UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA



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UNIVERSIDADE DO ESTADO DA BAHIA DEPARTAMENTO DE CIÊNCIAS HUMANAS CAMPUS I PROGRAMA DE PÓS-GRADUAÇÃO EM ESTUDO DE LINGUAGENS GERALDO FRANCISCO DOS SANTOS UM BANDO BAIANO SONHANDO COM SHAKESPEARE REFLEXÕES SOBRE A BAIANIDADE NO ESPETÁCULO SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO DOBANDO DE TEATRO OLODUM Salvador 2010

1 GERALDO FRANCISCO DOS SANTOS UM BANDO BAIANO SONHANDO COM SHAKESPEARE REFLEXÕES SOBRE A BAIANIDADE NO ESPETÁCULO SONHO DE UMA NOITE DE VERÃO DO BANDO DE TEATRO OLODUM Dissertação apresentada ao Programa de Pós-graduação em Estudo de Linguagens, Faculdade de Letras, da Universidade do Estado da Bahia UNEB, como requisito para obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Orientador: Prof. Dr. Silvio Roberto Oliveira Salvador 2010

2 FICHA CATALOGRÁFICA Biblioteca Central da UNEB Bibliotecária : Jacira Almeida Mendes CRB : 5/592 Santos, Geraldo Francisco dos Um bando baiano sonhando com Shakespeare : reflexões sobre a baianidade no espetáculo Sonho de uma Noite de Verão do Bando de Teatro Olodum / Geraldo Francisco dos Santos. - Salvador, 2010. 140f. Orientador : Prof. Dr. Silvio Roberto dos Santos Oliveira. Dissertação (Mestrado) Universidade do Estado da Bahia. Departamento de Ciências Humanas. Campus I. 2010. Contém referências, apêndice e anexo.

3 GERALDO FRANCISCO DOS SANTOS UM BANDO BAIANO SONHANDO COM SHAKESPEARE Reflexões sobre a baianidade no espetáculo Sonho de uma Noite de Verão do Bando de Teatro Olodum Dissertação apresentada ao Programa de Pós-Graduação em Estudo de Linguagens, Faculdade de Letras, da Universidade do Estado da Bahia, como requisito para a obtenção do grau de Mestre em Estudo de Linguagens. Banca Examinadora Silvio Roberto dos Santos Oliveira Orientador Doutor em Teoria e História Literária pela Universidade Estadual de Campinas. Universidade do Estado da Bahia Urânia Auxiliadora Santos Maia de Oliveira Doutora em Educação pela Universidade Federal da Bahia. Universidade Federal de Goiás Maria do Socorro Silva Carvalho Doutora em História Social pela Universidade de São Paulo. Universidade do Estado da Bahia

4 AGRADECIMENTOS A todos os irmãos do Grupo Espírita a Serviço do Amor - GESA. À atriz Maria Schüller, minha grande inspiradora. À minha família, referências de minha identidade. Aos atores do Bando de Teatro Olodum; a Márcio Meirelles e Chica Carelli. Ao meu orientador Prof. Dr. Silvio Roberto Oliveira pelo direcionamento e boas sugestões para esta dissertação. Ao caríssimo Prof. Ms. Manoel Barreto Júnior, pelo incentivo e inspiração desde a concepção do anteprojeto. Às Professoras, Dra. Urânia Maia pelo desprendimento e interesse em fazer parte das Bancas e a Dra. Maria do Socorro Carvalho pelas sugestões pertinentes desde a Banca de Qualificação. À Profa. Dra. Verbena Maria Rocha Cordeiro pelas palavras e livros e a todos os professores do PPGEL. Aos amigos e colegas do PPGEL - Edna, Neri, Ângela, Esmel, Karina, Raquel, Lisemary, Sayó, Bete e Jô (com muito carinho) e Aline pelo apoio e por enxergarem beleza nesse trabalho. À Bárbara Icó, eternamente grato desde à primeira graduação. Muito obrigado por possibilitarem através das palavras incentivadoras - aquelas que fazem caminhar com mais entusiasmo - essa experiência relevante para meu aprimoramento pessoal, humano, espiritual e profissional.

5 Somos a maré Somos o vento secular A luz da alegria, Um oceano de amor Uma nação e sua fé Que tudo pode transformar Somos Salvador Negroamor Somos da Bahia, da Nigéria e de Angola De sangue ioruba, bantu, jeje, nagô Com o branco e com o índio nós fizemos a história Somos Salvador Negroamor Na pele negra, negra emoção Mestiço é o coração dessa cidade Pulsando todo dia ao largo da Bahia Bahia negra, negra identidade Na igreja, no trabalho e no terreiro O negro é o guerreiro na palavra e no tambor Lutando todo dia por uma nova democracia Somos Salvador Negroamor (Mateus Aleluia)

6 RESUMO Esta pesquisa, de caráter qualitativo, reflete sobre a baianidade no espetáculo Sonho de uma Noite de Verão da Companhia Bando de Teatro Olodum. Os componentes verificados na encenação: dança, música, figurino e corporeidade são vistos como arenas da baianidade presentes no cotidiano e nas festividades da capital baiana. A baianidade é considerada, aqui, como uma apropriação de especificidades que marcaram a cultura baiana em sua feição negra, por agenciadores da política, das artes e da indústria turística, para forjar uma identidade baiana. Essa tentativa termina por sugerir uma baianidade-produto. Em decorrência da metodologia adotada por esse grupo de teatro, considera-se na encenação a constituição de uma baianidade negra-soteropolitana, construída nos princípios da teatralidade e da préexpressividade que evidenciam a presença cênica do ator. A partir da leitura bibliográfica referente aos temas tratados, compreende-se que a adoção de técnica específica para a composição de personagens possibilita e auxilia o ator a exprimir traços identitários na encenação. Palavras-chave: Baianidade. Bando de Teatro Olodum. Sonho de uma Noite de Verão. Traços identitários.

7 ABSTRACT This research has a qualitative nature and reflect on baianidade in the spectacle A Midsummer Night s Dream by Companhia Bando de Teatro Olodum. The components verified in the dramatization dance, music, wardrobe and corporeity are seen as arenas of baianidade present in Salvador quotidian and festivities. Baianidade is considered here as an appropriation of specificities that marked Bahia culture in her Black trait by businessmen of politics, arts and touristic industry to forge an identity of Bahia. As a result, this attempt suggests that baianidade is a product. The methodology adopted by this group leads us to consider in the dramatization the constitution of a Black baianidade of Salvador, constructed in the theatrality principles and pre-expressivity that evidences the scenic presence of the actor. Starting from a bibliographic reading concerning to the themes developed, we understand that the adoption of specific technique for the composition of characters allows and helps the actor to express identity traits in dramatization. Keywords: Baianidade. Bando de Teatro Olodum. A Midsummer Night s Dream. Identity traits.

