UM SHOW DE OPINIÃO: HISTÓRIA E TEATRO NO BRASIL REPUBLICANO



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Transcrição:

UM SHOW DE OPINIÃO: HISTÓRIA E TEATRO NO BRASIL REPUBLICANO Fernanda Paranhos Mendes Universidade Federal de Uberlândia ferp_mendes@yahoo.com.br O presente trabalho, intitulado Um show de opinião: história e teatro no Brasil republicano, está vinculado ao projeto da profa. dra. Kátia Rodrigues Paranhos, Pelas bordas: história e teatro na obra de João das Neves e foi recentemente aprovado pelo CNPq como projeto para iniciação científica. Ambos os projetos de pesquisa pretendem investigar os significados das práticas políticas e culturais do chamado teatro popular no Brasil a partir do golpe de 1964, estabelecendo assim a importância da constituição dos grupos de teatro considerados independentes e dos dramaturgos que neles se integravam, para tanto torna-se vital a análise de um desses grupos de teatro, o Grupo Opinião (1964-1980) voltado para uma proposta de engajamento social e político. Diante disso, propõe-se como desdobramento dessas reflexões a análise do musical Show Opinião, encenado no final de 1964, que permite uma aproximação de duas vias culturais que estiveram presentes no cenário político do Brasil após o golpe: o teatro e a música. Ambos desempenharam papéis determinantes na sociedade brasileira, sobretudo entre artistas e intelectuais que encontravam nas artes uma eficiente forma de transmissão da consciência política, bem como da valorização da cultura popular. Essas temáticas representavam a base da proposta do musical Opinião, com a finalidade de trazer à tona discussões acerca do popular e de suas representações culturais recheadas de reflexões sociais. O ambiente de tensão instaurado, que veio a incentivar a montagem do Show Opinião é, inegavelmente, um tempo contido de historicidade, por estar munido de questões que abarcam os acontecimentos sociais, políticos e culturais de todo um período. O teatro, no entanto, se destaca nesse contexto por se organizar em posição de luta contra o regime, mantendo assim sua essência militante; ora, o teatro é por natureza, uma criação oposicionista, discordante, nascida de algum tipo de insatisfação essencial. 1 Nesse ínterim, o grupo de artistas que esteve ligado ao Centro Popular de Cultura (CPC) da UNE, se reúne com o intuito de criar um foco de resistência e protesto àquela situação. É então produzido o show musical Opinião, a primeira manifestação 1 MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado. 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Anevir Editora, 1979, p. 19.

teatral de vanguarda após a decretação da ditadura, com Zé Kéti, João do Vale e Nara Leão (depois substituída por Suzana de Moraes e Maria Bethânia), cabendo a direção a Augusto Boal. O espetáculo apresentado no Rio de Janeiro, em 11 de dezembro de 1964, no Teatro Super Shopping Center, marca o nascimento do grupo, bem como do próprio teatro, que virá a se chamar Opinião. Os integrantes do núcleo permanente eram Oduvaldo Vianna Filho, o Vianninha, Paulo Pontes, Armando Costa, João das Neves, Ferreira Gullar, Thereza Aragão, Denoy de Oliveira e Pichin Plá. Embora o pretexto para a realização da peça fosse embasado no levantamento de uma problemática diretamente ligada aos acontecimentos políticos de então, o show foi organizado de improviso. No famoso Zicartola 2, o bar do sambista carioca Cartola e sua esposa Zica, ocorriam reuniões de músicos, artistas, estudantes e intelectuais que resultavam em discussões a respeito do despotismo dos militares, da ilegalidade imposta às artes engajadas, dos problemas do povo. Foi este o meio que tornou possível a união de interesses de experientes dramaturgos e músicos de carreiras distintas que resultou num roteiro inédito: um espetáculo musical que continha testemunhos reais, música popular, questionamentos e estatísticas da realidade social do Brasil 3. Tanto o enredo quanto o elenco eram puramente heterogêneos, e talvez seja este o motivo pelo qual o Opinião tenha começado sua trajetória com sucesso. O grupo privilegiou desde a estréia do show a arte popular, abrindo espaço para apresentações com compositores de escolas de samba carioca, influindo não apenas na mudança do gosto do público como, por intermédio dessa mescla de espaços, facilitando a disseminação da cultura periférica nos centros de divulgação. Assembléias, reuniões e demais manifestações de protesto da categoria teatral faziam do Grupo Opinião seu epicentro nos primeiros anos após o golpe militar. Para João das Neves, que dirigiu o Opinião por dezesseis anos: O (...) trabalho era fundamentalmente político e, assim pesquisar formas nos interessava e interessa muito. (...) A busca em arte não apenas estética ela é estética e ética ao mesmo tempo. Eu coloco no que faço tudo o que eu sou, tudo o que penso do mundo, tudo o que imagino da possibilidade de transformar o mundo, de transformar as 2 Ver CASTRO, Maurício Barros de. Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2004. 3 Um dos pontos mais distintos do Show Opinião são as estatísticas citadas no decorrer do espetáculo. Entre canções e falas, fazia-se um corte para transmitir dados reais da sociedade brasileira, como por exemplo a porcentagem de êxodo rural no início da década de 1960. Essa colagem é uma característica do teatro de teor político, que cruza cenas fictícias com realidade. Sobre esse aspecto pretendo aprofundar a posteriori. Ver BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1969.

