SEMINÁRIO SOCIEDADE, ESCOLA E VIOLÊNCIA 06 de junho de 2009



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Transcrição:

SEMINÁRIO SOCIEDADE, ESCOLA E VIOLÊNCIA 06 de junho de 2009 Cultura da violência no espaço escolar Miriam S. Leite Trago neste texto breve problematização da dimensão cultural da violência no cotidiano escolar, com base no estudo de caso de cunho etnográfico que empreendi em uma escola pública da rede municipal de ensino do Rio de Janeiro e resultou na tese intitulada Entre a bola e o mp3 diferença adolescente, dialogia e regulação do coletivo escolar (Leite, 2008). A pesquisa A escola investigada aqui referida como Escola dos Murais foi definida em consulta à Divisão de Educação da 2ª Coordenadoria Regional de Educação da Secretaria Municipal de Educação do Rio de Janeiro, quando se optou pela pesquisa em uma escola que atendia o segmento do sexto ao nono ano, em área da cidade considerada de risco moderado. Durante o ano letivo de 2006, fiz observação sistemática dos diversos espaços da escola pesquisada (secretaria, sala dos professores, pátio, corredores, refeitórios, sala de leitura, sala de vídeo, hall interno, portão), das reuniões (centros de estudo, reuniões de pais, conselhos de classe), das aulas (Artes, Ciências, Francês, Geografia, História, Língua Portuguesa, Matemática, em turmas de oitavo e nono ano, nos turnos da manhã e da tarde), entrevistas (gestoras, professores, inspetora, mãe representante, mãe e avó amigas da escola, alunos) e levantamento de dados 1. 1 Além dos dados sociodemográficos coletados na secretaria da escola, pude contar com as informações coletadas pela equipe de pesquisa do professor Márcio da Costa, da Faculdade de Educação da UFRJ, que também pesquisou essa mesma escola nesse período, sob outro enfoque.

2 De acordo com os dados das fichas dos alunos, a escola atende a uma maioria de filhos de porteiros, taxistas, vendedores, entre outras ocupações congêneres, em termos de remuneração e prestígio social, moradores de bairros próximos à escola, que, por sua vez, se situa em área turística da cidade. Esse mesmo levantamento revelou também uma minoria de moradores de favelas próximas, assim como um percentual também minoritário de filhos de profissionais com formação universitária, como professores e advogados. Apesar da relativa precariedade das suas instalações físicas, é geralmente considerada por seus alunos, gestores e professores como uma boa escola e teve destaque positivo no seu desempenho na Prova Brasil de 2005. Se a breve indicação da ocupação profissional dos responsáveis e locais de moradia dos alunos da escola evidencia a diversidade do corpo discente, o conjunto dos profissionais da escola tampouco pode ser considerado homogêneo, comportando trajetórias pessoais e profissionais bastante distintas. Entretanto, nesse quadro marcadamente plural, um (quase) consenso emergiu das observações e entrevistas: afirmava-se que não havia violência naquele espaço. Violência na escola A revisão dos trabalhos publicados no Brasil, nas últimas décadas, acerca da temática da disciplina/indisciplina na escola traz um dado interessante: a partir da década de 90, decresce o número de reflexões que especificam essa questão como seu tema central, enquanto aumentam os trabalhos voltados para o problema da violência nas escolas 2. Percebe-se, na leitura desses trabalhos, que muitas situações anteriormente tratadas como atos de indisciplina passam a ser abordadas como casos de violência escolar. Para além de algum modismo passageiro, esse deslocamento conceitual parece responder a um agravamento da questão da violência em termos sociais mais amplos, o que afeta diretamente a escola, em pelo menos dois sentidos: 1) o mais previsível: a invasão efetiva da escola pela violência externa à instituição, que pode tomar múltiplas formas, como a utilização do seu espaço, por parte de criminosos, para a venda de drogas ou mesmo guarda de armamentos, o aliciamento de jovens estudantes para participação no tráfico, 2 Essa revisão é confirmada pelos trabalhos mais abrangentes de Abramovay & Rua (2003) e de Tigre (2002).

3 disputas de gangues etc.; Guimarães (1998, p.133) destaca um outro grave sinal dessa invasão: As regras do mundo da rua se intrometem na vida escolar de forma direta, não mais como resultado de esforços de adaptação à cultura do aluno, mas em função da necessidade de buscar, nas regras de convivência com o meio imediato, sua própria condição de sobrevivência. 2) quando a escola incorpora, na ação dos sujeitos nela atuantes, elementos da cultura da violência, cultura essa que se desenvolve em articulação com o crescimento das ações violentas na sociedade: Uma cultura do medo, da desconfiança, da competitividade, da insegurança, da representação do outro como inimigo, particularmente se pertence a diferente universo social e cultural, permeia as relações interpessoais e sociais cada vez com maior força, especialmente nas grandes cidades. (Candau, Lucinda & Nascimento, 2001, p. 25) É também interessante observar a crescente abrangência do termo violência, o que é identificável não apenas nos estudos referidos a questões escolares. Percebese, na discussão da violência na contemporaneidade, a tendência a incorporar a dimensão simbólica da prática da violência, para além da intimidação e da agressão pela força física. A despeito da sua pertinência, essas considerações trazem certo desconforto, em termos conceituais, para os estudos sobre indisciplina e violência na escola. Onde se situam as fronteiras entre esses conceitos? O extremo da violência não deixa dúvidas a classificação é clara para incidentes com armas de fogo ou que envolvam o tráfico, por exemplo. Do mesmo modo, quando Vasconcellos (2000) argumenta que a não participação nas aulas e atividade escolares é uma forma de indisciplina, não parece haver dúvida do que está em questão um caso que dificilmente seria pensado como violência. Mas, além desses extremos, ocorre, no dia-a-dia da escola, uma série de ações de desrespeito, contra/entre pessoas, propriedades, instalações físicas da instituição ou mesmo contra os rituais e dinâmicas do trabalho escolar, que não chegam a justificar manchetes de jornais e estabelecem a dúvida: casos de indisciplina ou de violência na escola? Na visão dos entrevistados da Escola dos Murais, contudo, parecia não haver maiores questionamentos nesse sentido: a violência esteve associada predominantemente à agressão física e à criminalidade, violência social que tem origem primeira no exterior da escola. As manifestações da violência no segundo sentido apontado neste trabalho isto é, pela incorporação no espaço escolar de elementos da cultura da violência não pareceu serem percebidas pelos entrevistados como tal, embora, segundo meus registros do caderno de campo, sua ocorrência

