A Inadmissibilidade da Tentativa em Crimes Preterdolosos. Felipe Moraes Forjaz de Lacerda Bacharel em Direito/MG



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Transcrição:

A Inadmissibilidade da Tentativa em Crimes Preterdolosos Felipe Moraes Forjaz de Lacerda Bacharel em Direito/MG RESUMO: A exposição temática desenvolvida no presente trabalho tem por finalidade explicitar à comunidade acadêmica uma abordagem acerca da incompatibilidade penal existente entre os institutos da tentativa e do preterdolo, com a finalidade precípua de questionar o modo como a questão vem sendo tratada no mundo prático, principalmente, em relação às decisões jurisprudenciais. A metodologia utilizada foi a leitura atenta de obras dos mais renomados autores que direta ou indiretamente tratam de questões ligadas as tema, bem como o estudo das mencionadas decisões, sempre considerando o atual momento em que se encontra o nosso direito, ou seja, tendo por escopo o Estado Democrático de Direito e seus princípios consectários, em especial o da dignidade da pessoa humana. PALAVRAS-CHAVE: Tentativa Culpa Dolo Preterdolo - Jurispudência ABSTRACT: The Thematic Exhibition developed in this work has the aim to clarify for academic community an approach about criminal incompatibility between institutes of attempted and preterdolo, with primary aim for questionig the way about how the subject has been treated in practical world, mostly, in relation to jurisprudential decisions. The methodology used was the careful reading of works made by the most renowned authors, which ones deal with issues related to the subject, and the study about the mentioned decisions, always considering current moment that our Law is passing through, ie, with the scope on the Democratic State of Law and it s derivatives principles, especially the Dignity of Human Person. KEYWORDS: Attempt - Blame Deceit - Preterdolo - Jurispudence

SUMÁRIO 1 - INTRODUÇÃO... 2 2 - O INSTITUTO DA TENTATIVA... 3 2.1 - O iter criminis... 3 2.2 - Conceituação e elementos da tentativa... 3 2.3 - Punibilidade... 4 2.4 - Crimes que não admitem a tentativa... 5 3 - CRIME DOLOSO... 5 3.1 - Considerações iniciais... 5 3.2 - Teorias sobre o dolo... 6 3.3 - A incompatibilidade penal entre a tentativa e o dolo eventual... 6 3.4 - Conceito e elementos do dolo... 8 3.5 - Espécies de dolo... 9 3.6 - O dolo e o erro de tipo... 10 4 - CRIME CULPOSO... 10 4.1 - Elementos do delito culposo... 10 4.2 - Modalidades de culpa... 11 4.3 - Espécies de culpa... 11 4.4 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes culposos... 13 5 - PRETERDOLO... 14 5.1 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes preterdolosos... 17 6 - CONCLUSÃO... 24 7 - REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS... 25 1 - INTRODUÇÃO O presente trabalho tem por finalidade questionar se é possível punir um indivíduo com a pena cominada a um crime qualificado pelo resultado mais gravoso culposo, diminuída de um a dois terços, quando o resultado almejado com a prática delituosa não for alcançado em razão de circunstâncias alheias à sua vontade. Busca-se, pois, a partir da questão levantada, a comprovação de que não é admissível a figura da tentativa de crime preterdoloso, uma vez que neste o resultado vai além do que o agente

desejou e naquela ele não atinge o evento pretendido 1. Dessa forma, equivocam-se os juízes e doutrinas que vêm entendendo em sentido contrário. A meu ver, a tentativa e o preterdolo são absolutamente incompatíveis, já que aquela pressupõe consciência e vontade do agente para a realização de um tipo penal e se o resultado mais gravoso de um crime ocorreu em decorrência da intenção do indivíduo, não há que se falar em preterdolo, mas em concurso material de crimes. O tema será analisado sob a ótica do atual contexto em que se encontra o ordenamento jurídico brasileiro, ou seja, com enfoque em princípios como o da dignidade da pessoa humana e da segurança jurídica. Critica-se, nesse sentido, a aplicação exacerbada de pena àquele que tenta praticar determinado crime, sem obter sucesso, quando ocorre um resultado mais gravoso inesperado pelo agente, eis que, neste caso, restariam ofendidos os aludidos princípios. Para facilitar a compreensão dos fins a que se destina este trabalho, mister se faz uma breve análise sobre alguns institutos jurídicos, em especial o da tentativa, o do crime doloso, o do crime culposo e o do crime preterdoloso. 2 - O INSTITUTO DA TENTATIVA 2.1 - O iter criminis Não há como discorrer acerca da tentativa sem se falar, ao menos em termos gerais, sobre a trajetória do crime (iter criminis). Embora haja divergência entre os estudiosos quanto às fases do delito 2, limitarei a fazer menção às quatro fases que preponderam na doutrina: a cogitação, a preparação, a execução e a consumação. A primeira diz respeito ao momento em que o agente decide se irá ou não praticar a ação delituosa. É a fase de ideação, na qual o indivíduo antecipa mentalmente o resultado, elege os meios e analisa os efeitos concomitantes. A preparação ocorre quando o agente exterioriza atos precedentes da execução. Começa, dessa forma, a se tornar visível aquilo que até então estava apenas na esfera do pensamento do delinqüente. Já a execução é a fase em que o agente realiza, ou começa a realizar, aquilo que descrito no tipo penal de modo que se torna indubitável a agressão ao bem jurídico protegido pela norma. Por fim, a consumação ocorre quando é realizada a figura típica em sua totalidade, ou seja, o resultado pretendido pelo agente é atingido. Feitas as considerações acima, passemos à análise do instituto da tentativa. 2.2 - Conceituação e elementos da tentativa Nos dizeres do professor Jair Leonardo Lopes: A tentativa consiste no início de execução de figura típica, com a vontade de realizá-la inteiramente, tal como descrita, para lesar o bem jurídico protegido, sem, contudo, conseguir o fim visado, por circunstâncias alheias à vontade do agente. 3 1 JESUS, Damásio Evangelista de. Direito Penal: parte geral. 26. ed. São Paulo: Saraiva 2003. p. 293. 2 ZAFFARONI; Eugenio Raul; PIERANGELI, Jose Henrique. Da Tentativa: doutrina e jurisprudência. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2000. p. 13. 3 LOPES, Jair Leonardo. Curso de Direito Penal: parte geral. 4. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2005. p. 164.

