IMPRENSA E ESCRAVIDÃO NO BRASIL: RELAÇÕES DE GÊNERO NOS ANÚNCIOS SOBRE ESCRAVAS E ESCRAVOS NO JORNAL DO COMÉRCIO (1848)



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IMPRENSA E ESCRAVIDÃO NO BRASIL: RELAÇÕES DE GÊNERO NOS ANÚNCIOS SOBRE ESCRAVAS E ESCRAVOS NO JORNAL DO COMÉRCIO (1848) Tamy Amorim da Silva 1 UFSC/CNPq (tamyamorim@gmail.com) Resumo: Aluga-se boa ama de leite, parda de 20 anos, muito bom leite, coser, marcar e crivo com perfeição, muito humilde e carinhosa, liam as pessoas que abriam o Jornal do Commercio de Julho de 1848, no Rio de Janeiro. É sobre os anúncios de compra, venda, aluguel e fuga de escravas e escravos encontradas no Jornal do Commercio, no período de Julho de 1848, que este trabalho se insere. Pretendendo analisar a partir dos anúncios as construções de estereótipos desenvolvidas em relação a mulheres e homens escravos. Para tanto, utilizei, a categoria gênero como ferramenta para compreender como construções de estereótipos desenvolvidas durante o Império (e anteriormente na colônia), e contidas nos anúncios do Jornal do Commercio, qualificavam e desqualificavam a/o escravas e escravos, mas não somente cativas/os, mas a negra e o negro na sociedade. VENDE-SE uma boa preta isenta de vícios (JORNAL DO COMMERCIO, 1848a, p. [?] ), liam as pessoas que abriam o Jornal do Commercio de Julho de 1848, no Rio de Janeiro, além de ficarem bem informadas sobre mercado e comércio. Encontravam ainda notícias do Brasil e do mundo, informações sobre exportação e importação; como também acerca dos portos e dos navios que partiam ou sobre os que estavam por vir, fora anúncios de compra, venda e aluguel de imóveis, objetos, animais e pessoa. Os anúncios eram a grande fonte de riqueza dos jornais, por isso, encontravam-se diariamente em suas páginas, oferecendo para o comércio, mulheres e homens, negras/os e pardas/os. Dentro da ótica escravista, era perfeitamente natural todas as transações envolvendo pessoas e nesse sentido, a imprensa de um modo geral anunciava fugas, compra, venda, aluguel, entre outras. É a partir dessa exposição, que apresento neste artigo a análise de anúncios do Jornal do Commercio do Rio de Janeiro, buscando entender, a partir de um olhar de gênero, como as características promovidas pelo jornal e por leitoras e leitores distinguiam escravas e escravos em anúncios. Na primeira parte do texto apresento os aspectos metodológicos da pesquisa e uma breve historiografia sobre raça e gênero, e na segunda parte exponho algumas informações sobre história da imprensa no Brasil e analiso anúncios encontrados no Jornal do Commercio. Aspectos Metodológicos 1 Aluna da 1ª fase do curso de Arquivologia da Universidade Federal de Santa Catarina. Graduada em História pela Universidade Federal de Santa Catarina, e atualmente bolsista de Apoio Técnico/CNPq do Laboratório de Estudos de Gênero e História orientada pela professora Doutora Cristina Scheibe Wolff. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.691

Para este trabalho busquei anúncios que reforçavam estereótipos de mulheres e homens escravas, e escravos, de modo a efetivar uma análise dos anúncios de compra, de venda e de aluguel de escravas e escravos no Jornal do Comércio, no período do mês de Julho de 1848. Utilizei, a categoria gênero como ferramenta para compreender como construções de estereótipos desenvolvidas durante o Império (e anteriormente na colônia) qualificavam e desqualificavam a/o escravas e escravos, mas não somente cativas/os, mas a negra e o negro na sociedade. A categoria gênero contribui para esta análise na medida em que permite perceber a construção cultural da diferença sexual, que hierarquiza e distribui desigualmente atribuições entre mulheres e homens. (PEDRO, 2005, p. 77-98). Ao trabalhar com o Jornal do Commercio, primeiramente, busquei os anúncios e, pude verificar que era possível encontrar características variadas de mulheres e homens, escravas e escravos. Selecionei os anúncios dos jornais separando-os por data e número (período que vai de 1 de Julho a 31 de Julho), mulheres características, homens características e observações, e subdividida em anúncios de venda, aluguel, fuga e compra. O recorte temporal