8 Foto 1 A rainha Hipólita e o rei Teseu LISTAS 26 Foto 2 Os artesãos 29 Foto 3 O personagem Bobina do grupo dos Artesãos 30 Foto 4 Os três Pucks e as Fadas 31 Foto 5 As Fadas 33 Foto 6 A rainha das Fadas, Titânia, e o rei da floresta, Oberon 35 Foto 7 Após a declaração de amor de Titânia, Bobina transformado em asno, adormece em meio às Fadas 38 Foto 8 Oberon e Pucks triplicados 40 Foto 9 Os jovens amantes 40 Foto 10 Cena dos Artesãos representando a peça A mui lamentável comédia e crudelíssima morte de Píramo e Tisbe 42

9 SUMÁRIO INTRODUÇÃO 10 1 DO TEXTO TEATRAL PARA O TEXTO CÊNICO 17 1.1 O TEXTO DE WILLIAM SHAKESPEARE 17 1.2 A TESSITURA DO TEXTO CÊNICO 23 1.3 O PROCESSO DE TRADUÇÃO CÊNICA 44 2 A TESSITURA DO SONHO BAIANO DO BANDO 48 2.1 A COMPANHIA BANDO DE TEATRO OLODUM 49 2.2 O PROCESSO COLABORATIVO 57 2.3 A REPERCUSSÃO DO ESPETÁCULO 66 3 SOBRE OS PILARES: A BAIANIDADE EM CENA 69 3.1 ENTRE UM MODO DE SER E UM PRODUTO 70 3.1.1 A baianidade negra soteropolitana: seus pilares 78 3.1.2 Baianidade como identidade cultural 89 3.2 O SONHO DO BANDO: ARENA DE UMA BAIANIDADE NEGRA SOTEROPOLITANA 95 3.2.1 A música como reforço identitário 96 3.2.2 A dança como referência da baianidade 105 3.2.3 O figurino como matriz estética africana 109 3.2.4 A corporeidade como expressão de identidade 112 4 CONSIDERAÇÕES FINAIS 119 REFERÊNCIAS 123 APÊNDICE 129 ANEXO 135

10 INTRODUÇÃO No espetáculo teatral Sonho de uma Noite de Verão, do Bando de Teatro Olodum, objeto desta dissertação, percebe-se que a estrutura cênica conservou o texto escrito pelo dramaturgo renascentista William Shakespeare. No entanto, nos componentes teatrais apresentados cenicamente, não se pode apartá-los de elementos que fazem referência à cultura baiana. Seja pela dança coreografada com passos do ijexá 1, do rap, do samba e carnavalesca ou pela musicalidade da batida percussiva do grupo musical baiano Olodum; seja pelo figurino confeccionado com motivos africanos ou pela expressividade do corpo negro do ator que remetem à baianidade, a um jeito baiano de ser. A partir dessa constatação, elaborou-se a pergunta que moveu essa pesquisa: quais componentes cênicos que expressam a baianidade negra-soteropolitana no espetáculo Sonho de uma Noite de Verão? As pesquisas acadêmicas hoje apontam que são muitas as baianidades. Enquanto discurso, ela pode ser uma invenção fomentadora de imagens espetaculares sobre uma Bahia total, quando se enquadra toda uma população, atribuindo-lhe determinadas características. Em seu aspecto mítico, uma entidade virtual construída ao longo do tempo e como todo mito, de origem diversa, formado num passado distante e nebuloso. Na sua feição cultural, exibe especificidades da cultura baiana de cada parte em que a Bahia está dividida: a baianidade do sertão; a do recôncavo e a da capital. Cada uma delas pode trazer características do habitante do lugar (sertanejo, reconcaviano e soteropolitano) formadas em sua história sócio-cultural, abarcando costumes, crenças e valores; um legado histórico. A observação de comportamentos em bairros da capital baiana também fez vislumbrar que a baianidade apresenta modos diversificados de um local para o outro. Nessa perspectiva, concebe-se a demonstrada no espetáculo em estudo como de ascendência negra, supostamente, uma baianidade negra-soteropolitana, representada pelo trabalho cênico da Companhia Bando de Teatro Olodum. A denominação negra-soteropolitana refere-se a aspectos que dizem respeito à afro-descendência, ao nível dos elementos constituídos em sua cultura. Adota-se o termo supostamente para designar algo que não se pode determinar com precisão, como certas formas de se conceber tudo o que diz respeito a uma dada cultura, o modo de ser de seus integrantes - por exemplo -, pois como se sabe, não se deve enquadrar 1 O conceito referente a esse e outros termos serão apresentados, oportunamente, no capítulo III.

11 rigidamente as culturas desconhecidas, tendo o cuidado de evitar os essencialismos e a criação dos estereótipos. Dessa forma, esta dissertação, intitulada UM BANDO BAIANO SONHANDO COM SHAKESPEARE: Reflexões sobre a baianidade no espetáculo Sonho de uma Noite de Verão do Bando de Teatro Olodum, analisa, do ponto de vista teatral, as arenas da cultura negra que sugerem a baianidade - termo este utilizado por pesquisadores baianos para designar o modo de ser do povo do estado da Bahia, especificamente, da capital e do seu recôncavo. Em termos específicos, reflete sobre as técnicas de preparação do espetáculo que auxiliam na veiculação de aspectos culturais na encenação; identifica quais são os pilares da baianidade negrasoteropolitana; reflete sobre a origem e o conceito de bianidade. Como a pesquisa envolve duas áreas principais, a Identidade e o Teatro, esta dissertação tem como pressupostos teóricos os Estudos Culturais, na perspectiva de Stuart Hall (2005) e Pinho (2004), e a Semiologia Teatral, com Pavis (2005; 2008). Dois campos, entre os quais, se busca um diálogo. Hall (2005) concebe a identidade como um elemento fluido e em construção constante, mas não nega os traços identitários que caracterizam as sociedades. Já Pavis (2008) considera o teatro uma zona de cruzamento entre culturas. Para ele, é a cultura-fonte onde será realizada a encenação que deve determinar a relação entre o texto e a montagem. As concepções desses autores ajudam a entender a mobilidade da cultura e a tensão entre tradição e modernidade e a relação entre arte e vida. Para discutir sobre a baianidade, buscou-se apoio em pesquisadores como Moura (2001), Oliveira (2002), Pinho (2003), Pinho (2004) e Pinto (2006). Em seu estudo sobre a relação entre carnaval e baianidade, o sociólogo Milton Moura (2001) demonstrou que ela se reflete com maior predominância em determinadas arenas como a música e a dança. O termo arena foi adotado por esse pesquisador para indicar os elementos da cultura baiana que possibilitam veicular a baianidade, dentre esses, o carnaval como uma grande arena. Aqui, se retoma e se utiliza o significado do termo arena, determinando, além da música e da dança, também o figurino e a corporeidade do ator do Bando de Teatro Olodum, na composição do espetáculo Sonho de uma Noite de Verão. Em virtude de a linguagem artística ser um terreno passível e flexível para a configuração de identificações e representações culturais, concebe-se o teatro como uma arena da baianidade, um lugar que torna possível verificar traços identitários da baianidade negra-soteropolitana, a partir dos trabalhos teatrais da Companhia Bando de Teatro Olodum, cujo foco da discussão aqui proposta é o espetáculo Sonho de uma Noite de Verão.