pessoas. Acredito na possibilidade da arte para transformar. 4 (grifo meu) Podemos dizer que o cerne do Show Opinião estava na união da música com o teatro político, união esta que possibilitou a divulgação dos chamados novos lugares de memória: o morro (favela + miséria + periferia dos grandes centros urbanos industrializados) e o sertão (populações famintas, manipuladas pelo imaginário conservador, o messianismo religioso (...), o coronelismo 5. Através da música as interpretações e discussões a respeito dessas realidades fluíam no espetáculo, alternadas por depoimentos dos atores que compartilhavam fora do palco as mesmas dificuldades cantadas por eles. É o caso de João do Vale (nordestino retirante) e Zé Kéti (morador de uma favela carioca). A antiga musa da bossa nova, Nara Leão, acabava por personalizar a classe média que, embora não perecesse das mesmas mazelas, emergia na postura de engajamento e se posicionava como representante de uma burguesia ativa, questionadora da realidade social. Esse movimento de aproximação das diferenças num palco de teatro é conduzido por uma postura essencialmente cepecista, uma vez que nos CPC s o principal lema era portar-se como transmissor de uma mentalidade revolucionária para o povo e assim atingir a tão utópica revolução social 6. Não poderia ser diferente, pois os dramaturgos do Opinião, como Vianninha e o poeta Ferreira Gullar, eram membros ativos do Centros Populares de Cultura e utilizavam suas peças, inclusive o musical Opinião, como meio de fazer emergir na platéia valores novos e uma capacidade mais rica de sentir a realidade(...) 7 no intuito de estabelecer uma troca entre os atores e seu público, ou seja, uma exposição das problemáticas que se faziam visíveis no desenrolar do musical e que tinham seus significados absorvidos pela platéia. Mas não só a junção de música e teatro tornam o Show Opinião um marco. Sua relevância histórica faz-se, dentre outros vários motivos, pelo meio no qual foi gerado; a estréia do show ocorreu quando somava menos de um ano do golpe militar, e é tida como a primeira expressão artística de protesto contra o regime. A respeito disso, comenta Augusto Boal: Eu queria que escutassem não apenas a música, mas a idéia que se vestia de música! Opinião não seria um show a mais. 4 João das Neves apud KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Opinião: para ter opinião. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2001, p. 58. 5 CONTIER, Arnaldo Daraya. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História, v. 18, n. 35, São Paulo, 1998, p. 4. 6 Sobre a noção de povo para os integrantes do CPC ver MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982, p. 59-60. 7 KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena, op. cit., p. 54-55.

Seria o primeiro show de uma nova fase. Show contra a ditadura, show-teatro. Grito, explosão. Protesto. Música só não bastava. Música idéia, combate, eu buscava: música corpo, cabeça, coração! Falando do momento, instante! 8 Também chama atenção a constituição geral do espetáculo que, em forma de arena, não dispunha de cenários, somente de um tablado onde os três atores encenavam situações corriqueiras daquele período, como a perseguição aos comunistas, a trágica vida dos nordestinos e a batalha pela ascensão social dos que viviam nas favelas cariocas. Tudo misturado com música. O repertório, embora fosse de compositores variados, percorria uma linha homogênea de contextos regionais, como o baião e o samba, estilos musicais marginalizados pelo Estado, que no Opinião tiveram seu devido destaque. As músicas cantadas representavam uma fala alternativa e ilustrativa no musical. Em Borandá, de Edu Lobo, Nara Leão embarca numa voz melancólica a tristeza dos retirantes que, por falta de água, são obrigados a abandonar suas casas: Vamborandá/ Que a terra já secou, borandá/ É, borandá/ Que a chuva não chegou, borandá/ Já fiz mais de mil promessas/ Rezei tanta oração/ Deve ser que eu rezo baixo/ Pois meu Deus não me ouve não. Já em Carcará, sucesso de João do Vale, conta-se a história da ave sertaneja através de minuciosas metáforas sobre sua valentia e coragem; nessa canção é possível perceber a relação que se faz do carcará com a ditadura militar, que acaba destruindo destemida os que se opunham em seu caminho. A letra diz: Carcará/ Pega, mata e come/ Carcará/ Não vai morrer de fome/ Carcará/ Mais coragem do que homem/ Carcará/ Pega, mata e come 9 O objetivo de dar ao marginalizado seu devido lugar social não era mérito exclusivo do Opinião, basta lembrar de Eles não usam black tie, de Gianfrancesco Guarnieri. 10. Contudo, o formato musical e o roteiro não cronológico diferenciam o show pela afinidade que se dá entre palco e platéia. O público se vê nas canções, nas críticas e testemunhos encenados, se identifica. O pressuposto de partir da representação da realidade se alinha com a perspectiva de teatro verdade e implica em um ambiente 8 BOAL, Augusto. Opinião e Zumbi os musicais. In: Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 226. 9 Cf. Borandá e Carcará in COSTA, Armando et al. Opinião: texto completo do Show. Rio de Janeiro: Edições do Val, 1964 e SHOW OPINIÃO. Rio de Janeiro: Polygran, 1994, CD. 10 A novidade era que Black tie introduzia uma importante mudança de foco em nossa dramaturgia: pela primeira vez o proletariado como classe assume a condição de protagonista de um espetáculo. COSTA, Iná Camargo. A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1996, p. 21.