selecionado objetivou apreender o material microfilmado e disponível no Laboratório de História Social do Trabalho e da Cultura da Universidade Federal de Santa Catarina. Como bem frisa Tania R. Luca (2005) não existe uma metodologia específica para trabalhar com os periódicos, temos que olhar com cuidado e atenção para o discurso do jornal, pois ele esta repleto de informações sobre quem o escreveu e sobre o tempo em que ele foi escrito. (LUCA, 2005, p. 140) Como alerta Schwarcz (1987, p. 99) existem vários espaços que definem e redefinem a condição negra e negro, escrava e escravo, o jornal é um deles. Como em um caleidoscópio, no qual um único jogo, reproduz várias imagens. O importante não é retirar somente uma imagem, mas olhar a própria diversidade em que o elemento negra/o era apresentado. É nesta diversidade de imagens que procuro as características de mulheres e homens, escrava e escravos para realizar comparações entre as imagens apresentadas no Jornal do Commercio. Para entender sobre a imprensa no Brasil foi essencial à leitura de Isabel Lustosa (2003) que de forma simples escreve uma história da imprensa desde seus primórdios até os desdobramentos da independência, propondo que as ideias expostas na imprensa foram o motor de muitas transformações no Brasil. Outro livro muito importante que aborda o tema da imprensa de forma coerente é o de Tania R. Luca e Ana Luiza Martins (2006). Com outro olhar, Nelson Werneck Sodré (1983) delineia a História da imprensa no Brasil, propondo que a história da imprensa é a própria história do desenvolvimento da sociedade capitalista (SODRÉ, 1983, p. 1), lugar de luta pelo controle do que se é escrito. Para Sodré, a imprensa segue as regras gerais da sociedade capitalista (SODRÉ, 1983, p. 1). Além de ser um livro clássico e pioneiro no Brasil, foi com ele que pude aprofundar o estudo sobre o Jornal do Commercio, pois, durante a pesquisa encontrei poucas informações a respeito da história desse jornal, muitos trabalhos utilizaram-no como fonte, mas poucos escreveram sobre o próprio periódico. Sodré contextualizou a imprensa dentro da história do Brasil a partir de uma ótica marxista, e apresentou inúmeras contribuições para a história da imprensa. Sobre Gênero e raça há poucos trabalhos que enfatizam o tema, contudo, o texto de Sueli Carneiro (2002) me alertou para a construção de estereótipos e para o Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.692

processo de coisificação do corpo e do sexo da mulher negra. A autora salienta que é na literatura que encontramos os atributos ligados ao ser mulher e mulher negra em nossa sociedade, propondo que desde a colônia vêm se afirmando discursos sobre o corpo da escrava, apontando que a escrava negra era vista como sensual, sexual, animalesca e exótica, e estes estereótipos foram constituindo elementos de gênero que se expressam na atualidade (o que Caneiro quer ressaltar no texto, é que já na colônia se praticou um discurso que ainda hoje está em voga sobre a mulher negra). Contudo, Carneiro não aborda o homem negro, não mencionou que este também é construído por rótulos por estereótipos ainda presentes na atualidade. Neste artigo, englobo o homem negro e escravo para assim fazer uma análise de gênero relacional entre homens e mulheres. Pois tenho em vista que os estudos de gênero buscam as relações de poder e subjetividade que permeiam as relações sociais e culturais. No estudo sobre escravidão foi essencial o livro de Jaime Pinsky (1982), pois o autor dedica um capítulo a vida dos escravos que me foi muito útil para compreender o difícil cotidiano dos escravos que trabalhavam nas fazendas de café. Pinsky explorou jornais para mostrar - entre outras coisas - que o ser escravo não era passivo, bárbaro ou qualquer outro estereótipo construído, mas que eram ativos e que lutavam por suas vontades e necessidades, apontando que isto pode ser evidenciado pelos inúmeros casos de fuga. Neste livro, Pinsky disserta sobre a ideologia da escravidão, e também desconstrói muitos símbolos que recaem sobre a/o escrava/o. Já o trabalho de Schwarcz, apesar de tratar de anúncios do final do século XIX, e próximos da abolição, elabora uma boa análise dos