12 Entende-se que para alcançar um determinado efeito em Teatro, quando se delineia uma concepção para a montagem cênica, o encenador trabalha com técnica específica dentre as disponíveis nesse campo, que o auxiliará a conquistar seus objetivos. Assim, considera-se que a teatralidade (Maffesoli, 1984) observada no cotidiano e levada à cena teatral, e a préexpressividade, (Barba, 1994; 1995) são elementos que possibilitam ao ator esboçar aspectos culturais na encenação. A metodologia de trabalho da Companhia Bando de Teatro Olodum, o processo colaborativo 2, possibilitou que através da observação da teatralidade presente no modo de ser de determinadas pessoas no cotidiano da cidade de Salvador, e da espetacularidade, servissem como material utilizado para a composição de personagens e cenas teatrais no espetáculo Sonho de uma Noite de Verão. O sociólogo Michel Maffesoli definiu a teatralidade ao dizer que Com isso queremos dizer que apenas o cotidiano assegura e legitima as representações, que sem isso, seriam confusas [...]. Todo o mito está ligado a esse modo de uso que é o rito. O rito é, portanto, o modo de aparecer, de Teatralização do ser social e individual; é uma passagem obrigatória [...] Toda atividade individual e social provém do domínio do Teatro [...]. A Encenação da vida cotidiana nos ensina que, do mais grotesco ao mais prático, na ordem do produtivo ou na ordem do lúdico, assistimos a um encaixe de situações maleáveis e pontuais que obedecem menos a uma construção intelectual do que a uma figuração imaginal, ao tempo em que é contraditória e constituída na aparência. (1984, p. 132-139). Embora seu estudo seja voltado para o campo social, a abordagem de Maffesoli sobre teatralização tornou-se útil aqui, em virtude da pesquisa de campo feita pelo Bando através do processo colaborativo. Para Maffesoli, são as ações do cotidiano que legalizam as representações da teatralidade. Por isso, esse conceito foi relevante para justificar a corporeidade aplicada pelos atores do Bando nos seus personagens. A Etnocenologia se debruça sobre a espetacularidade. O pesquisador Armindo Bião a definiu como uma disciplina que [...] tem como objeto os comportamentos humanos espetaculares organizados, o que compreende as artes do espetáculo, principalmente o teatro e a dança, além de outras práticas espetaculares não especificamente artísticas ou mesmo sequer extracotidianas. (1998, p. 15). Em relação à espetacularidade, Jean-Marie Pradier afirma que O espetacular deve-se entender como uma forma de ser, de se comportar, de se movimentar, de agir no espaço, de se 2 Sobre o processo colaborativo se abordará o seu conceito e aplicação pelo Bando de Teatro Olodum no tópico 1.3.

13 emocionar, de falar, de cantar, e de se enfeitar (grifo nosso) (1995, p. 24). A espetacularidade na montagem do Bando localiza-se, principalmente, no figurino - e no seu uso conjugado ao corpo que lhe ressignifica -, na exuberância de suas cores e na estilização. Ele foi confeccionado para ser espetacular. Por isso, entende-se o termo espetacularidade como aquilo que está enfeitado a ponto de atrair a atenção do espectador, seja pela beleza do conjunto roupa e adereços -, seja pela estilização do modelo. Outro elemento é a pré-expressividade. Ela é conquista do ator, que a alcança e a nutre através de exercícios especiais que revertem a lógica das técnicas corporais (Mauss, 2003), no intuito de exprimir uma presença de palco que prende a atenção do espectador. Dessa forma, através do concurso de conceitos tão próximos e interdisciplinares teatralização, pré-expressividade e espetacularidade o intuito é criar uma reflexão que traduza o modo de inserção dos componentes que se pretende identificar como de baianidade negra-soteropolitana, no espetáculo do Bando. Como este estudo apresenta relevância no campo social e artístico, interpretando dados específicos na montagem cênica, mas que são tomados como representação de uma dada cultura, a baiana, caracteriza-se como pesquisa qualitativa, que segundo Anselm Strauss e Juliet Corbin refere-se [...] ao processo não-matemático de interpretação, feito com o objetivo de descobrir conceitos e relações nos dados brutos e de organizar esses conceitos e relações em um esquema explanatório teórico. Os dados devem consistir de entrevistas e de observações, mas também devem incluir documentos, filmes ou gravações em vídeo [...]. (2008, p. 24). A pesquisa teve alguns pontos de partida. O primeiro consistiu no reconhecimento de traços identitários no espetáculo. Nessa fase, de observação direta e assistemática, assistiu-se duas vezes a montagem apresentada no ano de 2007, no Teatro Vila Velha, em Salvador- Bahia. Devido às indagações, sensações e imagens que foram surgindo na mente sobre a montagem que se desenhava ao vivo, traçando um paralelo com a cultura baiana e sua gente, é que se despertou o interesse de realizar um estudo mais detalhado da encenação. Embora a primeira encenação de Sonho de uma Noite de Verão do Bando de Teatro Olodum, em 2006, tivesse a mesma estrutura da montagem apresentada em agosto do ano de 2007, a reflexão proposta recai sobre essa última, pois é a que trouxe no elenco todos os integrantes do Bando de Teatro Olodum, os primeiros a fazerem parte do grupo, desde sua constituição. São eles os que mais participaram das produções do grupo, e, por outro lado, representam os mais experientes em relação aos princípios de encenação da Companhia.

