EDUCAÇÃO FÍSICA: EM BUSCA DA GÊNESE DO USO SOCIAL E POLÍTICO DO CORPO *



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Transcrição:

EDUCAÇÃO FÍSICA: EM BUSCA DA GÊNESE DO USO SOCIAL E POLÍTICO DO CORPO * Christianne Luce Gomes Werneck ** Na Antigüidade clássica estão os embriões da dicotomia corpo-alma, da concepção de corpo enquanto esfera apenas biofísica e da submissão do corpo à parte racional. Esses sentidos são frutos do pensamento grego pré-socrático e, como estão presentes até os nossos dias, tudo aquilo que está relacionado ao corpo ocupa posição inferior nas estruturas sociais hierarquizadas. Mas qual a gênese do uso social e político do corpo em nosso contexto? 1 O pensamento platônico-aristotélico: raízes primeiras da concepção de corpo Platão reforçou no pensamento filosófico ocidental uma cisão entre corpo e alma, relação de oposição entre o sensível e o inteligível, mundo da matéria e mundo do espírito. Essa ruptura é baseada na teoria dos dois mundos, o mundo das essências ou das idéias representado pelas coisas reais, eternas, invisíveis e incorpóreas e o mundo das coisas sensíveis caracterizado pelos objetos materiais, conhecidos por meio das sensações, submetidos ao nascimento, à transformação e à morte. Acatando o princípio da ordem cosmológica, Platão considerava o mundo sensível (physis) uma cópia imperfeita do mundo inteligível (logos). Uma vez pertencente a esses dois mundos, o homem deve procurar libertar-se do corpo, vivendo de acordo com a vida do espírito, cuja natureza é imortal. A classe guerreira possuía certo valor no pensamento platônico, principalmente porque era constante a ameaça de guerra dos países vizinhos, o que demandava a constituição de homens fortes para defender o mundo grego. Contudo, os guerreiros deveriam se entregar a exercícios de ginástica e a trabalhos que tivessem em mira não apenas o vigor corporal, mas, sobretudo, o enobrecimento da alma, agindo diferente "dos atletas comuns, cujos exercícios e regime alimentar visam desenvolver apenas os músculos" (A república, p. 73). Entretanto, na cultura grega não se destacaram apenas as idéias de Platão sobre o corpo. Diferentemente deste, para Aristóteles [s.d.] o corpo deixa de ser negativo, pois o desenvolvimento corporal poderia favorecer a expressão da inteligência, mesmo sendo a contemplação o objetivo mais nobre a ser alcançado. Platão jamais admitiu, como Aristóteles, a possibilidade de existir um saber sensível. Devido à sua formação básica em medicina, Aristóteles salientou a importância do "corpo biológico", considerando a saúde e a beleza corporal como virtudes agradáveis e necessariamente boas. Segundo o pensamento aristotélico, "a virtude do corpo é a saúde, que deve permitir-nos usar do corpo, sem contrair doenças" (Arte retórica e arte poética, p. 47). Nesse sentido, o corpo passa a ser salientado como algo importante para uma vida longa e livre de enfermidades. Identifico em Aristóteles a gênese da concepção de corpo como algo puramente biológico. Considerando o princípio hierárquico, Aristóteles acreditava que a natureza destinou certos homens a dominar e outros a serem dominados. Sendo os escravos indivíduos tão inferiores, o emprego da força física era o melhor que deles se poderia obter. Essa característica também é traduzida nas relações entre o corpo e a alma, como afirma Aristóteles em sua obra A política: "Todo ser vivo se compõe de alma e corpo, destinados pela natureza, uma a ordenar, o outro a obedecer" (p. 15). A alma dirige o corpo, como o senhor ao escravo. A obediência do corpo ao espírito da parte afetiva à inteligência e à razão é útil e conforme as leis da natureza. A partir das considerações platônico-aristotélicas, observo que a visão dicotômica é um princípio básico, gerando a separação entre o corpo e a alma, entre o trabalho manual e o intelectual, entre a teoria e a prática. De acordo com a noção de natureza hierárquica, esses pólos não são somente