O Código Penal Brasileiro, em seu art. 14, inciso II, estabelece que o crime será tentado quando, iniciada a execução, não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente. Exige-se, pois, o início da execução para que o delito possa ser punível. Antes desse momento, nunca se poderá falar em punição, mesmo que os atos preparatórios de um tipo penal coincidam com atos executórios ou consumatórios de outras figuras típicas. Neste caso, haverá punição, sim, pelos atos de execução ou consumação do outro crime, mas nunca pelos atos preparatórios propriamente ditos. Só se poderá falar em tentativa quando o agente agir com consciência e vontade para praticar determinada infração penal, de modo que é o dolo direto um dos elementos essenciais à configuração de um crime tentado. Devido ao fato de o aludido artigo fazer menção expressa à vontade do agente, conclui-se que o dispositivo não abrangeu o dolo eventual e a culpa. Outra exigência legal à concretização da tentativa, além da necessidade de que tenha havido ao menos o início da execução de um delito por aquele que atue com dolo direto, é que a sua não consumação decorra de fatores externos à vontade do agente. 2.3 - Punibilidade Com o intuito de viabilizar a punição do crime tentado, surgiram duas teorias. Segundo a Teoria Subjetiva, a punição da tentativa se fundamentaria na manifestação de vontade do indivíduo, independente de o resultado pretendido ocorrer ou não. Dessa forma, a punibilidade do crime tentado não se distinguiria da punibilidade do crime consumado, ou seja, a imperfeição do delito se limita ao seu aspecto objetivo. Por outro lado, conforme a Teoria Objetiva, o sancionamento da tentativa se embasaria no perigo em relação ao qual o bem jurídico é exposto. Assim, forçoso seria reconhecer uma redução na pena aplicável ao crime consumado quando o agente não consiga, efetivamente, atingir o resultado pretendido. Extrai-se a partir do parágrafo único do art. 14, do Código Penal, que a legislação brasileira adotou como regra a Teoria Objetiva: salvo disposição em contrário, pune-se a tentativa com a pena correspondente ao crime consumado, diminuída de um a dois terços. Ressalte-se, entretanto, que a regra não é absoluta, já que o referido dispositivo permite que a tentativa seja punida com a mesma pena cominada ao crime consumado, no caso de existir disposição legal em contrário. Em observância aos princípios da legalidade e da segurança jurídica, qualquer sanção penal deve ser respaldada em lei anterior clara e precisa. É essencial, portanto, a perfeita subsunção do fato típico à norma jurídica penal. Atento a essas considerações e com o intuito de assegurar a punibilidade em situações nas quais um indivíduo, embora buscasse a realização de um tipo penal, não alcançasse o resultado almejado por circunstâncias alheias à sua vontade, é que o legislador criou a figura da tentativa. Trata-se, portanto, de adequação típica de subordinação mediata em que a punibilidade tem seu fundamento no art. 14, inciso II, do Código Penal. Este dispositivo é considerado como de extensão por, de certo modo, ampliar a figura típica de maneira que esta passa a abranger situações não previstas expressamente pelo tipo penal. Esclarece Nélson Hungria que:

A tentativa é crime em si mesma, mas não constitui crime sui generis, com pena autônoma: é a violação incompleta da mesma norma de que o crime consumado representa violação plena, e a sanção dessa norma, embora minorada, lhe é extensiva. Subjetivamente, não se distingue do crime consumado (isto é, não há um elemento psíquico distintivo da tentativa, em cotejo com o crime consumado) e, objetivamente, corresponde a um fragmento da conduta típica do crime (faltando-lhe apenas o evento condicionante ou característico da consumação). No crime consumado, o evento corresponde à vontade do agente; na tentativa, fica ele aquém da vontade (precisamente o inverso do que ocorre no crime preterdoloso, em que o evento excede à vontade) 4 Cumpre salientar que, havendo interrupção da consumação de ilícito penal, pouco importa se ocorreram todos os atos necessários à consumação ou não para que seja caracterizada a tentativa. Não obstante, a causa de diminuição de pena descrita no art. 14, parágrafo único, do Código Penal, será graduada de acordo com a maior ou menor proximidade da consumação. Nesse sentido, se porventura ocorrer a denominada tentativa acabada (ou crime falho), com a realização de todos os atos necessários à consumação, deverá haver uma redução de apenas um terço da pena correspondente ao crime consumado. 2.4 - Crimes que não admitem a tentativa Em consonância com grande parte da doutrina, entendi por bem reservar um tópico para tratar daqueles crimes em relação aos quais não se admite, em tese, a figura da tentativa. Dentre outros delitos, os doutrinadores elencam os seguintes como incompatíveis com o instituto em questão: a) crimes unissubsistentes, vez que neles não há fragmentação da atividade; b) crimes omissivos próprios, pois o momento consumativo é o da simples abstenção da atividade imposta por lei; c) crimes habituais, já que a consumação exige que o agente pratique determinada conduta de forma reiterada e habitual. Caso contrário, o fato será atípico; d) crimes culposos, eis que a tentativa pressupõe vontade dirigida à produção do resultado ilícito. Tal vontade inexiste nesta espécie delituosa; e) crimes preterdolosos. Em termos gerais, a inadmissibilidade da tentativa destes crimes se dá pela mesma razão em que crimes culposos não se coadunam com a forma tentada. No entanto, o assunto será objeto de análise mais profunda, por se tratar do foco principal do presente trabalho. No que respeita aos crimes praticados mediante dolo eventual, apesar de haver um entendimento doutrinário amplamente majoritário afirmando ser possível a tentativa, ouso sustentar a impossibilidade. Para tanto, me apoio principalmente na obra do ilustre professor Rogério Greco, um dos poucos que defendem a tese de que não há compatibilidade entre os institutos da tentativa e do dolo eventual. Esse assunto será melhor tratado mais adiante, em tópico próprio. 3 - CRIME DOLOSO 3.1 - Considerações iniciais 4 HUNGRIA, Nelson. Comentários ao Código Penal: arts. 11 a 27. Rio de Janeiro: Forense, 1953. p. 74.