14 Ainda na primeira fase, fez-se a leitura e o fichamento das obras de autores que versam sobre as temáticas que se pretendia discutir. Na segunda etapa, realizou-se uma entrevista semi-estruturada com integrantes do Bando capacitados para responder as perguntas abertas (Apêndice a) elaboradas com o objetivo de averiguar aspectos da montagem, como o processo colaborativo para a construção da personagem, porque é na metodologia empregada pelo grupo que se poderia compreender a sua técnica interpretativa. Dentre as dificuldades que podem cercar o procedimento de entrevista como a disponibilidade do entrevistado, a mesma só pode ser realizada com alguns integrantes do Bando. A intenção seria ouvir também o diretor do Bando, Márcio Meirelles, mas devido às limitações de tempo referentes ao cargo que ocupa como Secretário de Cultura na capital baiana, o mesmo não pode conceder entrevista, como se pretendia. A entrevista foi realizada individualmente e em momentos distintos. Ao todo, foram entrevistados duas atrizes, Val Soriano e Arlete Dias; a coordenadora e co-diretora da Companhia, Chica Carelli e o diretor musical do espetáculo, Jarbas Bittencourt. A entrevista semi-estruturada, segundo Rosa e Arnoldi, consiste em uma série de questões que permitem ao entrevistado discorrer sobre [...] seus pensamentos, tendências e reflexões sobre os temas apresentados (2008, p. 30-31), cujas questões possuem uma formulação mais flexível. Assim, a adoção dessa técnica de entrevista possibilitou o preenchimento de questões não efetivadas no roteiro de perguntas, aprofundando aspectos relativos à baianidade inserida no espetáculo. Para apresentar os momentos da encenação do Bando, em Sonho de uma Noite de Verão, incluí-se na subseção 1.2 fotos do espetáculo encenado em 2007 3. As imagens oferecem uma idéia e identificação do cenário, dos personagens e do figurino e realçam uma expressão ou detalhe que não foi visto a olho nu. Ainda nessa etapa, se pesquisou em jornais impressos em Salvador-Bahia quais críticas foram realizadas sobre o espetáculo e as incluiu em capítulo específico. Concluídas as duas etapas, fez-se uma reflexão dos dados percebidos no espetáculo e na entrevista, associando-os com a teoria semiológica teatral na perspectiva dos Estudos Culturais. Ao se debruçar no tema da identidade cultural, esse estudo se justifica não apenas por retomar essa discussão, mas por propô-la em um campo não largamente discutido como o das 3 Todas as fotos foram autorizadas pela coordenadora e co-diretora do Bando, Chica Carelli. As fotografias estão disponíveis em: < http://blogdovila.blogspot.com/2007_01_01_archive.html>. Acesso em: 10 mar. 2008.

15 Artes Cênicas. Entende-se também que, ao buscar apoio nas técnicas de análise do espetáculo, esse estudo pode contribuir para o aprofundamento de questões no âmbito da Semiologia Teatral, de forma a refletir sobre os meios e métodos, trazendo para esse campo outras abordagens, como as de Patrice Pavis (2008). Inserida na Linha de Pesquisa I Leitura, Literatura e Identidade, a pesquisa atende também aos objetivos do PPGEL Programa de Pós-Graduação em Estudos de Linguagens, da Universidade do Estado da Bahia, na fomentação de estudos no campo da Identidade Cultural e da Literatura, que visa problematizar questões postas à margem dos modelos hegemônicos, trazendo para a academia pesquisas fomentadoras de novos olhares. Para constituir uma linha de raciocínio que se inicie com o objeto de estudo até a reflexão sobre os elementos indicadores da baianidade inserida no espetáculo do Bando, esta dissertação se divide em três seções. A primeira, Do texto teatral para o texto cênico, tem como objetivo apresentar o texto Sonho de uma Noite de Verão de William Shakespeare, demonstrando suas partes constitutivas com o apoio de teóricos sobre o dramaturgo. Em seguida, narra-se o espetáculo encenado pelo Bando de Teatro Olodum e as primeiras impressões sobre o mesmo. No final da seção, se tece considerações sobre o processo de tradução no teatro, no sentido de explicar como se efetiva a montagem de um texto de uma cultura para outra. Na segunda seção, localiza-se o nascimento do Bando e sua trajetória no teatro baiano. Faz-se um percurso histórico sobre a fomentação do teatro e do movimento artístico em Salvador nos anos 1960 e 1970, com a criação da Escola de Teatro e as primeiras tentativas de um teatro-negro na capital baiana. No item 2.2, explica-se a metodologia de trabalho do Bando, o processo colaborativo, discutindo a teatralidade e a pré-expressividade como elementos agregados à preparação dos personagens pelo ator para tornar a sua presença no palco uma irradiação cênica. O item 2.3, traz aspectos da repercussão sobre o espetáculo encenado na capital baiana através de comentários jornalísticos. Na terceira seção, Sobre os pilares: a baianidade em cena faz-se algumas considerações sobre a baianidade a partir das visões de alguns pesquisadores da cultura baiana. No item 3.1, discute-se a baianidade enquanto produto e modo de ser. Ao examiná-la, constata-se que enquanto construção, ela é posta como um produto idealizado com fins mercadológicos. Essa percepção ressoa pari passu com a singularidade, com os traços identitários que caracteriza a cultura baiana. A seção traz reflexões sobre os pilares em que a baianidade se sustenta e os relaciona com as arenas da baianidade negra-soteropolitana. Em 3.1.2, Baianidade como identidade cultural, aborda-se alguns aspectos da identidade e a sua

16 complexidade enquanto fenômeno dado na cultura. Em seguida, identificam-se elementos característicos da cultura negra e a transformação deles em objetos estéticos. Na subseção 3.2 O Sonho do Bando: arena de uma baianidade negra-soteropolitana aborda-se as arenas que serviram como modelo para identificação da baianidade negrasoteropolitana no espetáculo: a música, a dança, a corporeidade e o figurino, e identifica-se a presença desses elementos culturais nas práticas sociais negras, permitindo verificar a sua origem.

17 1 DO TEXTO TEATRAL PARA O TEXTO CÊNICO Nesta seção, se apresenta o texto de William Shakespeare, destacando elementos de sua estrutura num diálogo com teóricos que pesquisaram sobre o dramaturgo e sua obra. Em seguida, se discorre sobre a encenação de Sonho de uma Noite de Verão montada pelo Bando. Em outro momento, aborda-se sobre o processo de tradução cênica, esclarecendo como se verifica a montagem teatral de um texto de uma cultura para outra. 1.1 O TEXTO DE WILLIAM SHAKESPEARE Até o advento do Romantismo (GOMES, 1992), as convenções teatrais obedeciam ao Classicismo francês, o qual buscava seguir as propostas aristotélicas contidas na Poética, como modelo normativo para a poesia fundamentada nas autoridades da Antiguidade. Por produzir peças sem considerar a rigorosidade clássica, William Shakespeare foi considerado o precursor do Romantismo, pois em suas obras se encontram características desse estilo: a genialidade autoral, a valorização do efeito e das emoções na tragédia, a relevância da imaginação, o mistério, o culto à natureza, o gosto pelo pitoresco e pelo exótico; o exagero. De acordo com o pesquisador Pedro Sussekind [...] a defesa da originalidade e da liberdade individual acima de tudo, em oposição aberta às convenções da sociedade, leva a uma extrema valorização do gênio, considerado o talento artístico natural, que não precisa seguir regras ou padrões preestabelecidos e que caracteriza o indivíduo criador e livre de convenções. (2008, p. 46). Caracterizada pela liberdade e criatividade, os pré-românticos alemães consideravam a obra de William Shakespeare como exemplo ideal de genialidade. A liberdade a que Shakespeare se entregava no ato da escrita de suas peças favoreceu outras possibilidades para a relação entre texto e cena, pois a encenação ficou a cargo do desejo da concepção idealizada pelo diretor teatral. Uma de suas peças que tem características pré-românticas é Sonho de uma Noite de Verão. Sua estrutura textual, mesmo com um enredo bem delimitado, dá margem na encenação, para a assimilação de elementos cênicos que não são determinados no corpo do texto. Na encenação contemporânea, o texto é entendido como pretexto. Pois ele pode ser também uma motivação para uma montagem de teatro, que não é obrigada a seguir à risca o

