«Anti-Cristo» Pedro Filipe Adão Universidade Nova de Lisboa Nietzsche é uma das mais controversas personagens do seu tempo. O seu estilo, a forma radical como pôs os valores vigentes em causa e a maneira constante como questionou a objectividade da verdade representam hoje alguns dos maiores problemas interpretativos para a Filosofia contemporânea (quer no estudo da sua obra, quer como questões filosóficas em si). Der Antichrist (aqui como Anti-Cristo na tradução de Carlos Grifo) surge na obra de Nietzsche como a afirmação absoluta de Nietzsche como um fervoroso oponente ao Cristianismo e, sobretudo, à moral cristã. O seu conteúdo de efervescente polémica fez com que o livro tivesse a sua edição adiada em cerca de sete anos: escrito em 1888, só foi publicado em 1895, já quando Nietzsche se encontrava debilitado pela doença que afectava desde Janeiro de 1889 e que o viria a vitimar em 1900. Sendo um dos últimos manuscritos de Nietzsche surge como o epítome do pensamento assistemático, aforístico e filosófico-poético que caracterizam a escrita do autor e muito particularmente a obra em questão. Como já referido, Anti-Cristo surge como um ataque directo às bases do Cristianismo (embora o título esconda uma certa benevolência em relação à forma como o autor lida com a própria figura de Cristo) no século XIX, mas surge igualmente como o provável início do conceito filosófico que Nietzsche tinha planeado teorizar em quatro livros, tendo apenas completado um deles precisamente o Anti-Cristo. No prólogo do livro, Nietzsche começa precisamente por se dirigir ao seu público. Nas palavras do filósofo: Este livro destina-se aos entes mais raros (P.7). Neste sentido, Nietzsche considera que os leitores de Anti-Cristo têm que ter a coragem intelectual para suportar aquilo que lhes quer transmitir. O autor pensa pois que é um livro para uma audiência limitada e despreza todos os outros leitores que não sejam capazes de compreender a sua gravidade e paixão (P.7).
A partir daqui, Nietzsche entra numa série de parágrafos (62 para ser mais preciso) onde aborda um conjunto variado de temas onde denuncia o que chama a corrupção cristã. O primeiro destes temas a ser abordado é o que Nietzsche denomina de valores decadentes ou nesta tradução do livro para português, décadence. Neste ponto inicial, Nietzsche estabelece um paralelo entre dois aspectos: modernidade e a vontade de poder. Para Nietzsche, a modernidade é a paz apodrecida, do compromisso cobarde (P.9) e é precisamente esta resignação que Nietzsche considerava ser - à semelhança do seu compatriota Schopenhauer o espírito mais profundo do Cristianismo. Por outro lado, Nietzsche põe desde logo em evidência o que considera ser um carácter anti-naturalista da religião cristã, ou seja, a oposição ao que considera ser a vontade de poder. No 2 (P.10) Nietzsche considera que tudo o que é bom é o que eleva o homem no sentimento de poder e que, pelo contrário, tudo o que é mau é o que nasce da fraqueza. É neste momento que Nietzsche faz uma relação dialéctica entre o que considera ser a fraqueza (e como tal, o que é nefasto) e a piedade cristã. Para o autor, a acção de piedade é a acção de se compadecer e está em contradição directa com as emoções mais tónicas (P.14) - como tal constitui um desperdício. É igualmente aqui que Nietzsche faz uma relação entre a piedade e o niilismo (que, ao contrário da associação vulgarmente feita, não é uma corrente puramente nietzscheana, sendo que o autor se opõe a ela na vertente mais clássica - nesta obra), como sendo duas ideias que negam a própria vida: a vida é negada pela piedade, que é ainda mais digna de ser negada compadecer-se é a prática do niilismo. Seguidamente, o autor vai debruçar-se sobre a actuação de teólogos, padres e filósofos, nomeadamente na influência (nefasta) dos dois primeiros nos últimos. Não apenas os teólogos e os padres per se mas igualmente a quem quer que tenha no corpo sangue de teólogo. Muito concretamente, Nietzsche vai dirigir o seu ataque a partir daqui a um filósofo (que considera ter o sangue de teólogo ) em particular: Immanuel Kant. Para Nietzsche, o imperativo categórico de Kant é uma ameaça contra a vida (adjectivando-o inclusive de niilista). Esta linha de raciocínio prende-se com o dogma cristão da abjecção do prazer, igualmente advogado por Kant (P.12).