anúncios de jornais, que desde o início do trabalho me auxiliou a analisar os jornais e retirar inúmeras informações e imagens tanto sobre a sociedade, como da cultura da época. Historiografia sobre raça e gênero, um silêncio na História A historiografia pouco abordou a questão da construção de gênero 2 na História, especialmente sobre raça, destaco algumas autoras como Sueli Carneiro (2002), Sonia Giacomini (1988), Maria Elizabeth R. Carneiro (2003) que tratam deste tema, mas realmente esta temática tem sido pouco trabalhado na História. Os estudos sobre as mulheres negras no Brasil tomaram impulso na década de 1980, com o trabalho pioneiro de Maria Odila (1984), e de outas pesquisadoras como Sonia Giacomini (1988), Maria Lúcia Mott (1988), Mary Karasch (2000), Sandra Lauderdale Graham (2005), entre outras. 3 Sueli Carneiro aponta que a primeira mulher negra a ser tratada pela história oficial foi Chica da Silva, que ficou conhecida por suas artimanhas afetivas e sexuais. A mulher negra quando descrita nos textos é representada por imagens exóticas e sensuais, destinadas aos prazeres sexuais. E foi a sociedade colonial e escravista que muito contribuiu para a criação do mito de mulheres quentes, expectativas ainda recorrentes na atualidade. Carneiro frisa que Os estereótipos construídos em torno da mãe preta desempenharam e desempenham papel estratégico nas diferentes visões quanto a 2 A própria categoria gênero é recente na disciplina História, remonta a década de 1980, com o texto inaugural de Joan Scott: Gênero: uma categoria de análise útil a análise histórica; traduzido para o português na década de 1990. Ver em: (PEDRO, 2005, p. 77-98). 3 Ver em: (GOMES, PAIXÃO, 2008, p. 949-964). Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.693

natureza da escravidão em nosso pais (CARNEIRO, 2002, p. 172). Na medida em que a sociedade brasileira realizava projetos para o branqueamento da população, foram se consolidando estigmas tanto na História quanto no destino social de mulheres negras dentro da lógica racista. Como ressalta Flávio Gomes e Marcelo Paixão Há silêncios na história de ontem e hoje; sobre o papel das relações de gênero e raça no passado escravista. (GOMES; PAIXÃO, 2008, p. 949). Imprensa no Brasil A imprensa no Brasil teve seu início com a vinda da Corte em 1808, alguns dos primeiros jornais foram: a Gazeta do Rio de Janeiro, que tinha caraterística de folha oficial, em que se publicavam decretos e fatos relacionados à família real; o Correio Braziliense, que era produzido na Inglaterra e tinha circulação no Brasil, com críticas e ideias de seu criador Hipólito José da Costa Furtado de Mendonça fomentavam leitoras e leitores a aspirações liberais, projetos a propósito da escravidão e da vinda de imigrantes para o Brasil 4. Ambos os jornais tiveram praticamente a mesma duração, sendo publicados até a Independência. 5 Durante o Primeiro Reinado a imprensa se caracterizou por sua conotação crítica e por seu ar de liberdade na palavra escrita (menor censura) e, como aponta Tania R. Luca e Ana Luiza Martins, por ser uma imprensa nacionalista e antilusitana (LUCA; MARTINS, 2006, p. 21). Apesar da multiplicidade de publicações, revistas, folhetins, jornais, gazetas, pasquins, a disseminação da palavra se fazia de forma lenta, devido ao precário equipamento de impressão que fazia com que a produção fosse pequena (LUCA; MARTINS, 2006, p. 24). O conturbado período da Regência foi marcado por uma imprensa movida a café, ou seja, pela expansão econômica cafeeira. Contudo, ao falar sobre o período Sodré salienta, foi realmente, um dos grandes momentos da história da imprensa no Brasil, quando se desempenhou papel extraordinário e influiu profundamente nos acontecimentos. (SODRÉ,1983, p. 12) Os jornais multiplicaram-se nas províncias e no Rio de Janeiro, as disputas entre os partidos eram retratadas exaltadamente nos pasquins da época, principalmente nos locais em que surgiam revoltas. É no contexto deste turbilhão que os periódicos se definiram e se dividiram de acordo com suas orientações políticas, e no modo que viam a realidade. (SODRÉ,1983, p. 110) No Segundo Reinado a ordem se consolida e a imprensa contribuiu para firmar