separados, mas há submissão de uns aos outros. Além disso, é importante destacar o uso social e político do corpo nesse contexto, uma vez que a força corporal dos guerreiros consistia em um meio eficiente para a garantia do exercício do poder. O poder na cultura clássica grega determina as condições de cidadania harmoniosa e concentra-se nas mãos da aristocracia intelectual, classe desapegada do mundo sensível e dos bens materiais. Os filósofos possuem inteligência e dominam o saber, detendo, naturalmente, autoridade e poder para governar a cidade. Quem não possui nada além de força física deve, inevitavelmente, obedecer e servir. Essa herança revela a subordinação do corpo ao espírito, como salientaram Platão e Aristóteles. A filosofia grega foi se perpetuando ao longo dos séculos, mas, a partir do período medieval, assume novos significados, que passam a corresponder às perspectivas cristãs. Nesse sentido, o jogo de poder que manipula o uso social e político do corpo alcança outras dimensões. 2 Contribuições do pensamento agostiniano-tomista O contexto medieval, caracterizado por um cristianismo associado ao helenismo, trouxe à tona, novamente, a visão platônica de corpo, considerando-o como fonte de pecado, e negando seu prazer em função da salvação da alma. Com isso, o corpo passa a ser objeto de resignação cristã. Essa questão é evidenciada de forma mais consistente em Santo Agostinho [ s.d.], para quem o corpo, apesar de ser uma fonte de delícias, é a causa de todos os males e da decadência humana. Embora tenha sofrido influência dos escritos platônicos, Santo Agostinho não admite que a matéria seja ruim, nem que a alma seja unida ao corpo em castigo do pecado. O corpo humano não é o túmulo ou prisão da alma, mas, tornou-se tal, devido ao pecado original. Assim, o objetivo primordial do ensinamento moral é a libertação da concupiscência corporal. A alma representa a parte mais excelente do ser humano e, sendo melhor porque é imortal e vivifica a matéria do corpo, é incumbida de governá-lo e precisa ser santificada. Enquanto mediadora entre o corpo e as idéias divinas, a alma tem a obrigação de dominá-lo, submetendo-o a Deus. A alma, apesar de ser uma substância completa, se serve do corpo para formar com ele nova substância. Graças a essa união, a natureza inferior ou corporal se une, por meio da alma, à natureza suprema de Deus; porém, quando sucumbe aos apetites do corpo, o homem exclui a si mesmo da verdadeira vida, passando a levar uma vida de morte e de prisão. É do corpo, portanto, que brota toda a iniqüidade e o afastamento de Deus. Da vontade perversa nasce o apetite, do apetite satisfeito procede o hábito, que, não contrariado, se transforma em necessidade. Uma vez corrompido pelo vício, o corpo sobrecarrega a alma, afastando-a do caminho reto que conduz a Deus. Somente o medo da morte e o juízo de Deus são capazes de afastar o corpo do profundo abismo dos prazeres carnais. Assim, como "o prazer procura o que é belo, melodioso, suave, saboroso, agradável ao tacto" (p. 206), era preciso tomar cuidado com todo o tipo de tentação, principalmente no que diz respeito aos prazeres do corpo. A busca pelo prazer corporal e a entrega aos deleites inquietos deveriam ser, a todo instante, evitados, demandando agir sobre todos os sentidos de diferentes maneiras. Santo Agostinho afirma que as sensações, aparentemente experimentadas pelo corpo, são, na verdade, sentidas pela alma. Sendo própria à alma, a sensação constitui uma forma de conhecimento espiritual. Esse conhecimento deve ser direcionado para a conquista das verdades eternas, pois a alma sofre com o lançamento desenfreado aos apetites corporais. "As ações são, pois, ações que a alma exerce, não paixões que ela sofre." (Gilson, 1995:46). Ao satisfazer fantasias passageiras, o corpo provoca a ruína da alma, que se enloda numa espécie de fornicação espiritual.