4 fosse relativamente frequente no cotidiano da Escola. Seguem alguns, entre os muitos exemplos possíveis. Violência na Escola dos Murais Em sala de aula, no pátio ou no refeitório, nem sempre era fácil ser/aparentar ser frágil ou diferente entre os alunos da Escola dos Murais. A homofobia, por exemplo, era uma constante em falas e atitudes discentes e, em menor escala, também de alguns docentes: meninos identificados como homossexuais pelos colegas podiam se recolher à invisibilidade o que era permitido aos mais fortes física e psicologicamente ou ser alvo constante de deboche, repulsa, abusos diversos. O preconceito racial, assim como em relação à região geográfica de origem da família ou à sua situação sócio-econômica, aparecia cotidianamente nas interações entre os alunos, sendo alvo de intervenção de um número bastante restrito de professores: macaco, porteiro, seu preto, paraíba foram xingamentos recorrentes em aulas observadas. Bullying e roubo tampouco foram reconhecidos como situações de violência. Cultura da violência e cotidiano escolar O alargamento do conceito de violência que se percebe tão difundido nas produções acadêmicas que tratam desse tema não estava, em geral, incorporado pelos profissionais do espaço pesquisado. A discussão da motivação desse entendimento específico de violência requereria mais espaço do que o disponível neste texto, mas interessa destacar algumas decorrências dessa perspectiva. A associação entre violência, criminalidade e agressão física relegava à categoria de indisciplina as situações apontadas no item anterior: a dimensão cultural do fenômeno da violência era desse modo desconsiderada e, por fim, tendia a ser naturalizada. Xingamentos preconceituosos e atitudes discriminatórias eram entendidos como brincadeiras e só um jeito de falar, condenáveis, porém típicos da adolescência: eles são muito cruéis, essa idade é terrível 3. Poucos foram os registros de intervenção de professores nessas ocorrências, que, entretanto, quando 3 Dada a necessidade de restrição do número de páginas deste texto, não foi possível expor aqui a análise das entrevistas e das observações, de onde foram retiradas estas falas de entrevistados

5 aconteciam, eram bastante eficazes no sentido de proporcionar um ambiente de aprendizagem mais ético e respeitoso. O alargamento do conceito de violência, ao incluir as manifestações verbais e simbólicas desse fenômeno, parece, portanto, favorecer a atuação da escola na contraposição à cultura da violência, na medida em que confere gravidade aos pequenos atos cotidianos que dela resultam, mas que também a reforçam e atualizam. Bibliografia ABRAMOVAY, Miriam & RUA, Mª das Graças. Violência nas escolas. Brasília: Unesco Brasil et alli, 2003. CAMACHO, L. M. Y. Violência e indisciplina nas práticas escolares de adolescentes. Um estudo das realidades de duas escolas semelhantes e diferentes entre si. Tese (doutorado). Faculdade de Educação da USP, São Paulo, 2000. CANDAU, Vera Mª, LUCINDA, Mª da Consolação & NASCIMENTO, Mª das Graças. Escola e violência. Rio de Janeiro: DP&A, 2001. DUBET, F. Le déclin de l institution. Paris: Éditions du Seuil, 2002. DUBET, F. & MARTUCELLI, D. À l école. Sociologie de l expérience scolaire. Paris: Éditions du Seuil, 1996. ELIAS, N. O processo civilizador. V. 1. Uma história dos costumes. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1994. GUIMARÃES, Eloísa. Escola, galeras e narcotráfico. Rio de Janeiro: Ed. UFRJ, 1998. LEITE, Miriam S. Entre a bola e o mp3. Diferença adolescente, dialogia e regulação do coletivo escolar. Tese de doutorado. Orientação da profª Vera Candau. Departamento de Educação da PUC-Rio, 2008. TIGRE, Mª das Graças do E. S. Violência na escola: análise da influência das mudanças socioculturais. In: Anais da 26ª Reunião Anual da Anped. Caxambu, 2003. VASCONCELLOS, Celso dos S. Disciplina. Construção da disciplina consciente e interativa em sala de aula e na escola. São Paulo: Libertad, 2000.