18 que o texto determina. A fidelidade ao texto passou a ser questionada, mesmo sabendo que quase nenhum encenador tenha abolido o seu uso. Essa fidelidade guarda relação com o interesse no estilo e espírito do autor, e esses dois elementos são produtos históricos datados, sujeitos ideológicos precisos, passíveis de um enquadramento tempo-espacial. É o interesse também do retorno a um mundo passado e idealizado, no qual a encenação se faria em princípios estéticos ou ideológicos ultrapassados. Sendo assim, [...] se existe um mundo, existem todos os mundos possíveis: a pluralidade histórica substitui a essência atemporal eterna (HUTCHEON, 1991, p. 85). A peça Sonho de uma Noite de Verão foi escrita em 1595, originariamente, para celebrar uma festa de casamento (Heliodora, 2008). No seu próprio enredo, que tem como tema central o amor, conta-se a história do matrimônio entre o duque de Atenas, Teseu, com Hipólita. Durante os ajustes para o casamento, chega à presença deles três jovens: Hérmia prometida a Demétrio; Lisandro apaixonado por ela, e Demétrio que é desejado por Helena, mas não é amada por ele. Egeu, pai de Hérmia, escolheu Demétrio para desposá-la. Diante da impossibilidade da união, o casal Hérmia e Lisandro resolve fugir para a floresta e são perseguidos por Demétrio e Helena. Dramaticamente, tem-se a configuração de um conflito que esboça a disputa entre dois homens pelo coração de uma mulher e outra que não é desejada. Na floresta, um local consagrado a metamorfoses, os jovens se deparam com o frio e o encantamento do local, habitado pelos seres mágicos e invisíveis: o rei Oberon e seu servo Puck e pela rainha das Fadas, Titânia, e seu séquito. Paralelo ao prévio conflito dos jovens, Oberon e Titânia brigam por ciúmes devido a um pajem adotado por ela. O conflito dos quatro jovens é acentuado a partir da intervenção do rei da floresta, que comovido com o desamparo de Helena, em virtude do desprezo de Demétrio, delega a Puck a tarefa de pingar uma porção mágica nos olhos do jovem para que se apaixone por ela. Mas por equívoco, Puck troca os parceiros e goteja nos olhos de Lisandro o líquido, o que acentua ainda mais o conflito. A situação dramática se intensifica com a chegada dos Artesãos um carpinteiro, um tecelão, um consertador de foles, um funileiro, um alfaiate e um marceneiro - em busca de um local para ensaiar uma peça a ser apresentada no casamento do duque após vencer um concurso. Um deles, Bobina, é transformado em asno sob o comando de Oberon, operação essa realizada por Puck, que também pinga uma gota da porção mágica nos olhos de Titânia que, ao acordar, apaixona-se por Bobina.

19 A metamorfose pela qual passa o artesão Bobina o capacita a ver os seres invisíveis e a penetrar na esfera incomunicável dos sonhos, mas, confuso, perde a referência de si mesmo. Não se vendo como um asno, continua agindo como homem, o que estimula o riso no leitor. A trama segue, reunindo contradições, caprichos e descaminhos inerentes ao amor, até que tudo se resolve num final coroado com o casamento harmonioso dos reis, celebrado juntamente com o dos quatro jovens amantes. Todo o conflito poderia ser resolvido antes da entrada dos jovens na floresta, porém, ao que parece, William Shakespeare foi mais longe, cruzando o lógico com o ilógico, o racional com o irracional para acentuar mais ainda o desenrolar do enredo. Para Guy Boquet, Sonho de uma Noite de Verão [...] deve ser avaliada pela beleza encantatória das situações e das palavras, que espocam num ritmo célere e brilhante (1989, p. 95). O entrelaçamento de elementos opostos oferece ao texto o dinamismo e estimula a curiosidade e a expectativa do leitor. A trama se desenrola em cinco atos, num encadeamento lógico de suas partes: do primeiro ao quarto contam-se duas cenas cada um e o quinto tem apenas uma. As cenas do texto não apresentam detalhes dos ambientes nem marcadores de tempo (Ryngaert, 1995), nos quais se desenrolam as ações dos personagens. Também não há nenhuma referência ao figurino deles. Mas existem algumas indicações de lugar na própria fala dos personagens, como na de Hérmia E na floresta (grifo nosso) onde nós, unidas, deitávamos nas amplidões floridas [...] (SHAKESPEARE, 2004, p. 26) e no ato I, cena I, na fala de Teseu: Senão a lei de Atenas (grifo nosso) a entrega à morte ou ao voto de celibatária (SHAKESPEARE, 2004, p. 21). Portanto, nas indicações cênicas ou didascálias (Ryngaert, 1995), nota-se uma economia por parte de William Shakespeare que as incluiu na malha textual apenas para sugerir as entradas e saídas, além de pequenas ações dos personagens nas cenas: no ato I, cena I (Entram (grifo nosso) Teseu, Hipólita, Filostrato e Séquito) (SHAKESPEARE, 2004, p. 16) e ato I, cena II (As fadas cantam (grifo nosso)) (idem, ibidem, p. 45). Esse modo de escrever, pois a dramaturgia de William Shakespeare de acordo com Luiz Fernando Ramos (1999) era para ser encenada e não lida, economizando indicações de tempo, lugar ou de figurino, proporciona tanto ao leitor quanto ao encenador, muitas possibilidades imaginativas que, para o segundo, pode ser favorável para criações e adaptações no âmbito da encenação.