A tipicidade, ou seja, a adequação de uma conduta a um determinado tipo penal pressupõe que este seja realizado tanto no tocante ao aspecto objetivo quanto no subjetivo, de modo que não basta a aparência do crime, mas é preciso também que estejam presentes determinadas condições psicológicas ou subjetivas do agente, aferidas no momento da realização típica. Tais condições, quando se tratar de crimes dolosos, serão constituídas, necessariamente, pelo dolo e, eventualmente, por outros elementos subjetivos, quais sejam, os especiais fins de agir. Importante frisar que, devido ao fato de ter o nosso Código Penal adotado a teoria finalista da ação, o dolo é natural, pois corresponde à simples vontade de concretizar os elementos objetivos do tipo, não portanto a consciência da ilicitude 5. Assim, o art. 21 do referido diploma legal afastou a teoria clássica, não acolhendo o chamado dolo normativo. 3.2 - Teorias sobre o dolo Com o intuito de definir o dolo, foram criadas três teorias. Segundo a Teoria da Vontade, o dolo é a vontade do agente direcionada ao alcance de determinado resultado. Na lição de Bitencourt, A essência do dolo deve estar na vontade, não de violar a lei, mas de realizar a ação e obter o resultado. Essa teoria não nega a existência da representação (consciência) do fato, que é indispensável, mas destaca, sobretudo a importância da vontade de causar o resultado. 6 Nos termos da Teoria da Representação, basta a previsão do resultado como possível para que haja o dolo. Dessa forma, pouco importa se o agente assumiu o risco de produzir o resultado antecipado mentalmente ou se ele, apesar de cogitar a ocorrência de tal resultado, acredita na sua não superveniência. Em outras palavras, para os adeptos desta teoria, é indiferente se o agente agiu com dolo direto ou eventual ou até mesmo com a denominada culpa consciente. Por fim, de acordo com a Teoria do Assentimento (ou Consentimento), o dolo é a vontade do agente que, prevendo certo resultado como possível de ocorrer, não o quer diretamente, mas assume o risco de produzi-lo. 3.3 - A incompatibilidade penal entre a tentativa e o dolo eventual Sobre essa questão, tive oportunidade de publicar artigo na Revista Prática Jurídica. Para melhor compreensão do tema, entendi por bem transcrever alguns trechos do referido artigo: Com o intuito de ilustrar o problema apresentado, expõe-se a seguinte situação: um indivíduo conduz seu veículo em via pública a 220 km/h e, apesar de conhecer e aceitar o risco de causar um acidente fatal, não reduz a velocidade e, com isso, atropela um pedestre, causandolhe lesões corporais. Questiona-se, pois, se o condutor do veículo deveria responder por tentativa de homicídio, por ter agido com dolo eventual, ou por lesão corporal consumada. Tanto a jurisprudência quanto a doutrina, de forma amplamente majoritária, sustentam o entendimento de que nada obsta a tentativa de crime praticado com dolo eventual, eis que esta espécie de dolo se equipara à direta e, por conseguinte, o agente responderia por homicídio tentado. Ouso discordar desse posicionamento, pois que, se assim fosse, deveria o agente responder pela tentativa de homicídio não apenas em relação àquele indivíduo atropelado, mas em 5 JESUS, Damásio Evangelista de. op. cit.. p. 288. 6 BITENCOURT, Cezar Roberto. Tratado de Direito Penal. 6. ed. São Paulo: Saraiva, 2006. p. 334.