Com isso, verifico que, do cristianismo propagado pela filosofia agostiniana, herdamos principalmente a noção de corpo como fonte de pecado, causa de todos os males e da decadência humana. Essa idéia teve seus primeiros fundamentos em Platão e percorreu toda a Idade Média. Para Santo Tomás de Aquino (1973), o corpo não era visto como fonte de pecado e causa da degradação do ser humano, como salientava Santo Agostinho. Assim como Aristóteles, Santo Tomás considerava a participação do corpo fundamental para o processo de construção do conhecimento. Os pensamentos aristotélico e tomista, apesar das diferenças que os distinguiam, compartilham a afirmação de que não há nenhuma concepção, até mesmo no espírito, que não seja originada nos órgãos dos sentidos. O corpo (matéria), juntamente com a alma (forma), constitui um todo ou composto no pensamento tomista. O rigor com que Santo Tomás de Aquino defende a unidade essencial do homem não tem paralelo nos outros pensadores da filosofia cristã, idéia muito contestada pelas autoridades eclesiásticas, por representar um perigo aos interesses cristãos. Para Santo Tomás, corpo e alma representam a união de dois seres que, tomados em separado, são incompletos. É a partir dessa união que os seres completos se constituem. Com isso, da alma e do corpo resulta um só ser composto. Para Santo Tomás, é à alma, como forma substancial única, que o homem deve a totalidade do seu ser: o existir, o ser-corpo, a energia sensitiva, a racionalidade, a vida. A alma situa-se na fronteira da criação espiritual e da corporal e, embora intimamente unida ao corpo, não se submete a ele. A alma deve dominar a matéria e não se deixar absorver por ela, tendo em vista a busca da salvação. Santo Tomás de Aquino defende a tese da unidade da forma substancial no composto a totalidade do ser humano, o que representa um avanço em relação aos outros autores estudados. Apesar de sua tese ser combatida e rejeitada pela corrente conservadora dos mestres franciscanos e pelos representantes do clero de sua época, Santo Tomás não hesitou em defendê-la, buscando no pensamento aristotélico argumentos para a construção de seu princípio teológico-filosófico-cristão. Embora defenda a totalidade do ser humano, Santo Tomás é, por vezes, contraditório, pois, em uma unidade, não há divisão em partes, não há domínio, nem submissão. Acatando princípios cristãos, Santo Tomás considera a alma mais importante do que o corpo. Devido à sua imortalidade, ela detém o direito e o dever de dominá-lo, orientando-o segundo os códigos morais revelados por Deus. Essa questão revela a dificuldade encontrada por esse autor em conciliar os frutos de suas reflexões aos princípios da moral cristã medieval. Uma concepção de ser humano como totalidade não corresponde aos interesses ideológicos da Igreja, voltados para uma vida digna e liberta dos pecados corporais, tendo em vista a salvação da alma. Assumir essa totalidade era assumir o corpo que sente prazer, o que não corresponde às idéias propagadas pela Igreja, que vê no corpo um objeto de resignação cristã. No início da Modernidade, há uma tentativa de ruptura com os valores que se vinham perpetuando desde a Antigüidade clássica. A Idade Moderna assistiu ao triunfo da racionalidade, respaldada pelo conhecimento científico. Com a quebra da relação razão-fé, o conhecimento contemplativo, fundamentado na filosofia clássica, cedeu lugar a um outro tipo de saber. 3 O papel do corpo no racionalismo cartesiano e no empirismo hobbesiano Assim como os outros autores que o precederam, René Descartes (1979) admite a existência de duas realidades distintas e completamente independentes: corpo (substância extensa) e alma (substância pensante). Para a filosofia cartesiana, o conhecimento se estrutura a partir das idéias, e o intelecto representa o princípio único do saber. Não há um fundamento material reconhecido como válido, e a realidade sensível do mundo da matéria só tem algum valor se for demonstrada no nível da razão.