20 Para a leitura de um texto teatral é necessário que o leitor acione sua imaginação para não permanecer no plano puro da literatura. Imaginar as cenas, os diálogos, o cenário e todos os elementos que interagem com a situação dramática e que podem ser vistos na encenação. O texto Sonho de uma Noite de Verão também reflete aspectos de uma sociedade mítica já que o enredo se passa em Atenas, sugerindo modos de comportamento dos deuses, bem próximos dos humanos: o ciúme, a inveja, a cólera, o perdão, a festividade. Na fabula do texto, uma ética de comportamento em sociedade faz-se perceber desde os reis até os artesãos. Boquet (1989) atenta para o título da peça que guarda relação com a intrincada fusão entre duas instâncias, o sonho e a realidade, muito bem resolvida pelo dramaturgo inglês, uma marca do seu estilo e espírito poético, lírico e metafórico presentes no texto O título sugere outra ambigüidade: não só o bosque dominado por Oberon e seu instrumento Puck propicia o sonho em que Demétrio mergulha para sempre ou do qual Lisandro desperta; a própria vida, com seus sucessos inexplicáveis e a mistura incongruente de realidade e fantasia, é assimilada a um sonho. (1989, p. 97). A comédia Sonho de uma Noite de Verão é uma peça na qual se percebe três formatos: o primeiro, o lírico, um traço do estilo predominante naquele período, pode ser verificado nos diálogos dos personagens. Como exemplo, destaca-se na cena I, a fala da personagem Hipólita Quatro dias em breve serão noites; Quatro noites do tempo farão sonhos: E então a lua nova, arco de prata Retesado no céu, verá a noite De nossas bodas. (SHAKESPEARE, 2004, p. 16, ato I, cena I). O segundo, a prosa, como se nota nas cenas dos artesãos que viabiliza o diálogo com fluidez e brevidade BOBINA Primeiro, meu bom Quina, diga do que trata o drama, depois leia o nome dos atores, e no final faz ponto e pronto! (SHAKESPEARE, 2004, p. 28, ato I, cena II). E terceiro, os versos decassílabos, na fala do personagem Puck, que são longos, mas permitem entender o universo do personagem

21 PUCK Hoje de noite o rei vem festejar; Melhor ela fugir deste lugar, Pois Oberon ficou muito zangado Depois que ela arranjou como criado Um menino roubado do Oriente. Nunca se viu tão lindo adolescente: E por ciúmes Oberon deseja Que ele em seu séquito tão logo esteja. Ela o retém consigo na floresta, Coroado de flores, sempre em festa. Quando se encontram em floresta ou prado, Em fonte clara ou em campo enluarado, Brigam tanto que a fada e o duende Escondem-se em toda flor que pende. (SHAKESPEARE, 2004, p. 34, ato II, cena I). Os diálogos travados nas cenas são mesclados em climas de tensão nos momentos embalados por comportamentos que beiram à inocência ou infantilidade; de comicidade ou em situações em que o amor é declarado como total e intenso, como na fala de Helena HELENA Nunca é noite quando lhe vejo o rosto, Por isso, para mim, não é de noite; E nem me falta muita companhia, Já que você, pra mim, é o mundo inteiro. Como posso dizer que estou sozinha Se o mundo inteiro está aqui comigo? (SHAKESPEARE, 2004, p. 42, ato II, cena I). O aspecto cômico em Sonho de uma Noite de Verão está presente nas situações dramáticas e também nos diálogos, principalmente, nas cenas dos artesãos. Na encenação, o aspecto risível ganha peso com as ações corporais empregadas pelos atores do Bando de Teatro Olodum através da gestualidade, das expressões faciais e das entonações da voz para dizer certas palavras, valorizando o seu sentido cômico. BOBINA Se pode esconder a cara, deixa eu fazer a Tisbe também. Eu sei falar com a voz monstruosamente fina. Tisbe! Tisbe! Tisbe! ; Ai, Píramo, meu amante adorado! Sou tua Tisbe querida, tua dama adorada! (SHAKESPEARE, 2004, p.30, ato I, cena II). O dramaturgo William Shakespeare colocou, ainda, na fala dos personagens, críticas ou sugestões sobre a arte dramática inglesa, dando ao público o conhecimento de suas formas e artifícios

22 BOBINA Um sujeito qualquer tem que ser o muro, e ele tem de ter um pouco de gesso, um pouco de barro e um pouco de argamassa, o que vai querer dizer muro, e ele tem de ficar com os dedos abertos, assim, para parecer a racha através da qual Píramo e Tisbe vão cochicar. (SHAKESPEARE, 2004, p. 35, ato III, cena I). Sendo um dos primeiros dramaturgos a mesclar elementos diversos na composição de suas peças de teatro, no tecido textual de Sonho de uma Noite de Verão encontram-se entrelaçados vários elementos que já haviam sido empregados por William Shakespeare em outros textos: O rei Oberon e Titânia; fadas; o casamento de Teseu e Hipólita e os desentendimentos amorosos. Ressalte-se ainda, o metateatro, nas intervenções dos artesãos com a inclusão de cenas da tragédia A morte de Píramo e Tisbe, da obra Metamorfoses 4 do poeta italiano Públio Ovídio (43 a. C). A estrutura da peça demonstra a predileção de William Shakespeare por questões éticas, favoráveis a ponderações psicológicas e morais e, apesar de sua temática central ser o amor, outros temas estão no seu entorno como a aparência, a realidade, a transformação e o egoísmo. Todos esses elementos são colocados na trama textual e provocam a imaginação do leitor pela engenhosidade e coerência dramática. A encenação do texto de William Shakespeare pelo Bando de Teatro Olodum, fez perceber que a cena se antecipa a qualquer primazia do texto. Ela dialoga com ele, lhe permite mostrar a sua estrutura, a esfera dramática dos personagens, suas intenções e conflitos; vislumbra-se o tempo e o espaço; mas é a encenação que se sobredetermina ao texto. Com isso, não se defende um cenocentrismo (Pavis, 2005), mas considera-se que em teatro na contemporaneidade, o textocentrismo (idem, ibidem) não é o elemento principal, pois não dita as regras para a cena. Essa é uma característica também do chamado teatro pós-dramático (Lehmann, 2007) em cujas bases se inscrevem as encenações que não se limitam à fábula textual. Nesse tipo de teatro [...] a respiração, o ritmo e o agora da presença carnal do corpo tomam a frente do logos. (LEHMANN, 2007, p. 246). Assim, a comunicação de algo para a platéia, na encenação do Bando de Sonho de uma Noite de Verão se fez por intermédio da teatralidade mesma, alicerçada em um estudo contínuo das técnicas que permitem que ela se exprima. Dessa forma, o teatro revive a sua 4 Essa obra de Ovídio foi escrita entre os anos II e VIII da Era Cristã. Ela se constitui de um poema em forma narrativa que se divide em quinze livros. Nas lendas que trata, uma relaciona-se com a outra e em todas ocorre uma metamorfose nos personagens.