relação a toda e qualquer pessoa por quem tenha passado com seu veículo em alta velocidade. Da mesma forma, se alguém saca uma arma em meio a uma multidão e dispara contra um desafeto, sem se importar em acertar outrem, não poderia responder por tantas tentativas de homicídio quanto forem as pessoas no local. Por essa razão é que ao tratar do instituto da tentativa, destoando da regra geral do Código Penal Brasileiro, se amparou tão-somente na Teoria da Vontade, exigindo, assim, que o dolo possa ser tão-somente direto para que a conduta do agente seja incriminada. (...) Discordo, data maxima vênia, do ilustre mestre Cezar Roberto Bitencourt, quando afirma que consentir na ocorrência do resultado é uma forma de querê-lo 7. Isso porque tanto o consentir como o assumir o risco, quando referentes à produção de um resultado, constituem o que chamamos de dolo eventual e se este traduzisse a idéia de querer (ou ter vontade de) produzir o resultado, não se distinguiria do denominado dolo direto. Por conseguinte, em última análise, as teorias da Vontade e do Assentimento se equivaleriam na prática. A meu ver, o autor visa, com a referida assertiva, embasar a afirmação de que na tentativa o agente quer ou assume o risco de produzir o resultado 8, tendo em vista que o art. 14, inciso II, do Código Penal, dispõe expressamente sobre a vontade (ou o querer) do agente. Desse modo, se tornaria viável a tentativa de crime cometido mediante dolo eventual. No entanto, a vontade de produzir um resultado não se coaduna com o instituto do dolo eventual. O Código Penal Brasileiro adotou como regra, concomitantemente, as teorias da Vontade e do Assentimento, fazendo abranger no conceito de dolo tanto a sua forma direta quanto indireta. Não obstante, consoante ao exposto, a legislação adotou tão-somente a Teoria da Vontade ao tratar do instituto da tentativa. Pelas razões explanadas, há absoluta incompatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual, posto que este se funda na Teoria do Assentimento (o agente não tem vontade de produzir o resultado típico, mas assume o risco de sua superveniência) e aquela se lastreou na Teoria da Vontade - dolo direto (o crime não se consuma por circunstâncias alheias à vontade do agente). Logo, a conduta do agente que assume o risco de produzir determinado resultado será atípica se este não se consumar, salvo se dela decorrerem outros resultados típicos, e. g., lesão corporal na hipótese supra exposta do agente que conduz seu veículo em alta velocidade sabendo que pode matar alguém. 9 Importante destacar o posicionamento de Celso Delamanto, refutando a possibilidade de ser o dolo eventual o elemento subjetivo de um crime tentado: como o inciso II deste art. 14 faz referência à vontade do agente, deve haver dolo direto por parte deste. É impossível, assim, a tentativa nos crimes culposos ou praticados com dolo eventual. 10 7 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 335. 8 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 501. 9 LACERDA, Felipe Moraes Forjaz de. A Tentativa e o Dolo Eventual: Incompatibilidade Penal. Prática Jurídica, Brasília, Ano VII, n. 74, p. 60-61, maio 2008. 10 DELMANTO, Celso et al. Código Penal Comentado. 6. ed. Rio de Janeiro: Renovar, 2002. p. 14.

Rogério Greco passou a abordar, nas edições mais recentes de seu Curso de Direito Penal, a incompatibilidade entre a tentativa e o dolo eventual. Para a comprovação de seu raciocínio, diz ser essencial a demonstração de tal possibilidade nos casos concretos: Imagine-se para fins de raciocínio com a tentativa no dolo eventual, o exemplo em que o agente, perigoso traficante de drogas, visualiza sua vítima, um dependente químico que, não tendo condições de arcar com sua dívida com a boca de fumo, foi jurado de morte. Nesse instante, aponta-lhe o fuziu que trazia consigo. A vítima estava acompanhada de sua namorada, sendo que o traficante, ao mirar sua arma, representou como possível também atingir esta última, pois se encontravam abraçados, namorando. Se o agente, ao efetuar o disparo, vier a acertar no usuário de drogas, causando-lhe a morte, estaremos diante de um delito de homicídio doloso consumado, com dolo de primeiro grau. Se, em vez de acertar no mencionado usuário de drogas, vier a atingir sua namorada, causando-lhe a morte, também aqui estaremos diante de um homicídio doloso consumado, com dolo eventual. Essas hipóteses, na verdade, não traduzem qualquer problema. A discussão surge, contudo, quando levamos a efeito o seguinte raciocínio: Se existe a possibilidade de tentativa no dolo eventual, quando o agente efetua o disparo de sua arma em direção ao usuário de drogas, mesmo representado como possível acertar também a sua namorada, fato que lhe é indiferente, ou seja, aceita a produção de tal resultado, haveria concurso formal entre um homicídio consumado (quanto ao usuário de drogas) e outro tentado (no que diz respeito a namorada)? 11 Para os doutrinadores portugueses, a questão não suscita maiores dúvidas: quanto à intenção, resulta em nosso entendimento a impossibilidade de configuração de tentativa por negligência e mesmo por dolo eventual: "Afigura-se-nos, pois, indispensável que se verifique a intenção directa e dolosa por parte do agente, em que parece ser de excluir o dolo eventual, já que o agente, apesar da representação intelectual do resultado como possível, ainda não se decidiu. Estar-se-á, desta maneira, perante uma formulação que consagra, a nosso modo de ver, um critério objectivo mitigado. Quer isto significar...que o critério fundamental se nos apresenta como objectivo, já que a tentativa tem sempre que integrar uma referência objectiva a certa lesão de bens jurídicos protegidos mas a que há que o próprio plano do agente integrado na sua intencionalidade, volitivamente assumida, que, face ao texto legal e segundo a nossa opinião, não pode ser limitado a mero papel de esclarecer o significado objectivo do comportamento do agente, antes deve ser valorado em si mesmo..." 12 Reconhecem, todavia que A jurisprudência do STJ tem, porém, seguido predominantemente a orientação de que a tentativa é punível mesmo quando o agente tenha actuado com dolo eventual, por considerar que nesta forma de dolo também há representação e vontade, embora enfraquecidas ou degradadas. 3.4 - Conceito e elementos do dolo Estabelece o art. 18, inciso I, do Código Penal, que o crime será doloso, quando o agente quis o resultado ou assumiu o risco de produzi-lo. 11 GRECO, Rogério. Curso de Direito Penal: parte geral. 10. ed. Niterói: Impetus, 2008. p. 262-265. 12 GONÇALVES, M. Maia. Código Penal Português: anotado e comentado e legislação complementar. 11. ed. Lisboa: almedina Coimbra, 1997. p. 131-132.