De acordo com o pensamento cartesiano, há total autonomia do pensamento e a razão é a única condição necessária para encontrar a verdade. Nesse sentido, a dúvida é o ponto de partida para a reconstrução do saber. O corpo, contudo, não tem nenhuma participação nesse processo de dúvida, mas essa anulação da matéria não impede que o pensamento seja conhecido com toda a certeza. A primeira certeza, para Descartes, foi a descoberta do eu pensante. Do ponto de vista da existência, só o eu escapa à dúvida. O ser humano é, assim, definido como uma coisa cuja essência é pensar. Apresentando a realidade da substância pensante, Descartes afirma a soberania do espírito, uma vez que o próprio corpo, em sua essência, não é conhecido pelos sentidos, nem pela imaginação, mas pelo entendimento. Dado que a essência dos corpos é traduzida por propriedades geométricas, Descartes abraça uma concepção mecanicista do mundo corporal. O ser vivo é visto como um mecanismo despojado de sensibilidade e de atividade psíquica. O corpo é, assim, comparado a uma máquina e, se esta se quebra, a alma se ausenta. Assim, "a alma está implantada na máquina do corpo, mas não é seu princípio de formação nem conservação. Trata-se simplesmente de íntima associação da alma com o todo e as partes da máquina já feita" (DESCARTES, 1979: 208). Para Descartes, o corpo não tem qualquer relação com o processo de construção do conhecimento. O racionalismo cartesiano concebe o conhecimento como procedente de princípios postulados, a priori, no intelecto. Como todos os empiristas, Thomas Hobbes (1983) contestou e travou polêmicas com esse racionalismo absoluto postulado por Descartes, pois, para o empirismo, o conhecimento é fundado na experiência, especialmente na experiência sensível do corpo. Tratando-se da célebre e polêmica afirmação de Descartes "penso, logo existo", Hobbes acreditava que o conhecimento da proposição "eu existo" poderia depender do conhecimento da proposição "eu penso", mas colocou um problema: de onde vem o conhecimento proveniente da proposição "eu penso"? Aos olhos de Hobbes, não é possível conceber qualquer ato sem seu sujeito, da mesma maneira que não se pode conceber o pensamento sem uma coisa que pense, a ciência sem uma coisa que saiba e o passeio sem uma coisa que passeie. De onde se segue que uma coisa que pensa é alguma coisa de corporal. Hobbes baseou-se no empirismo, uma vez que considerou a sensação como princípio do conhecimento de todos os outros princípios. A própria ciência era vista como uma derivação integral da sensação. Cada pensamento, isoladamente, significava uma representação ou aparência de certas qualidades, que se originavam na sensação causada, por sua vez, por um objeto exterior que pressionava o órgão próprio de cada sentido. Para Hobbes, não havia nenhuma concepção que não fosse originada, total ou parcialmente, nos órgãos dos sentidos. Até mesmo o espírito humano deles se originava. Diferentemente de Descartes, em Hobbes todas as substâncias são corpóreas, e o sujeito de qualquer pensamento é corporal. Todos os seres, exceto Deus, são corporais; o corpo é o ponto de partida de todas as ações. Uma vez que os espíritos têm dimensões, são também corpos, muito embora esse nome, na linguagem comum, seja dado apenas aos corpos que são visíveis, ou palpáveis. Esse materialismo empirista foi rejeitado por Descartes. Para ele existe uma substância extensa, pressuposta pelos chamados atos corporais, diferente dos atos intelectuais, sendo que estes últimos residem em alguma coisa "que pensa". Dessa forma, atos intelectuais e corporais não têm qualquer espécie de afinidade no dualismo cartesiano, pois a natureza inteligente é distinta da corpórea. Para Descartes, estão equivocados aqueles que, como Hobbes, acreditam que nada existe no entendimento sem, primeiramente, passar pelos sentidos. Assim esclarece Descartes (1979:191-192):

"O sentido da vista não nos garante menos da verdade de seus objetos que os do olfato ou do ouvido; ao passo que a nossa imaginação e os nossos sentidos nunca nos poderiam dar certeza de cousa alguma, sem a intervenção de nosso entendimento." Na posição cartesiana, o movimento e a extensão material são suficientes para explicar tudo o que se refere ao mundo corporal, mas não são válidos para explicar o que acontece no mundo intelectual. O conhecimento racional, no entanto, foi visto por Hobbes como necessário na construção da ciência, pois, para ele, o raciocínio depende de nomes, os quais, por sua vez, dependem da imaginação. Esta, contudo, depende dos órgãos corporais. A sensação, portanto, representa o pressuposto básico na teoria hobbesiana. Além dos princípios racionais e sensitivos que constituem o corpo, Hobbes