23 característica de acontecimento, de espaço destinado a novas composições, sem unidade e sem causalidade. E a encenação se constitui no ato primordial que faz com que o texto, distanciado de sua situação de produção, a era elizabetana, conviva com novas condições enunciativas: num outro tempo; atores com outras convenções cênicas; a mensagem comunicada através da representação torna-se outra. Como representação de elementos retirados do cotidiano da Inglaterra renascentista e de autores de outras épocas, materializados na malha textual, o texto Sonho de uma Noite de Verão é flexível para absorver elementos da cultura negra, pois a mesma possui elementos que dialogam numa perspectiva intercultural - com os aspectos culturais da peça de Shakespeare, como o popular, a festividade e o misticismo, terrenos muito pertinentes para acolher as arenas da baianidade, como a música e a dança. Finalmente, a tessitura do texto teatral de William Shakespeare deixa espaço para indagar a quem pertence o sonho no enredo do Sonho: se a Bobina, se a Titânia ou aos jovens, pois todos dormem e acordam enxergando coisas novas em suas vidas e, a partir do sonho, enveredam por outros caminhos. Parece que todos sonham. Mas são indagações que o texto propõe e que representam a destreza no estilo de escrever de William Shakespeare e o seu sonho de criar um texto com tanta riqueza e ambigüidade, cujas respostas ficam a cargo da imaginação do leitor de sua obra e do encenador que se apropria do texto para representá-lo no palco. A encenação de Sonho de uma Noite de Verão pela Companhia Bando de Teatro Olodum, mantendo o texto integral na fala dos personagens, é um exemplo da relação desconstruída entre texto e cena. O ato de encenação permite transgressões, revertendo a ordem dos signos textuais construídos pelo autor, abrindo espaços a outras possibilidades de leituras do próprio texto para esboçar um mundo possível. 1.2 A TESSITURA DO TEXTO CÊNICO A seguir, destacam-se e comentam-se algumas cenas, aquelas consideradas as mais importantes para a reflexão, pois são as que apresentaram a predominância dos componentes cênicos que foram identificados como sendo as arenas da baianidade negra-soteropolitana. Enquanto o público entrava e acomodava-se nas cadeiras do Teatro Vila Velha, nas duas noites em que se assistiu o espetáculo, em 2007, o primeiro contato com a encenação foi divisar o seu espaço físico, o palco. Nele, observou-se o cenário, criado com economia de materiais. Ao fundo, destacava-se uma grande foto em preto e branco do autor do texto, o

24 dramaturgo inglês William Shakespeare. Essa imagem situava-se no alto, sobre os instrumentos musicais que compunham a cena e que no decorrer do espetáculo foram tocados ao vivo. Quatro vigas de madeira, enfeitadas com fitas largas e coloridas estavam dispostas no palco: duas atrás e duas na frente, sem criar obstáculo ao fluxo das cenas. A impressão que se teve quando no início do espetáculo quando os atores começaram a se movimentar, foi a de estar diante de uma grande barraca, muito próxima das que são colocadas nas festas populares da capital baiana e que servem comidas e bebidas para os participantes. Mas essa constatação ainda não significava muito, pois somente com a presença do ator é que o significado do cenário se tornaria mais claro. Do teto, pendiam dois feixes de fitas também coloridas. Estas, em conjunto com a variedade e tonalidade de cores utilizadas no figurino (com bastante vermelho, verde, azul, laranja e amarelo, além de outras cores), emprestavam à encenação um caráter festivo, alegre, durante a qual, as tensões do conflito dramático ficavam menores, pois o desejo dos jovens amantes Hérmia e Lisandro de ficarem juntos, somado ao de Helena em pertencer a Demétrio, foram envolvidos por muita dança e musicalidade. Os objetos de cena também foram parcimoniosos. Durante a cena dos Artesãos, se usava uma mesa e dois bancos de madeira que, quando inseridos no conjunto cênico, a idéia de barraca do início, parecia ter sido completada, pois esse material era idêntico ao das festas populares de Salvador, como a Festa do Bonfim e a de Iemanjá, que ocorrem nos meses de janeiro e fevereiro, respectivamente. Em algumas entradas, os artesãos portavam um cavaquinho e um pandeiro. E na cena final, quando esse mesmo grupo de personagens encena uma peça de teatro, o único objeto era um pequeno dragão esverdeado, estilizado com material feito de espuma. A economia na utilização desses materiais e no cenário possibilitou uma maior ênfase nos movimentos dos atores no palco, evidenciando a dança e os deslocamentos dos mesmos. A abertura da peça do Bando iniciou-se com uma música cantada pelo elenco. Uma espécie de samba, musicado por Jarbas Bittencourt, diretor musical da Companhia, com uma estrofe constante no texto de William Shakespeare. O samba, alegre e ritmado, foi acompanhado por integrantes da banda, disposta em um palanque no fundo do palco. O elenco cantava e sambava pelo palco, sem os atores se relacionarem uns com os outros. A cena era mesmo de exposição, como se denomina no teatro, aquela que abre um espetáculo e que, pela forma como é disposta, dá o tom e confere o clima que será o da peça toda. A entrada do elenco, feita de maneira impactante, rompeu com a previsibilidade que se esperava em relação a montagem de um texto de William Shakespeare, por ser uma peça

25 antiga, clássica. A primeira idéia que se teve com aquele início foi resumida pela palavra carnaval ou carnavalização (Bakhtin, 2008), tal a atmosfera festiva, muito próxima do carnaval que acontece no mês de fevereiro em Salvador-Bahia e em quase todo o Brasil. A indicação de canto, que foi transformado em samba na encenação do Bando, foi demarcada no texto teatral por William Shakespeare, como se pode verificar na fala abaixo BOBINA [...] Pois eu vou ficar aqui mesmo andando de um lado para o outro, e cantando, para eles ouvirem que eu não estou com medo. (Canta grifo nosso). O melro, negro no peito, Tem o bico alaranjado; O tordo canta direito, O pintassilgo é pintado. O pardal e a cambaxirra, O cuco que mal emposta, Com quem todo o mundo embirra Mas que ninguém dá resposta. (SHAKESPEARE, 2004, p. 58-59, ato III, cena I). Embora o canto seja indicado para o personagem Bobina, esse trecho foi cantado pelo grupo dos Artesãos em todas as suas entradas e saídas de cena e, no início da peça, por todo o elenco. Verificou-se na leitura do texto teatral que o canto e a dança aparecem como indicações do dramaturgo inglês apenas na cena II do ato II, para a rainha das Fadas; na cena III do ato III, para Bobina; cena I do ato IV, para Oberon e Titânia, e cena I do ato V, para Oberon, Titânia e as fadas. Portanto, a utilização de canto e dança em outros momentos e para certos núcleos de personagens, foi uma opção do encenador Márcio Meirelles e da Companhia Bando de Teatro Olodum. Elas foram inclusas nas cenas dos quatro jovens Hérmia, Lisandro, Helena e Demétrio; nas cenas dos Pucks e dos artesãos. O que leva a concluir que foram muitas as intervenções com canto e danças feitas pela Companhia baiana, dando à encenação mais ritmo e uma maior atmosfera festiva. É como se encenador e elenco desejassem saturar a encenação com um clima de festividade e diversão. Por outro lado, entende-se que se a montagem fosse de acordo com a proposta do texto teatral, com a predominância de versos longos e rimados [...] mais do que 56, 5% dos versos (HELIODORA apud SHAKESPEARE, 2004, p. 12), ela se prolongaria, cansando a platéia, pois o espetáculo teve uma hora e cinqüenta minutos de