Doutrinariamente tem-se considerado o dolo como a vontade dirigida à realização do tipo penal 13. Cumpre, entretanto, esclarecer que o conceito de dolo comumente trazido pela doutrina é incompleto, eis que se refere somente ao dolo direto, deixando de lado o dolo eventual, o qual, assim como aquele, é espécie do gênero dolo. Os elementos que integram o dolo, segundo os estudiosos, mas que na realidade dizem respeito ao dolo direto, são o cognitivo e o volitivo, sendo este a vontade de realização do tipo e aquele a consciência atual da realização do tipo. Saliente-se que essa consciência deve existir no momento em que realizado o tipo penal e deve, ainda, abranger todos os elementos e circunstâncias previstos na norma penal incriminadora. Da mesma forma, a vontade de realizar a conduta descrita no tipo deve ser simultânea à concretização deste. O elemento volitivo só existirá quando presente o cognitivo e há de abranger a antecipação mental do resultado típico, os meios empregados para atingi-lo e os efeitos concomitantes à utilização desses meios. 3.5 - Espécies de dolo Como já abordado, o dolo se subdivide em direto, ou determinado, e indireto, ou indeterminado. O dolo direto ocorre quando o delinqüente age com consciência e vontade de produzir um resultado típico. Alguns autores o subdivide em dolo direto de primeiro grau e dolo direto de segundo grau. O primeiro é aquele que recai sobre o fim diretamente querido pelo agente, enquanto o segundo diz respeito ao resultado proveniente do meio escolhido ou da natureza do objetivo pretendido com a prática delituosa, que transcende ao fim diretamente desejado. Já o dolo indireto é aquele em que não se extrai do dolo um conteúdo definido e pode ele ser alternativo ou eventual. No dolo alternativo, o agente quer, dentre dois ou mais resultados, atingir qualquer um. Ressalte-se que o dolo eventual não se confunde com a culpa consciente, pois que relativamente a ele, o indivíduo prevê a superveniência de um possível resultado típico a partir de sua conduta, mas aceita o risco e age como se não importasse com as conseqüências de sua atitude. De igual modo, na culpa consciente o agente também prevê a possível ocorrência de um resultado típico, mas rejeita-a e age, geralmente por excesso de autoconfiança. Para Nélson Hungria, o dolo pode ser mais ou menos determinado, mas nunca indeterminado 14, já que não se pode fazer um mal abstrato. Fala-se ainda na distinção entre dolo de dano e de perigo, sendo aquele o que diz respeito à vontade dirigida ou à aceitação do risco de produção de lesão efetiva ao bem jurídico. No dolo de perigo o agente não quer e nem assume o risco de causar dano, mas sua conduta (ou seu consentimento) se refere à exposição do bem tutelado a perigo de dano. A doutrina tradicional difere ainda dolo genérico e dolo específico. O primeiro condiz com a vontade de realizar o fato típico em seu núcleo e o segundo recai sobre a vontade de realizar o fato típico com um fim especial de agir. 13 MIRABETE, Julio Fabrini. Manual de Direito Penal: parte geral. 18. ed. São Paulo: Atlas 2002. p. 140. 14 HUNGRIA, Nelson. op. cit.. p. 111.

Sobre essa classificação, Damásio esclarece que o dolo é um só, variando de acordo com a figura típica...o chamado dolo com intenção ulterior (dolo específico), que em si expressa um fim..., assim como o animus que certos delitos exigem, não são propriamente dolo com intenção ulterior e sim elementos subjetivos do tipo. 15 Por fim, o dolo geral, que não se confunde com o dolo genérico, é aquele em que o agente, acreditando ter alcançado determinado resultado, pratica nova conduta e somente através desta conduta é que efetivamente foi produzido o resultado inicialmente almejado. A rigor, o indivíduo deveria responder por um crime culposo, se houvesse previsão legal, em razão do resultado posteriormente concretizado em concurso material com tentativa do delito pretendido. 3.6 - O dolo e o erro de tipo O erro de tipo é a falsa percepção da realidade, eis que incorre em erro o indivíduo que acredita estar em situação diversa da que realmente existe. Os elementos cognitivo e volitivo do dolo inexistem nessa hipótese, já que a vontade do agente não é dirigida à realização do tipo penal e sequer há consciência de que se pratica o delito. Nada obsta, contudo, que haja responsabilização pela prática do delito na forma culposa, se houver previsão legal e se o erro for inescusável. 4 - CRIME CULPOSO A figura do crime culposo é prevista pelo Código Penal no art. 18, inciso II, e ocorrerá, segundo o dispositivo, quando o agente houver dado causa a um resultado típico por imprudência, negligência ou imperícia. Via de regra, condutas tipificadas só são puníveis quando praticadas dolosamente. Entretanto, havendo previsão legal expressa, um indivíduo pode incorrer nas penas cominadas a determinado crime mesmo agindo com culpa. É, pois, exceção à regra geral a punição por conduta típica culposa. Nesse sentido, o parágrafo único do art. 18, do Código Penal, estabelece que salvo nos casos expressos em lei, ninguém pode ser punido por fato previsto como crime, senão quando o pratica dolosamente.. Culpa, nos dizeres de Bitencourt, é a inobservância do dever de cuidado, manifestada numa conduta produtora de um resultado não querido, objetivamente previsível 16. Geralmente, o agente age com um fim penalmente irrelevante, mas a falta de cautela objetiva recai sobre os meios por ele escolhidos. A culpabilidade, que se difere da culpa, diz respeito à imputabilidade, à consciência potencial da ilicitude e à exigibilidade de comportamento conforme ao direito, componentes estes que hão de estar presentes tanto nos tipos culposos quanto dolosos para que se possa falar em punibilidade. 4.1 - Elementos do delito culposo O crime culposo se distingue do doloso, quanto à sua estrutura, principalmente por inexistir naquele o denominado tipo subjetivo, eis que a conduta do agente não é dirigida à realização de um tipo penal. Assim, são elementos do delito culposo: a conduta humana voluntária, a inobservância do cuidado objetivo devido, a produção de um resultado involuntário, o nexo de causalidade entre 15 JESUS, Damásio Evangelista de. op. cit.. p. 294. 16 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 347.