de comunhão e igualdade de todos os envolvidos no espetáculo, sobretudo o público, como se ambos fossem pertencentes à mesma realidade 11. Os motivos que levaram o Show Opinião ao apogeu do sucesso em 1964 são o ponto de partida para essa pesquisa. Logo, perceber o sentimento de transformação política em todo o corpo da peça, suas origens musicais, o levantamento sobre o passado dos integrantes no cenário de oposição e engajamento políticos, bem como as particularidades dos atores estreantes, tornam-se verdadeiras peças de um complexo quebra-cabeças que pretendo verificar, afinal, o Show não faz parte apenas de toda a trajetória engajada do teatro brasileiro; ele representa o início de uma luta pela conscientização popular e divulgação da arte. O método deste trabalho é o estudo do musical Show Opinião, seu roteiro e repertório como meio de compreensão do período inicial da ditadura militar e principalmente das formas de resistência diante o golpe. O foco dessa investigação abre um leque de temáticas paralelas como a cultura de engajamento, as discussões acerca dos abismos sociais do Brasil, a marginalização das representações culturais periféricas e a liberdade de expressão. Assim, a relação entre História e Teatro beneficia essa pesquisa pela variedade de documentos oferecidos e interpretações que podem ser tomadas a partir deles. Contudo, só é possível ao profissional da história ver na arte e na cultura uma forma de documento, por ter ocorrido no seio da ciência histórica uma revolução de conceitos iniciada na França, durante a década de 1930, pela Escola dos Annales. Tratase de uma reformulação da relação entre a pesquisa e seu objeto, sobretudo de suas fontes 12. Essa revolução da historiografia partia da possibilidade de retirar das fontes não oficiais uma maior profundidade de compreensão da investigação histórica, como a cultura e suas representações, a história oral, as imagens e a arte. O caráter subjetivo dessas novas fontes é exatamente motivo de seu valor, pois é capaz de aglutinar em seu interior as interpretações e sentimentos do homem em sua sociedade. A respeito das novas metodologias históricas e da relação com a diversificação de documentos, comenta Marc Bloch: A diversidade de documentos é quase infinita. Tudo o que o homem diz ou escreve, tudo o que fabrica, tudo o que toca 11 Vale conferir uma visão crítica sobre o Show Opinião uma criação de um grupo de classe média para consumo das próprias ilusões. Ver TINHORÃO, José Ramos. Um equívoco de Opinião. In: Música popular: um tema em debate. São Paulo: Ed. 34. 1997, p. 85-86. 12 Ver BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro, Jorge Zahar, 2001, p. 47.