a imagem de um país inabalável. É neste momento que a história do Jornal do Commércio se confunde com o ar do reinado, período em que os considerados grandes nomes da literatura, das artes e da política se encontravam nas páginas do periódico. O Jornal do Commercio fundado por Seignot Plancher em 1827, tinha caráter conservador, no entanto, não era partidário de nenhum grupo político. Sodré aponta que foi o mais importante órgão político, já que sempre soube se renovar quando preciso. Os Anúncios do Jornal do Commercio e as ofertas de trabalho escravo 4 Para saber mais sobre o Correio Braziliense e Hipólito da Costa, ver em: (LUSTOSA, 2003). 5 Neste período a imprensa sofria grande censura por parte de órgãos de repressão régia que tinham por objetivo amputar os conteúdos que não agradassem a corte, por isso, muitos jornais tiveram breve duração. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.694

Sobre os Anúncios: Os anúncios eram frequentemente publicados nas páginas 3 e 4 e eventualmente nos suplementos que eram lançados pelo jornal; estes suplementos não tinham dia da semana fixo para edição, e geralmente continuavam os anúncios e as propagandas divulgadas no jornal. Os anúncios de venda/compra/aluguel/fuga não possuíam um espaço determinado nas páginas, ao contrário do que falou Schwarcz (1987) sobre os jornais da província de São Paulo, que possuíam ordenação e ganharam lugar de destaque com letras luxuosas. Os anúncios do Jornal do Commercio eram variados, não seguiam uma ordem, (não estavam organizados em ordem somente aluguel e depois venda), todos os anúncios estavam amalgamados entre pessoas e objetos, e eram ofertadas na mesma página sem hierarquia de espaço. Também não observei anúncios chamativos, com grandes contornos. Em minha leitura eles são todos semelhantes, pelo menos no que diz respeito as escravas e escravos. Como se tratava de um jornal de cunho diário e por ter pequeno número de páginas, os anúncios tinham grande contribuição financeira para a manutenção do jornal. As negras/os alugadas/os e vendidas/os eram uma rica fonte de renda para seus senhores, e o jornal era uma valiosa ferramenta de comunicação para tal transação econômica (SCHWARCZ, 1987, p. 134-136). A autora enfatiza que os jornais pretendiam atrair e absorver a atenção da/o leitora/or, de modo que ficasse tentada/o a efetuar a compra do trabalho de uma cativa/o. Por isso, as ofertas eram variadas e grande parte das páginas do jornal eram destinadas aos anúncios. Ressaltavam-se as qualidades das peças, apontando os pontos positivos, mas também se fazia a negação de atributos: sem vícios e nem defeitos. Os anunciantes elevavam as características físicas, morais bem como indicavam preços e formas de pagamento (SCHWARCZ,1987, p. 134-136). Os Anúncios: Os símbolos retirados dos anúncios delineiam os corpos, os gestos e os sentimentos de mulheres e homens cativas/os que viveram sob a ótica da escravidão. A raça, a cor e o sexo eram características exaltadas para elucidar a transação econômica. Sobretudo, a conduta moral, virtudes e qualidades e aptidões físicas eram anunciadas como forma de distinguir funções e realçarem hierarquias de gênero. Aptidões físicas como saúde ou a falta dela eram marcadas frequentemente ressalta Márcia Amantino (2007), no trabalho sobre a saúde dos escravos no Jornal do Commercio do Rio de Janeiro em 1850. A beleza e as virtudes também eram enfatizadas como meio de vender a peça ; são palavras chave como: reforçada/o linda/o, bonita/o, sem vícios nem moléstias ; boa conduta, saudáveis e limpas que frisavam a boa saúde e a moral da/o cativa/o. Como mostra o anúncio a seguir: Vende-se uma parda boa figura e conducta, prendada, uma linda mocamba, perfeita doceira, que faz massa, cose, cozinha, engomma e lava, e uma dita com uma linda cria de 2 anos, na rua do cano n. 52. VENDE-SE um perito cozinheiro de forno e fogão, um moleque de 14 annos, Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.695