a conduta e o resultado produzido e a previsibilidade objetiva sobre as conseqüências da ação ou omissão do agente. A conduta inicial pode constituir infração penal ou não, mas o resultado dela proveniente há de ser lesivo a um bem jurídico protegido pela norma penal. Para o bom convívio do homem na sociedade é preciso que ele aja com a cautela devida para que não lese bens jurídicos de outrem. Portanto, é a inobservância do cuidado objetivo exigível do agente que torna a conduta antijurídica 17. Inúmeras são as atividades exercidas pelo homem capazes de expor bens jurídicos ao perigo. O legislador, considerando o grau do risco inerente a essas atividades e o valor do bem jurídico, incriminou determinadas condutas para que as pessoas, intimidadas, se vissem obrigadas a observar o dever de cautela exigido. Para que se possa, no caso concreto, aferir se o agente observou ou não o dever de cuidado necessário, leva-se em consideração o homem médio, ou seja, deve-se indagar se um homem razoável e prudente, nas mesmas condições em que se encontrava o agente, agiria de forma diversa para evitar a lesão ao bem. O resultado, conforme exposto, há de ser constituído pela lesão efetiva ao bem jurídico. Inexistindo tal lesão, não se poderá falar em crime culposo, mesmo que o agente não tenha o dever objetivo de cautela, salvo se a conduta, por si só, constituir ilícito penal. Atente-se que se voluntário o resultado, não haverá crime culposo, mas doloso. A incriminação de uma conduta culposa pressupõe nexo de causalidade entre a inobservância do cuidado devido e resultado típico produzido, sendo este decorrente daquela. Caso contrário, haveria responsabilidade objetiva, o que é inadmissível em nosso atual ordenamento jurídico. Por fim, as conseqüências da conduta do agente devem ser objetivamente previsíveis, mas não, necessariamente, previstas. Neste caso, ainda assim poderíamos estar diante de delito culposo, conforme veremos quando tratarmos da culpa consciente. 4.2 - Modalidades de culpa Nos termos do art. 18, inciso II, do Código Penal, o crime será culposo, quando o agente deu causa ao resultado por imprudência, negligência ou imperícia. O tipo é aberto nos crimes culposos, vez que é atribuído ao juiz um maior poder discricionário. É que a lei se limita a estabelecer que a conduta do agente terá que ser praticada de forma imprudente, negligente ou imperita e, portanto, cabe ao magistrado identificar a conduta contrária ao cuidado objetivo. A modalidade imprudência é aquela em que o indivíduo age precipitada, inconseqüente ou imoderadamente. É caracterizada, pois, por uma conduta comissiva arriscada ou perigosa. A negligência, por sua vez, se relaciona com a displicência do agente, que não adota as cautelas necessárias ao agir ou que simplesmente não age, quando deveria e podia agir. Em termos gerais, é ligada a uma conduta omissiva. Já a imperícia é o despreparo ou a insuficiência de conhecimentos técnicos para o exercício de arte, profissão ou ofício. Seria, portanto, a imprudência ou a negligência dentro do campo profissional ou técnico. 4.3 - Espécies de culpa 17 MIRABETE, Julio Fabrini. op. cit.. p. 146.