26 duração. Mas registrou-se que, mesmo com esse tempo considerado longo, o caráter de festividade fez com que as horas se escoassem sem que se sentisse e sem extenuamentos. Depois que todos os personagens foram aparecendo, sambando, cantando e desfilando pelo palco, no final da introdução da peça, eles se dividem em dois grupos e se dispõem nas laterais do espaço cênico, de um lado a outro. Nesse momento, todas as atrizes entoam um coro de vozes, cantadas com um trecho do texto teatral. Esse coro é interrompido com um acorde de guitarras, que designa mudança de cena. Entram os personagens, o rei Teseu e a rainha Hipólita (foto 01) e desenvolve-se a primeira cena: o conflito dos jovens amantes. Foto 1 A rainha Hipólita e o rei Teseu Fonte: Blog do Vila (2007) Em seguida, entram os personagens Hérmia e Lisandro trazidos por Egeu, e são ouvidos pelos presentes. Egeu arrasta Hérmia pelo braço até a presença do rei. Ele os acusa de estarem apaixonados. Hérmia fora prometida em casamento para o filho dele, Demetrio. Os jovens vestem roupas compridas com predominância do branco. Os gestos desse núcleo de personagens são mais formais se comparados ao grupo dos artesãos. Como são classes sociais distintas, era de se esperar uma partitura corporal que evidenciasse essa diferença. Para o núcleo dos reis, movimentos com mais leveza, poucos deslocamentos e comedimento nos gestos foram a tônica da composição física desse grupo de personagens, porém, havia força e impostação na voz, conferindo o status do poder que eles possuíam.

27 Quanto aos jovens, pelo próprio sentimento de arrebatamento que lhes assinalava a personalidade, eram mais diáfanos, rápidos; com deslocamentos abertos, despojados e dinâmicos, assim, ações como empurrar, puxar, correr, rodopios e pequenos pulos caracterizaram a presença deles durante a encenação. Durante toda a cena que se situa num castelo, Hérmia reivindica seu direito de amar a quem desejar, mas é proibida pelo rei que a adverte sobre o rigor da lei ateniense. Inconformados, os jovens Hérmia e Lisandro saem da presença dos reis e dialogam, com ele cantando um rap musicado com trechos da peça que se destaca a seguir LISANDRO Em tudo aquilo que até hoje eu li, Ou em lendas e histórias que eu ouvi, O amor nunca trilhou caminhos fáceis: Seja por desavenças de família [...] Ou, quando existe acordo na escolha, A guerra, a morte ou a doença atacam E o transformam em som que mal se ouve, Em sombra célere, em sonho rápido, Em breve raio no negror da noite Que em um momento mostra o céu e a terra, Mas antes que alguém possa dizer Veja! (SHAKESPEARE, 2004, ato I, cena I, p. 22). Esse é outro momento que causou impacto, mais pela música do que pela letra, a qual não se prestava muita atenção porque o ritmo musical encobria qualquer tentativa de reflexão textual. Os jovens dialogavam e gesticulavam de acordo com o ritmo que a música propunha. A corporeidade encenada produza o efeito de jovens impetuosos que no contexto cênico não concordavam com as leis e por isso mesmo fariam qualquer coisa para alcançar a liberdade. Ao se olhar para os lados a fim de observar a reação do público, percebeu-se que alguns riam e estavam com o olhar meio espantado e logo se entendeu que deveria ser pelo reconhecimento do ritmo, expresso na corporeidade e na voz dos atores. Entra em cena a personagem Helena. É interpelada por Hérmia que passa a responder com um texto musicado no mesmo estilo, o rap. Elas dialogam nesse ritmo musical, movimentando o corpo com os gestos que ela sugere. O rap é interrompido quando Lisandro confidencia a Helena a fuga dele com Hérmia para a floresta. Nesse momento, Hérmia fala em ritmo de Arrocha a estrofe abaixo HÉRMIA E na floresta onde nós, unidas,

28 Deitávamos nas amplidões floridas, Contando o que trazíamos no peito, Lisandro e eu temos encontro feito; Depois, Atenas nós não mais veremos. (SHAKESPEARE, 2004, ato I, cena I, p. 26). Notou-se que, com a mudança do estilo musical, do rap para o Arrocha, as personagens tornaram-se mais sensuais, os movimentos levavam a uma erotização sem vulgaridade. Naquele momento, ouviram-se as gargalhadas da platéia e percebeu-se o quanto havia de ludicidade naquele jogo dançado, no qual o corpo do ator se entregava com total propriedade. Sentiu-se uma sensação de aproximação com o que ocorria em cena, e a indiferença que se tinha daquela música e dança, no dia-a-dia, ficou atenuada. Amigas que eram, havia um ar de desafio nas duas personagens, em detrimento da possibilidade da fuga de Hérmia com Lisandro. Foi quando se percebeu que o ritmo Arrocha parecia conferir à cena uma climatização numa mistura de sensualidade, ludicidade e disputa. Após o diálogo dos três, Hérmia e Lisandro decidem a fuga para a floresta, e o casal tem o aparente apoio de Helena. Mas quando aqueles saem, Helena, sozinha, promete seguilos, contando a Demétrio para onde Hérmia havia fugido. A intenção de Helena era, pelo menos, obter a gratidão de Demétrio pela informação prestada. Ela sai de cena. Entram os seis Artesãos. Cantam o refrão do mesmo samba do início, num clima de festa e algazarra que lhes são característicos. A mesma atmosfera de festividade e carnavalização do início da peça é retomada pelos Artesãos em suas entradas. Trazem a mesa vermelha e três bancos de madeira simples, dois em vermelho e o outro em azul. O objetivo deles era combinar o ensaio de uma peça de teatro para participar de um concurso antes da festa de casamento do duque de Atenas.