O ataque de Nietzsche direcciona-se então para o Deus Cristão, nomeadamente na sua anti-naturalidade. Para o autor, um Deus realmente admirável e que um povo pudesse de facto admirar, é um Deus que não pode como manda a concepção cristão de Deus -, ser apenas Bom. Este Deus que se mantém impávido na presença da cólera, vingança e que ama um inimigo tal como ama um amigo (P.29) é incompreensível, para qualquer povo que o adore, segundo Nietzsche. Só poderá existir, se esse mesmo povo quiser que o seu Deus seja um simulador, um indulgente, resumindo: um falso. Por fim, nesta breve revista pela obra, resta realçar a analogia feita por Nietzsche em relação a outras religiões, nomeadamente o Budismo. Apesar de Nietzsche considerar que ambas são religiões niilistas e decadentes (P.34), vê o Budismo como uma religião muito mais realista. Para Nietzsche, Buda fundou a sua religião em princípios que vão para lá do bem e do mal (P.34), princípios que tentam fundamentalmente ajudar os indivíduos a superarem o sofrimento da vida. Sendo assim, Nietzsche considera que o Budismo é cem vezes mais frio, mais verídico, mais objectivo e como tal rejeita as habilidades do Cristianismo: fé, caridade e esperança, todas elas contrárias à razão (P.41). Anti-Cristo representa um marco na refutação dos valores cristãos enquanto moral e não apenas enquanto religião de símbolos teológicos ou no que diz respeito à existência de Deus (concepção lata do termo e não se referindo apenas ao Deus cristão). Nietzsche aborda de forma brilhante alguns dos principais pontos em que a moral cristã se apresenta na sua máxima força, isto é, decadente e perversa. O seu pensamento descomprometido leva-o a criticar a atitude utópica e predominantemente cobarde de Immanuel Kant. Sacrilégio intelectual na época, dada a popularidade que o mesmo gozava nos círculos intelectuais alemães. Mesmo hoje, esta é uma das facetas mais controversas da filosofia de Nietzsche, dada a aceitação dogmática de textos como A Paz Perpétua. No entanto, Nietzsche comete algumas falhas. A sua complacência (ou pelo menos, falta de vigor retórico em comparação com alguns ataques que o mesmo faz) para com outras religiões é uma delas. Apesar de condenar o Budismo, a sua atitude é tendencialmente mais leve, esquecendo-se da inerte contemplação do mundo por
parte do mesmo. Neste mesmo sentido, a sua atitude perante o Islamismo e o Judaísmo é igualmente branda e não revela o fanatismo especialmente inerente (ou especialmente visível dada a sua inferência nos governos de países onde são tendencialmente maioritários) a estas duas religiões. Talvez se possa dizer que Nietzsche não viu o epítome deste aspecto, quer com o vergonhoso comportamento do estado israelita, quer com a ameaça terrorista à escala global, mas ainda assim, os dogmas infectados já estavam bem presentes nestas duas religiões. Nietzsche revela ainda uma faceta compreensiva para com a figura de Cristo que não pode ser tolerável. É esta a maior crítica a fazer à esplendorosa obra de destruição dogmática que é o Anti-Cristo. Cristo não foi somente uma vítima das suas ideias, não foi apenas manipulado a sua moral por si só representa o mais venenoso dos venenos para os espíritos livres e racionais. Aliás, na Bíblia várias vezes é condenada esta mesma razão, este mesmo livre arbítrio. Não deixemos, no entanto, estes aspectos menos positivos (estou convicto que, acima de tudo, Nietzsche foi uma vítima do seu tempo no que a isto diz respeito) ensombrarem o que Anti-Cristo representa: uma ode à transvalorização de tudo o que a morfética herança cristã nos deixou, uma ode à transvalorização dos valores!