A culpa pode ser consciente ou inconsciente. Em termos conceituais, a culpa consciente é aquela em que o agente, prevendo o resultado típico, atua confiante da sua não superveniência, geralmente devido a um excesso de auto-confiança. É por isso, também chamada de culpa com previsão. De outro norte, a culpa inconsciente diz respeito àquela em que o agente sequer prevê o resultado típico, embora este seja previsível. É a completa ignorância sobre as conseqüências de sua conduta e o indivíduo só não enxerga a possibilidade de o resultado vir a ocorrer porque a imprudência, negligência ou imperícia o cega. A legislação penal pátria não distingue uma da outra, razão pela qual o tratamento a elas conferido seria, em tese, equânime. Contudo, a doutrina e a jurisprudência cuidaram de diferenciá-las conceitualmente, mas, a meu sentir, elas também hão de ser diferenciadas quanto ao tratamento penal. Isso porque, ao analisar as circunstâncias judiciais na fase de aplicação da pena, o juiz deverá adequar a pena-base à maior ou menor reprovabilidade do fato e, considerando que a culpa consciente em muito se aproxima do dolo eventual, teria ela que ser tratada com maior severidade. Ressalte-se que existem divergências sobre a questão. Alguns doutrinadores, dentre eles José Cirilo de Vargas, entendem que não se pode fazer qualquer distinção entre a culpa consciente e a inconsciente no momento de aplicação da pena-base. Defende o referido autor que as duas formas de culpa se equivalem, não se podendo distingui-las aprioristicamente, para diverso tratamento penal 18 Outros sustentam que maior reprovabilidade recai sobre a culpa inconsciente. Bitencourt, acolhendo esta corrente, expõe: Na verdade, tem-se questionado se a culpa consciente não seria, muitas vezes, indício de menor insensibilidade ético-social, sendo de maior atenção na execução de atividades perigosas, na medida em que, na culpa inconsciente, o descuido é muito maior e, consequentemente, mais perigoso, uma vez que a exposição a risco poderá ser mais freqüente quando o agente nem percebe a possibilidade da ocorrência de um evento danoso. Nesse sentido, afirmava Köller, mais culpado é aquele que não cuidou de olhar o caminho diante de si, em cotejo com aquele que teve esse cuidado, mas credulamente se persuadiu de que o obstáculo se afastaria a tempo. 19 A diferença entre a culpa consciente e o dolo eventual consiste no fato de que neste o agente, prevendo o resultado típico, assume o risco de produzi-lo e naquela, não assume tal risco, ou melhor, rejeita-o. Via de regra, a previsão do resultado constitui elemento do dolo e, excepcionalmente, constitui elemento da culpa. Por possuir um elemento específico do dolo é que, conforme salientamos, a culpa consciente deve fazer com que a pena do crime se distancie mais da pena mínima abstrata do que a culpa inconsciente. O fato de um agente ter previsto as possíveis conseqüências de sua conduta, tendo todas as condições de evitá-la, é muito mais reprovável do que a sua completa ignorância. É como se, na culpa consciente, o indivíduo optasse por ser imprudente, negligente ou imperito, enquanto, na culpa inconsciente, ele não tivesse essa opção, uma vez que a natureza se encarregou de fazê-lo imprudente, negligente ou imperito. 18 VARGAS, José Cirilo de. Instituições de Direito Penal: parte geral. Belo Horizonte: Del Rey, 1997. p. 285. 19 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p..357-358.

A doutrina fala ainda em culpa própria e culpa imprópria. A própria é a comum, é a culpa inconsciente. Culpa imprópria, também denominada culpa por extensão, assimilação ou equiparação, é aquela em que o agente prevê e quer o resultado, incorrendo em erro de tipo inescusável nas descriminantes putativas ou em excesso nas causas de justificação. Se inevitável o erro, não haverá culpa, pois a responsabilidade penal será excluída. Só impropriamente se pode admitir falar de culpa em uma conduta que prevê e quer o resultado produzido, sob pena de se violentar os conceitos dogmáticos da teoria do delito 20. Na realidade, um crime cometido com culpa imprópria nada mais é do que o crime doloso em relação ao qual o legislador determinou a aplicação da pena do delito culposo, com base na inobservância do cuidado objetivo exigido para a prática do ato. Hoje não mais existe a chamada culpa presumida, eis que a responsabilidade objetiva foi extirpada da legislação penal. 4.4 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes culposos A doutrina pátria, quase em sua totalidade, defende ser inadmissível a tentativa nos crimes culposos e excepcionam a regra somente em relação à culpa imprópria. Entretanto, Bitencourt adverte: Fala-se na possibilidade da tentativa na culpa imprópria, em que o resultado é querido, mas o sujeito incide em erro inescusável. Na verdade ocorre um crime doloso tentado, que, por erro ou excesso culposo, recebe o tratamento de crime culposo. 21 Atente-se que, por estar relacionada a um resultado querido pelo agente, a culpa imprópria sequer poderia ser equiparada, em sua essência, ao dolo eventual, mas tão-somente ao dolo direto, já que não há um risco assumido e sim uma lesão voluntária ao bem jurídico tutelado pela norma. Por essa razão, ou seja, por ter a culpa imprópria a essência do dolo direto, é que se pode falar em tentativa dessa espécie crime culposo. Delitos culposos, como regra (ante a exceção da culpa imprópria, que, a rigor, não se trata de culpa), pressupõe a ocorrência de um resultado típico não querido pelo agente, que nem mesmo assume o risco de produzi-lo. Se, contudo, houver inobservância do dever de cautela e, mesmo assim, o resultado não sobrevém, não haverá crime algum. Por outro lado, não se poderá falar em tentativa quando o resultado tiver efetivamente ocorrido, caso em que o ilícito penal será consumado e não tentado. Por essa razão, ou seja, em decorrência do fato de que na tentativa há intenção sem resultado e que no delito culposo há resultado sem intenção, os dois institutos aqui analisados são absolutamente incompatíveis. Em posicionamento um tanto quanto incomum, se não único, o professor Lydio Machado Bandeira de Mello sustenta que a tentativa de crime culposo não é tão rara quanto parece 22. Exemplificando o seu entendimento, o autor apresenta a seguinte situação: Um indivíduo, em estado de embriaguez completa e culposa pode tentar matar (ou ferir) um amigo, impulsionado pela embriaguez. Se matasse ou ferisse o amigo, seria réu de homicídio 20 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p. 359. 21 BITENCOURT, Cezar Roberto. op. cit.. p..501. 22 MELLO, Lydio Machado Bandeira de. Manual de Direito Penal. Belo Horizonte: Faculdade de Direito da Universidade de Minas Gerais, 1955. p. 223.

