A IMAGEM DA MULHER PELA ESCOLHA LEXICAL DE RITA LEE. Palavras chave: mulher, análise crítica do discurso, lexicologia, canção popular brasileira.



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Transcrição:

1 A IMAGEM DA MULHER PELA ESCOLHA LEXICAL DE RITA LEE José Antônio Barbosa Alves dos SANTOS Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas da Universidade de São Paulo jose.barbosa.santos@usp.br Resumo: buscamos analisar o léxico que constitui a imagem da mulher nas canções de Rita Lee, valendo-nos de conceitos da lexicologia, da análise crítica do discurso, e de metodologia que permite estruturar os dados do corpus analisado por meio da organização de campos semânticos. Na análise comparativa das canções Elvira Pagã e Pagu, verificaremos as estratégias de desconstrução de estereótipos tradicionais da figura feminina, e de valorização de uma determinada constituição de mulher. Palavras chave: mulher, análise crítica do discurso, lexicologia, canção popular brasileira. 1 O universo feminino na canção de Rita Lee Rita Lee tem papel singular na canção popular brasileira desde a segunda metade da década de 1960, quando integrou o grupo Os Mutantes, fundamental para a definição dos valores estéticos da performance tropicalista. A irreverência e o deboche são marcas fundamentais das letras das canções assinadas pelo grupo, e também de suas apresentações em teatros, televisão e cinema. A ruptura com os padrões sonoros das canções pré Bossa Nova, e inclusive sua satirização, são verificados nas gravações que realizaram. Seguindo carreira independente do grupo nos anos de 1970, Rita mantém sua postura. Seu comportamento artístico que, no antigo grupo, fora instrumento para a contestação de valores estéticos da tradicional canção e das estruturas das instituições que a promovia, passa a ser o principal elemento da constituição da imagem da cantora na mídia. Essa imagem, singular, irá se opor à tradicional imagem da mulher na canção brasileira, ora pela postura assumida em palco, figurino, estética sonora adotada, ora pelas letras das canções de seu repertório, que abordam de modo peculiar, de um ponto de vista livremente feminino, temas relacionados ao cotidiano, ao amor, à sexualidade. De nosso interesse é principalmente a letra da canção, e nela, o tratamento dado aos temas do universo feminino. O que pretendemos aqui é verificar como, por meio do léxico, se expressa uma visão de mundo que revela valores ideológicos específicos com relação à imagem da mulher. Para tanto, a partir das diretrizes de Van Dïjk (2008, 2003) para a análise crítica do discurso ideológico, e da observação do léxico de canções de Rita Lee estrategicamente agrupado em campos semânticos, propomos a análise das canções Elvira Pagã e Pagu. 2 O léxico no discurso ideológico Mais do que seu reflexo, o discurso é a ação por meio da qual as ideologias e os valores de grupos sociais são perpetuados ou modificados. Assim, quando analisamos de

2 forma crítica um discurso ideológico, não estamos somente identificando ali registros de fenômenos sociais, mas também elucidando as estruturas linguísticas por meio das quais esses fenômenos são construídos e mantidos. Diversos são os elementos atuantes na formação do sentido no discurso, o que nos leva a uma infinidade de matérias passíveis de análise, principalmente quando tratamos da canção popular difundida por mídias eletrônicas, em que estão envolvidos universos semióticos extralinguísticos. É inevitável, portanto, que nossa análise se apoie num módulo linguístico exclusivo, o léxico, que reflete a visão de mundo do falante, e é estruturador de sua realidade.ao optarmos pelo estudo do léxico das canções de Rita Lee, tomamos para análise a estrutura da língua através da qual se processa a cognição da realidade e a categorização da experiência (BIDERMAN, 2001). Pela vasta possibilidade de escolha e criação que o léxico de uma língua oferece ao enunciador, os usos lexicais específicos nos permitem o contato com sua visão de mundo, seus valores e ideologias. 3 O triângulo discurso-cognição-sociedade e o quadrado ideológico Ao abordarmos um enunciado, devemos ter em mente que ele se insere num sistema do qual são parte seu enunciador, e também seu enunciatário, aquele a quem se destina. Van Dïjk (2003), sugere uma esquematização do sistema de produção do discurso, levando em consideração uma situação de interação que não engloba enunciador e enunciatário como indivíduos isolados, mas como pertencentes a grupos sociais, que constroem seu discurso numa combinação singular dos valores coletivos determinada pela cognição individual. Van Dïjk (2003) sugere, por meio do triângulo discurso-cognição-sociedade, que o enunciado sempre dialoga com os valores do grupo social no qual o enunciador está inserido. A postura discursiva do enunciador é determinada por sua cognição. Assim, perpetua ou combate certos valores, conforme estejam em acordo ou não com os seus. Observando as estratégias recorrentes no discurso ideológico para a qualificação do eu (enunciador) e desqualificação do outro (aquele de quem se fala, quando este se opõe aos valores do eu), Van Dïjk (2003) compõe o que nomeia quadrado ideológico, visto aqui: Colocar ênfase nos nossos aspectos positivos Colocar ênfase nos aspectos negativos do outro Atenuar nossos aspectos negativos Atenuar os aspectos positivos do outro A partir das estratégias observadas pelo autor, podemos direcionar nossa análise, buscando aplicá-las à leitura das canções. 4 Metodologia As letras que analisaremos hoje integram o corpus de 46 canções selecionadas dentre toda a obra de Rita Lee, organizadas de acordo com seus temas gerais: a mulher na relação amorosa (24 canções), qualificação da mulher (13 canções), e a mulher em situações cotidianas (9 canções).