salientou os aspectos políticos a ele inerentes. Essa idéia é desenvolvida, sobretudo, em Leviatã, obra na qual o autor esboça os fundamentos de seu pensamento. A vida é entendida de forma mecânica por Hobbes. Significa uma movimentação de membros, cujo início acontece em alguma parte ou órgão principal. Com isso, o corpo humano poderia ser comparado a um autômato, ou até mesmo à máquina por excelência: o relógio. Michel Foucault (1994) argumenta que os autômatos não são vistos apenas como uma forma de ilustrar o organismo, mas servem também para arquitetar bonecos políticos, modelos vistos como objeto e alvo de poder como o Leviatã. Com isso, é gerada uma verdadeira "anatomia política", que passa a definir formas eficazes de ter domínio sobre o corpo dos outros. Em suma, esses princípios delineados no gestar da Modernidade reforçaram ainda mais a concepção de corpo como esfera apenas biofísica, visão que se vem perpetuando ao longo de nossa história, culturalmente legitimada pelo senso comum. Com isso, o corpo é destituído de significados socioculturais e fica passível de ser subjugado pelo jogo de poder/saber predominante em cada contexto histórico. 4 Palavras finais Essas reflexões indicam-me que, apesar de suas particularidades, os autores estudados compartilham dos princípios de instrumentalização e mecanização do corpo. Dessa forma, o ponto de partida do uso social e político do corpo pelo jogo de poder na Educação Física, hoje, engendrado pela legitimação do conceito biológico como a única leitura possível de sentido de corpo, é a sua instrumentalização, princípio básico para a constituição do sentido de corpo coisificado, arquitetado e construído por diferentes projetos pedagógicos. Como ficou evidenciado no decorrer deste estudo, a concepção fragmentada de corpo vem se perpetuando no pensamento ocidental, o que foi compartilhado por Descartes, Hobbes, Santo Tomás de Aquino, Santo Agostinho, Aristóteles e Platão. A ênfase na coisificação do corpo e valorização da racionalidade são, historicamente, incisivas, porque camuflam o perigo que as manobras correriam ao permitir o aflorar da totalidade do ser humano. Nem o empirismo hobbesiano e muito menos o racionalismo cartesiano conseguiram formular uma compreensão totalizada da dimensão humana, pois ambos decompõem o corpo em aspectos parciais. Dicotomizando o corpo, fica limitada e comprometida a participação do ser humano nas tomadas de decisões que ditam os rumos da sociedade, subjugando o corpo ao jogo de poder de diferentes instituições e ampliando as hierarquias no sentido da dominação. Para que o corpo consiga se libertar das amarras da inferioridade e desse uso social e político, é fundamental renunciar ao jogo de poder que se vem perpetuando há milênios. Assim, é essencial construir, a partir das condições possíveis, um novo jogo comprometido com a utopia da totalidade do ser humano. Essa utopia é o grande despertar do corpo, da Educação Física e também de nossa sociedade, pois ela pode abrir caminhos para o (re)encontro do sujeito consigo

mesmo, com outros sujeitos-corpos e também com o corpo do mundo. 5 Referências Bibliográficas AGOSTINHO, (Santo). As confissões. Trad. Frederico Ozanam Pessoa de Barros. Rio de Janeiro: Ediouro [s.d.]. ARISTÓTELES. A política. Trad. Nestor S. Chaves e Ivan Lins. Rio de Janeiro: Ediouro [s.d.]. ARISTÓTELES. Arte retórica e arte poética. Trad. Antônio Pinto de Carvalho. Rio de Janeiro: Ediouro [s.d.]. DESCARTES, René. Discurso do método. Trad. João C. Costa. Rio de Janeiro: Ediouro, 1979. FOUCAULT, Michel. Vigiar e punir. Trad. Raquel Ramalhete. 11. ed. Petrópolis: Vozes, 1994. GILSON, Etienne. A filosofia na Idade Média. São Paulo: Martins Fontes, 1995. HOBBES, Thomas. De cive; elementos filosóficos a respeito do cidadão. Trad. Ingeborg Soler. Petrópolis: Vozes, 1993. (Clássicos do pensamento político). HOBBES, Thomas. Leviatã ou matéria, forma e poder de um Estado eclesiástico e civil. Trad. João Paulo Monteiro e Maria Beatriz N. da Silva. 3. ed. São Paulo: Abril Cultural, 1983. (Os pensadores). PLATÃO. A república. In: Diálogos III. Trad. Leonel Vallandro. Rio de Janeiro: Ediouro [s.d.]. PLATÃO. Fédon. In: Diálogos II. Trad. Jorge Paleikat e João Cruz Costa. Rio de Janeiro: Ediouro [s.d.]. TOMÁS DE AQUINO, (Santo). Compêndio de teologia. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, v. VIII, 1973. p. 73-105. (Os pensadores). TOMÁS DE AQUINO, Santo. O ente e a essência. Trad. Luiz João Baraúna. São Paulo: Abril Cultural, v. VIII, 1973, p. 9-22. (Os pensadores). WERNECK, Christianne Luce G. O uso do corpo pelo jogo de poder na Educação Física. Belo Horizonte: Escola de Educação Física/UFMG, 1995. (Dissertação, Mestrado em Educação Física).