de nação; um preto de todo o serviço e uma preta cozinheira, lavadeira e quitandeira; na rua do Rosario n.144. (JORNAL DO COMMERCIO 1848a, p. [?] ). Em outro anúncio a perfeição da limpeza de uma parda é ressaltada: Aluga-se perfeita ama de leite, parda, 20 anos, muito limpa, sadia e humilde, com muito e bom leite, sabendo coser marcar e fazer crivo muito bem. (JORNAL DO COMMERCIO, 1848b, p. 3-4). A compra pode ser feita, mesmo em caso de doenças: Comprão-se crias escravas, doentes da tosse coqueluche, preferindo-se com as que com ellas se tenha feito alguma diligência para ficarem boas para, por isso, serem mais baratas, e um escravo ou escrava doente de tétano; na rua da Lampadosa n. 47. (JORNAL DO COMMERCIO, 1848c, p. 4). Durante a pesquisa, evidenciei que as mulheres escravas eram anunciadas com mais adjetivos e qualidades do que nos anúncios referentes a homens escravos, como se precisassem de maiores aptidões do que o homem escravo. Esses excertos de anúncios do Jornal do Commercio foram ressaltados, pois, apresentam características que definiam as funções e salientavam os aspectos esperados por um comprador: o bom leite da ama, a limpeza, o carinho, e a humildade. Além das características de boa conduta, de beleza, e de habilidades variadas. Já nos anúncios referentes aos homens escravos a força era ressaltada, usava-se o termo reforçado, corpulento para qualificar o serviço ao qual era destinado, seja para o trabalho urbano como também rural. Nos casos de fuga os anúncios são mais descritivos, apontando à raça, a cor, a idade, o sexo e o corpo. Como se fosse um retrato falado em que a pessoa lesada esboça o malfeitor para possivelmente encontrá-lo; o proprietário valendo-se de seu direito de propriedade apresentava as principais características do cativo fujão. Destaco que nos anúncios de fuga os corpos são desenhados, detalhados e, caraterísticas relevantes eram levantadas, construindo uma imagem do cativa/o fugida/o. Fugio, no dia 25 de junho, da praia da saúde n.45, um preto de nome Raphael, de nação Benguella, idade de 25 a 80 annos, estatura regular, cara comprida, côr fula, nariz afilado, olhos grandes e vermelhos, e falta um dente na frente; levou vestido calças e camisa de riscado azul; quem o apprehender e levar ao numero acima será bem gratificado. (JORNAL DO COMMERCIO, 1848d, p. 4). Em outro anúncio de fuga, desta vez referente a uma Africana liberta fugida: Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.696

Fugio, no dia 9 do corrente mez de julho, pelas 7 horas da noite, a Africana liberta Analita, Moçambique, n.236 do brigue (?), com marca M. na espadua esquerda, levando vestido de riscado azul com xadrezes encarnados e chalés de metim escuro, com pintas brancas: terá 20 anos de idade, é gorda, bem retinta e de estatura regular: quem dela der noticias na rua da Conceição n.24, receberá alviçaras. (JORNAL DO COMMERCIO, 1848e, p. 2). Em um anúncio de venda, sexo, idade, raça são evidenciados, assim como, aptidões morais, virtudes e qualidades físicas são realçadas enquanto características que reforçavam sua vocação para o trabalho: Vende-se uma bonita e reforçada rapariga de 14 annos de idade, de boa conducta, sem vícios nem moléstias, própria para mocamba: o motivo da venda não desagradará ao comprador: na travessa do Rosário, defronte da terre, n. 5. (JORNAL DO COMMERCIO, 1848c, p. 4). Outro anúncio sugere as vocações de um escravo: Vende-se um lindo escravo, bom para pagem, entendendo muito bem de tratar de animais e monta muito bem; na rua Estreita de S. Joaquim n.32. (JORNAL DO COMMERCIO, 1848f, p. 4). Por fim, os anúncios mostram as variedades das peças: suas cores, seu sexo, a saúde e doença, as virtudes e as vocações. São as imagens do caleidoscópio em que a mulheres e homens escravos eram distinguidos por seu sexo, raça e gênero. Consideração Finais Estes anúncios mostram como a sociedade escravista pensava e agia em relação a suas cativas. Praticamente em todos os anúncios encontrados de venda/compra/aluguel as escravas e os escravos eram perfeitos para alguma forma de trabalho, aparecendo nos anúncios como se fossem objetos (e vistos pela sociedade como res = coisa ). Schwarcz aponta que até a década de 1880, boa parte dos anúncios que ocupavam os periódicos tratavam de escravas/os que pareciam estar vinculados a todos os tipos de transação econômica. (SCHWARCZ, 1987, p. 134-136). Como foi visto, escravas e escravos