pode e deve informar sobre ele. É curioso constatar o quão imperfeitamente as pessoas alheias ao nosso trabalho avaliam a extensão dessas possibilidades. É que continuam a se aferrar a uma idéia obsoleta de nossa ciência: a do tempo em que não se sabia ler senão os testemunhos voluntários. 13 O texto teatral participa então desse cerco de documentos que se constituem como reflexos de um período, como uma forma interpretativa da realidade, sendo então determinante na confecção dessa pesquisa. No entanto, esse método auxilia no entendimento das complexidades do Show Opinião e de sua pluralidade de sentidos. Assim, a fala dos atores e as músicas cantadas formam uma teia documental que não só responde ao problema levantado no início deste trabalho como é um meio de percorrer demais informações acerca do contexto instaurado no ano em que estreou. Logo, tanto o apoio nos significados dos testemunhos como na relação mútua de história e teatro será de suma importância. Porém, trata-se não somente de um pressuposto metodológico, mas de comprometimento para com o próprio trabalho, pois (...) é possível afirmar que tanto o dramaturgo quanto os que escrevem sobre ele, ou sobre seu trabalho, estão, consciente ou inconscientemente, comprometidos com texto produzido, isto é, há uma historicidade que propiciou sua confecção 14. FONTES: Fontes primárias: Texto teatral: COSTA, Armando et al. Opinião: texto completo do Show. Rio de Janeiro: Edições do Val, 1964. Cd: SHOW OPINIÃO. Rio de Janeiro: Polygran, 1994, CD. Livros, tese e artigos sobre o grupo e o Show Opinião: BASTOS, Manoel Dourado. Um marxismo desconcertante: método e crítica de José Ramos Tinhorão. 5º Colóquio Internacional Marx e Engels. Campinas, 2007. Disponível em: < http://www.unicamp.br/cemarx/anais_v_coloquio_arquivos/arquivos/comunicac oes/gt6/sessao3/manoel_bastos.pdf. Acesso em dez. 2008. BOAL, Augusto. Opinião e Zumbi os musicais. In: Hamlet e o filho do padeiro. Rio de Janeiro: Record, 2000, p. 221-235. 13 BLOCH, Marc, op. cit., p. 79-80. 14 PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Hucitec, 1999, p. 91.

CASTRO, Maurício Barros de. Zicartola: política e samba na casa de Cartola e Dona Zica. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2004. CONTIER, Arnaldo Daraya. Edu Lobo e Carlos Lyra: o nacional e o popular na canção de protesto (os anos 60). Revista Brasileira de História, v. 18, n. 35, São Paulo, 1998, p.13-52. COSTA, Iná Camargo. A força de inércia do teatro épico. In: A hora do teatro épico no Brasil. Rio de Janeiro: Graal, 1996, p.101-127. DAMASCENO, Leslie Hawkins. Espaço cultural e convenções teatrais na obra de Oduvaldo Vianna Filho. Campinas: Editora da Unicamp, 1994. DAMAZO, Francisco. A poética intuitiva do cancioneiro de João do Vale. XI Encontro Regional da ABRALIC. São Paulo, 2007. Disponível em: <www.abralic.org.br/enc2007/anais/181247.pdf.> Acesso em 15 de jan. 2009.. O canto do povo de um lugar: uma leitura das canções de João do Vale. Tese (Doutorado em Letras) - Universidade Estadual Paulista, São José do Rio Preto, 2004. KUHNER, Maria Helena e ROCHA, Helena. Opinião: para ter opinião. Rio de Janeiro: Relumé Dumará, 2001. MOSTAÇO, Edélcio. Teatro e política: Arena, Oficina e Opinião. São Paulo: Proposta Editorial, 1982. OLIVEIRA, Sirlei Cristina. Grupo Opinião: experiência estética e política dos musicais da década de 1960. XIX Encontro Regional de História. CD ROM, 2008. PASCHOAL, Marcio. Pisa na fulô mas não maltrata o carcará: vida e obra do compositor João do Vale, o poeta do povo. Rio de Janeiro: Lumiar Ed., 2000. TINHORÃO, José Ramos. Um equívoco de Opinião. In: Música popular: um tema em debate. São Paulo: Ed. 34. 1997, p. 72-87. BIBLIOGRAFIA: BENTLEY, Eric. O teatro engajado. Rio de Janeiro: Zahar Ed., 1969. BLOCH, Marc. Apologia da história ou o ofício de historiador. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2001. CHARTIER, Roger. Do palco à página: publicar teatro e ler romances na época moderna séculos XVI-XVIII. Rio de Janeiro: Casa da Palavra, 2002. DENIS, Benoit. Literatura e engajamento: de Pascal à Sartre. Bauru: Edusc, 2002. HOLLANDA, Heloisa Buarque de. Impressões de viagem: CPC, vanguarda e desbunde, 1960/1970. São Paulo: Brasiliense, 1981. MICHALSKI, Yan. O palco amordaçado: 15 anos de censura teatral no Brasil. Rio de Janeiro: Anevir Editora, 1979. NEVES, João das. A análise do texto teatral. Rio de Janeiro: Europa, 1997. PARANHOS, Kátia Rodrigues. Teatro e trabalhadores: textos, cenas e formas de agitação no ABC paulista. ArtCultura, v.7, n.11, jul-dez, Uberlândia, Edufu, 2005. PATRIOTA, Rosangela. Vianinha: um dramaturgo no coração de seu tempo. São Paulo: Huicitec, 1999. PAVIS, Patrice. A análise dos espetáculos. São Paulo: Perspectiva, 2005. RIDENTI, Marcelo. Em busca do povo brasileiro: artistas da revolução, do CPC à era da TV. Rio de Janeiro: Record, 2002. VIEIRA, Thais Leão. Vianinha no Centro Popular de Cultura. Dissertação (Mestrado em História Social) PPGHIS-UFU, Uberlândia, 2005.