparentados, talvez até mesmo compadres. Seguramente haviam já compartilhado a perda de entes queridos em outras batalhas. Noutro sentido, como aponta Sontag sobre o verdadeiro primitivismo moderno, é a fotografia que confere realidade aos oito cavaleiros e seu mandato. A imagem ilumina um tempo de trevas e percorre um trajeto que nutre a construção da identidade brasileira. A guerra do Paraguai é recordada como o conflito ideológico que marca o auto-reconhecimento do Brasil como unidade que se enfrenta ao outro ainda dentro do marco do olhar colonial (JAMESON, 1995). Imagem produzida na maior conflagração internacional em que se envolveu o Império do Brasil, erigiu-se como elemento luminoso no imaginário republicano. Assim, ela enfrenta a construção da nacionalidade em contextos coloniais e pós-coloniais. Com seu apoio, instaurou-se o www.compos.org.br / page 18/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

republicanismo, consolidando em seu seio o militarismo como força política. Os feitos desse Estado Maior produziriam dois barões do Império. Joca Tavares, além disso, foi distinguido com a denominação de localidades, ruas e praças. Renegaria posteriormente seu título nobiliárquico Barão de Itaqui - em favor do republicanismo para, em 1893, deflagrar a Revolução Federalista e coadjuvar noutro capítulo sinistro na história, aquele que envolve a matança por degolas na Lagoa da Música. Suas andanças, como sua fotografia, testemunham o apelo que um dia fez a seu oponente, o general Telles, em uma carta a ele dirigida: saí dos seios das famílias e dos entrincheiramentos e vinde aos nossos arraiais (TAVARES, 2013, hipert.). Assim, mais que permitir-se fotografar para produzir um documento de modelos que pousam e concedem ser mirados, os fotografados, ao colocar-se frente a uma câmera escura, desataram a ordem instrumental que expôs sua figura, dispondo-a ao serviço do Estado e também da indústria cultural: Las câmaras implantam la mirada instrumental de la realidad al acopiar información que nos permite reacciones más atinadas y rápidas a lo que ocurre. Desde luego, la reacción puede ser represiva o benévola: las fotografias de recnocimiento militar contribuyen a extinguir vidas, los raios x a salvarlas (SONTAG, 2006, p. 246-7). Ao conectar imagem e imaginário, a fotografia dos oito cavaleiros converteu-se num objeto simbólico, saiu da família e da trincheira e adentrou a sociedade. Consagrou-se como texto fundador que concede precedência ao militarismo e o concebe como um poder organizador na vida brasileira: Aunque un acontecimiento ha llegado a significar, precisamente, algo digno de fotografiarse, aún es la ideología (en el sentido más amplio) lo que determina qué constituye un acontecimiento (SONTAG, 2006, p. 36). Portanto, nada do que aqui se recolheu seria possível sem a relevância histórica que os feitos guerreiros ganharam na construção da nacionalidade, o que corroborou para estruturá-los como acontecimentos de nossa memória social e política. E uma fotografia que enfatiza a colateralidade fraterna e deshierarquizada aí cobra seu valor. Por fim, reclama-se comentar que, se o Quixote no século XVII já se erigia como uma sátira www.compos.org.br / page 19/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4

contra os livros da cavalaria, como é possível sustentá-la depois da critica demolidora de Cervantes. O que mantém atrativas as imagens que falam do mundo da honra, hombridade e liberdade negativa (sem condicionamentos) nos tempos atuais? Uma resposta consiste em ponderar que a condição liminar daqueles companheiros em armas, liberados em suas paixões, sobrevive à ação deletéria do tempo e de seu horizonte histórico. Como sujeitos passionais, sua ação franqueou-se devido à hipostasia suposta pelo grande conflito, elemento que perduraria e concederia substância às aventuras do republicanismo contemporâneo. Quiçá, o precário equilíbrio entre solenidade e improviso plasmado na imagem configure uma sublimação da institucionalidade emprestada da cavalaria ao nascente e ainda frágil republicanismo. 1 Pesquisadora do CNPq, Professor associado IV da Universidade Federal de Santa Maria, membro do quadro permanente do PPGComunicação, adac.machadosilveira@gmail.com Referências BARROS, Ana Taís P. A permeabilidade da fotografia ao imaginário. Fronteiras - estudos midiáticos. São Leopoldo, V. 11, Nº 3, set-dez 2009. p. 185-191. CARVALHO, Vinícius M. de Observações a cerca da música militar na guerra do Paraguai. s.d. Disponível em: http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/mmgp.pdf. Acesso em: 10 out 2013. DUARTE, Elizabeth B. Fotos & Grafias. São Leopoldo: Unisinos, 2000. DURAND, Gilbert. Campos do imaginário. Lisboa: Instituto Piaget, 1996. ECO, Umberto. Quase a mesma coisa: experiências de tradução. São Paulo: Record, 2007. FERREIRA, Jerusa Pires. A cavalaria no Sertão. 14 março 2012. Disponível em:http://www.ecsbdefesa.com.br/defesa/fts/mmgp.pdf editora.fflch.usp.br/sites/editora.fflch.usp.br/files/297-304.pdf. Acesso em 14 março 2012. JAMESON, Fredric. Espaço e imagem. Rio de Janeiro: UFRJ, 1995. JOCA TAVARES. Disponível em: http://commons.wikimedia.org/wiki/file%3ajoca_tavares_chico_diabo_and_others.jpg. Acesso em 20jan2013. www.compos.org.br / page 20/21 / Nº Documento: 5DBCFB90-580F-475B-B888-5934A4C020D4