eram ofertados de diferentes formas e, podiam trabalhar no campo ou na cidade, dentro das casas, e fora delas. O que me chamou atenção foram os inúmeros anúncios de amas de leite, sempre apontando para limpeza, o cuidado com as crianças e para bom leite das escravas. Outros anúncios que merecem destaque, pois prescreviam que a mulher escrava não saísse à rua (que ficassem reservadas ao limite casa), mas não explicitavam o porquê dessa advertência. Entretanto, não encontrei este tipo de proibição referente ao homem escravo nos anúncios. A experiência de leitura dos jornais assemelha-se a olhar uma fotografia da época, na qual o olhar do fotógrafo seleciona o que quer mostrar. Os anúncios de jornal também selecionaram o que queriam expor e como se fosse um retrato podemos ver mulheres e homens marcados com características diferenciadoras como o sexo, a raça e gênero. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.697

Fonte JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, quarta-feira, 2 Jul. de 1848a. n. 176, suplemento, p. [?]. JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, quarta-feira, 16 Jul. de 1848b. n. 190, p.3-4. JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, quarta-feira, 2 Jul. de 1848c. n. 176, p. 4. JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, domingo, 6 Jul. de 1848d, n 180, p. 4. JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, sábado, 12 Jul. de 1848e. n. 186, suplemento, p. 2. JORNAL DO COMMERCIO. Rio de Janeiro, sábado, 5 Jul. de 1848f. n 179. p. 4. Bibliografia AMANTINO, Márcia. As condições físicas e de saúde dos escravos fugitivos anunciados no Jornal do Commercio (RJ) em1850. História, Ciências, Saúde Manguinhos, Rio de Janeiro, v.14, n.4, p.1377-1399, out.-dez. 2007. CARNEIRO, Maria Elizabeth Ribeiro. Corpos que nutrem: mulheres procuradas e oferecidas para aluguel e venda na Capital da Corte Imperial. Tempo e História. Nº 7, 2003. CARNEIRO, Sueli. Gênero e raça. In: BRUSCHINI, Cristina e UNBEHAUM, Sandra G. (orgs). Gênero, democracia e sociedade brasileira. São Paulo: Fund. Carlos Chagas/Ed. 34, 2002. p. 167-193. DIAS, Maria Odila. Quotidiano e poder em São Paulo no século XIX. São Paulo: Brasiliense, 1984. GIACOMINI, Sonia. Mulher e escrava: uma introdução histórica ao estudo da mulher negra no Brasil. Rio de Janeiro: Vozes, 1988. GOMES, Flávio; PAIXÃO, Marcelo. Histórias das diferenças e das desigualdades revisitadas: notas sobre gênero, escravidão, raça e pós-emancipação. Estudos Feministas, Florianópolis, SC, v.16, n.3, p. 949--964, set. 2008. GRAHAM, Sandra Lauderdale.. Caetana diz não: histórias de mulheres da sociedade escravista brasileira. São Paulo: Companhia das Letras, 2005. KARASCH, Mary C. Vida dos escravos no Rio de Janeiro, 1808-1850. São Paulo: Cia. das Letras, 2000. LUCA, Tânia Regina. A história dos, nos e por meio dos periódicos. In: PINSKY, Carla Bassanezi (org.). Fontes Históricas. São Paulo: Contexto, 2005. LUSTOSA, Isabel. O nascimento da imprensa brasileira. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 2003. MARTINS, Ana Luiza; LUCA, Tania Regina. Imprensa Tardia (1808-1889). In:. Imprensa e Cidade. (Coleção Paradidáticos). São Paulo: ENESP, 2006, p. 16-34. MOTT, Maria Lúcia Barros. Submissão e resistência: a mulher negra na luta contra a escravidão. São Paulo: Contexto, 1988. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.698

PINSKI, Jaime. A escravidão no brasil. São Paulo: Contexto, 1988. PEDRO, Joana Maria. Traduzindo o debate: o uso da categoria gênero na pesquisa histórica. História, São Paulo, v. 24, N.1, p. 77-98, 2005 SCOTT, Joan. Gênero: uma categoria de análise útil a análise histórica. Educação e Realidade. Porto Alegre, v. 16, n.2, p.5-22. Jul/dez., 1990. SCHWARCZ, Lilia Moritz. Retrato em Branco e Negro: jornais, escravos e cidadãos em São Paulo no final do séc. XIX. SP, Companhia das Letras, 1987. YOUSSEF, Alain El. Imprensa e escravidão: política e tráfico negreiro no império do Brasil (Rio de Janeiro, 1822-1850). Tese (Doutorado). Universidade de São Paulo. Faculdade de Filosofia, Letras e Ciências Humanas, São Paulo. 2010. Anais do Colóquio Nacional de Estudos de Gênero e História LHAG/UNICENTRO, p.699