3 Organizamos o léxico de Elvira Pagã e Pagu em campos semânticos, selecionando as lexias que contribuem para a construção da imagem da mulher. Esse agrupamento nos dá uma visão ampla do universo feminino construído no discurso de Rita Lee. Permite-nos, ainda, verificar oposições e traçar relações que não veríamos nas canções isoladas. Passemos, então, à análise das lexias no contexto das canções. 5 Elvira Pagã e Pagu: desconstrução de um estereótipo e potencialização da figura feminina Elvira Pagã Rita Lee / Roberto de Carvalho Todos os homens desse nosso planeta / Pensam que mulher é tal e qual um capeta / Conta a história que Eva inventou a maçã // Moça bonita, só de boca fechada, / Menina feia, um travesseiro na cara, / Dona de casa só é bom no café da manhã. Dama da noite não dá pra confiar, / Cinderela quer um sapatão pra calçar, / Noiva neurótica sonha com o noivo galã (um lixo!) // Amiga do peito fala mal pelas costas, / Namorada sempre dá a mesma resposta / Foi-se o tempo em que nua era Elvira Pagã. refrão: Então eu digo: / Santa, santa, só a minha mãe (e olhe lá) / É canja-canja, / O resto põe na sopa pra temperar! Na canção Elvira Pagã verificamos a reprodução de lugares-comuns sobre a mulher, que refletem uma visão machista generalizante do universo feminino, como explicita o próprio enunciador nos versos introdutórios: Todos os homens desse nosso planeta / Pensam que mulher. Cada verso seguinte expõe uma imagem da mulher estereotipada, um viés machista e desqualificador, por meio de lexias que configuram um campo semântico denominado Visão masculina da mulher : Visão masculina da mulher Mulher é tal e qual o capeta Eva inventou a maçã Moça bonita, só de boca fechada Menina feia, o travesseiro na cara Dama da noite não dá pra confiar Noiva neurótica sonha com noivo galã (um lixo!) Amiga do peito fala mal pelas costas Namorada sempre dá a mesma resposta Esses lugares comuns, no entanto, não são expostos com o objetivo de se perpetuar os valores que os sustentam, mas sim de quebrá-los. É nesse sentido que atua a voz do enunciador nos momentos em que diz um lixo!, e no refrão: Então eu digo: / Santa, santa,

4 só a minha mãe (e olhe lá). Essa interferência (e olhe lá) quebra a expectativa tradicional de que a mulher seja santa e comportada, delata a atitude machista da atribuição de aspectos clichê à figura feminina. Essa canção pode ser vista como um discurso de combate a uma visão tradicional da mulher. Vejamos agora a letra da canção Pagu: Pagu Rita Lee Zélia Duncan Mexo, remexo na inquisição / Só quem já morreu na fogueira / Sabe o que é ser carvão // Eu sou pau pra toda obra / Deus da asas à minha cobra / Minha força não é bruta / Não sou freira nem sou puta. Sou rainha do meu tanque / Sou Pagu indignada no palanque / Fama de porralouca, tudo bem / Minha mãe é Maria Ninguém / Não sou atriz-modelo-dançarina / Meu buraco é mais em cima. refrão: Nem toda feiticeira é corcunda / Nem toda brasileira é bunda / Meu peito não é de silicone / Sou mais macho que muito home. A canção Pagu, como Elvira Pagã, é constituída por frases mais ou menos prontas, expressões idiomáticas do português, corriqueiras do discurso cotidiano. No entanto, em Pagu, essas frases têm um efeito de sentido bastante distinto daquele da canção anterior com relação à imagem de mulher de que trata, valorizando a imagem de mulher que constroem. Precisamos também lembrar que nesta segunda canção a imagem de mulher exposta está em acordo com a concepção do próprio enunciador, o que não ocorria em Elvira Pagã. Muitas das lexias desta canção qualificam positivamente a mulher, atribuem-lhe a ideia de força, de poder e independência, compondo, assim, o campo semântico que denominaremos Potencialização da figura feminina: Potencialização da figura feminina Eu sou pau pra toda obra Deus da asas à minha cobra Minha força não é bruta Sou rainha do meu tanque Sou Pagu indignada no palanque Fama de porralouca, tudo bem Meu buraco é mais em cima Sou mais macho que muito home Há também lexias que promovem a negação de estereótipos femininos, que organizamos no campo denominado Negação do estereótipo feminino: Negação do estereótipo feminino Não sou freira nem sou puta

5 Não sou atriz-modelo-dançarina / Meu buraco é mais em cima Nem toda brasileira é bunda Meu peito não é de silicone Nesse caso, as lexias, além de negar estereótipos extremos, como ligação da imagem da mulher à puta ou à freira, que representam o que tradicionalmente se abomina ou se valoriza em uma mulher, desconstroem uma imagem excessivamente sexualizada da figura feminina, que estaria representada pela bunda ou pelos seios fartos pelo uso de prótese de silicone. Não podemos desprezar também a desqualificação dos ofícios em que o corpo é visto em destaque, por meio da lexia Não sou atriz-modelo-dançarina / Meu buraco é mais em cima. A junção de três lexias atriz / modelo / dançarina sustentam esse aspecto da valorização dos atributos físicos da mulher, que aqui é combatido. 6 Conclusão Pudemos ver, pela breve análise realizada, as estratégias discursivas de Rita Lee empregadas na desconstrução de estereótipos femininos e construção de uma dada imagem da mulher. A desqualificação da prática de exaltação dos atributos estéticos da mulher, de sua erotização excessiva se dá também em canções como Fonte da juventude e Noviças do vício, e ainda em apresentações televisivas, como no especial O Circo, que foi ao ar pela TV Globo nos anos de 1980. Nele, Rita Lee coloca grandes seios de borracha para cantar Cor-derosa choque, satirizando a valorização dos seios de Fafá de Belém. Quando canta Miss Brasil 2000 no especial Grandes Nomes da TV Globo, também nos anos 1980, rasga todo seu manto real de princesa, jogando-o no chão como se fosse uma guitarra a ser destruída por um integrante de banda de rock, sendo que ali destruía um símbolo da valorização do corpo feminino erotizado: o concurso de miss. Podemos ver então o quanto é importante a imagem da mulher na obra de Rita Lee. A ênfase na expressão de um universo feminino construído pelo ponto de vista de uma mulher ativa, crítica e rebelada nos mostra o quanto é peculiar o tema em seu trabalho, e o quanto é coeso, estando presente nas suas primeiras canções e também nas mais recentes. 7 Bibliografia BIDERMAN, Maria Tereza Camargo. As ciências do léxico. In: OLIVEIRA, Ana Maria Pinto Pires de; ISQUERDO, Aparecida Negri. (orgs.) As ciências do léxico: lexicologia, lexicografia, terminologia. Campo Grande: UFMS, 2001.. Fundamentos de lexicologia. In:. Teoria Lingüística : leitura e crítica. São Paulo: Martins Fontes, 2001. ULLMANN, Stephen. Semântica: uma introdução à ciência do significado. Lisboa: Calouste Gulbenkian, 1964. p. 93-529.

6 VAN DIJK, Teun Adrianus. Análise crítica do discurso. In: Discurso e poder. São Paulo: Contexto, 2008.. Las estructuras ideológicas del discuso. In: Ideología e discurso: una introducción multidisciplinaria. Barcelona: Ariel, 2003.. La multidisciplinaridad del análisis crítico del discurso: un alegato en favor de la diversidad. In: WODAK, Ruth & MEYER, Michael. Métodos de análisis crítico del discurso. Barcelona: Gedisa, 2003., pp, 143-177. ZAVALA, Virginia; ZARIQUIEY, Roberto. Eu te discrimino porque a falta de educação me ofende. In: VAN DIJK, Teun Adrianus.(org.) Racismo e discurso na América Latina. São Paulo: Contexto, 2008.