culposo (ou de lesão corporal culposa). Logo, tentando matar ou ferir o amigo será réu de tentativa de homicídio culposo ou de tentativa de lesão corporal culposa. 23 Interessante a questão suscitada pelo ilustre doutrinador, mas não condiz com a realidade. É que a vontade do ébrio, no referido exemplo, é equiparada à de um indivíduo imputável pela nossa legislação penal, que adotou a teoria da actio libera in causa. Nada obstaria, portanto, que o agente pudesse responder por um crime doloso, mesmo tendo se embriagado culposamente. De acordo com a teoria, o agente que pratica um fato típico, após se colocar voluntária ou culposamente em estado de inimputabilidade, responde criminalmente. A liberdade do indivíduo é originária, pois diz respeito ao momento em que ele se embriaga, mas não abrange o momento de produção do resultado típico. Nos termos do art. 28, 1º, do Código Penal, somente a embriaguez completa proveniente de caso fortuito ou força maior isenta de pena o agente. Em razão de o Direito Penal contemporâneo repudiar a punibilidade objetiva, o art. 28, inciso II, do Código Penal, deve ser interpretado dentro do âmbito da teoria da actio libera in causa. 5 - PRETERDOLO Crimes preterdolosos são aqueles praticados por agente que age dolosamente, mas que, por sua conduta, provoca um resultado mais grave culposo. Infere-se a partir do conceito de preterdolo que o aludido resultado transcende à vontade do delinqüente, que sequer assume o risco de produzi-lo. Praeter tem sua origem no latim, que significa além de e, sendo assim, preterdolo se refere ao resultado que vai além do dolo, ou que vai além da vontade do agente, ou até mesmo que não derivou do dolo. Ressalte-se, contudo, que deve estar presente ao menos a previsibilidade, e não previsão efetiva, da ocorrência do resultado. Apesar dos delitos preterdolosos normalmente preverem um resultado como se fosse objetivo, dando a entender que basta a sua concretização para que se possa considerar consumado o crime qualificado pelo resultado, temos que adequar esse tipo penal aos preceitos do art. 19, do Código Penal, sob pena de haver a responsabilização objetiva do agente. Sob essa perspectiva, se alguém desfere um soco na face de outrem para lesioná-lo, sem saber que este sofre da doença osteogênese imperfeita (que causa fragilidade intensa nos ossos), não poderia responder pelo crime de lesão corporal seguida de morte se a vítima vier a falecer em função da lesão provocada pelo soco. Isso porque sequer lhe era previsível o resultado morte em decorrência desse tipo de agressão. Acerca do elemento psicológico nos delitos preterdolosos, Aníbal Bruno faz interessante ponderação: Ao contrário do dolo e da culpa, não há no agente uma situação psicológica que possamos chamar preterintenção. A preterintencionalidade está no fato, não no agente, e nisso distinguese das duas formas tradicionais da culpabilidade, que, qualquer que seja a concepção que dela tenhamos, requer sempre um momento psicológico no que atua, um querer ou uma incúria contrária ao dever. (...) Não há, portanto, preterintenção como forma de culpabilidade, mas preterintencionalidade como ocorrência de fato conducente a uma forma anômala de responsabilidade penal. 24 23 MELLO, Lydio Machado Bandeira de. op. cit.. p. 223.

Embora não posso dissentir de Anibal Bruno, no sentido de que o preterdolo está mais relacionado ao fato (conduta dolosa e resultado culposo) do que com a intenção do agente propriamente dita, desta ele não se dissocia, razão pela qual ele não deixa de integrar o elemento psicológico. Por outro lado, Basileu Garcia sustenta que o crime preterintencional é doloso, porquanto o agente visa certo evento proibido penalmente, embora diverso do que é causado. (...) Não pode ser culposo o resultado proveniente de ação voluntariamente criminosa. A culpa tem como antecedente objetivo um comportamento ilícito. 25 Na contemporaneidade, não há qualquer questionamento em relação ao resultado culposo. Hoje, não se discute que o preterdolo é dolo na conduta e culpa no resultado subseqüente àquela. Bitencourt diferencia delito preterdoloso e delito qualificado pelo resultado. Leciona o estudioso que no crime qualificado pelo resultado, ao contrário do preterdoloso, o resultado ulterior, mais grave, derivado involuntariamente da conduta criminosa, lesa um bem jurídico que, por sua natureza não contém o bem jurídico precedentemente lesado. 26 Outros doutrinadores, dentre eles Damásio de Jesus e Celso Delmanto, dizem que o crime qualificado pelo resultado pode ser composto por dolo tanto na conduta como no resultado, enquanto o preterdoloso é constituído por dolo no antecedente e culpa no conseqüente. Para mim, crime qualificado pelo resultado é gênero do qual é espécie o crime preterdoloso, pois que, naquele, o resultado qualificador pode ser doloso ou culposo, enquanto neste há de ser necessariamente culposo. Esse é também o posicionamento de Luiz Flávio Gomes: Os crimes qualificados pelo resultado (CP, art. 129, 1º, II - v.g.-, 129, 3º, 135, parágrafo único etc.), em regra são punidos a título de preterdolo (dolo no antecedente e culpa no resultado subseqüente). Mas é possível que o crime qualificado pelo resultado subseqüente seja inteiramente doloso (e, portanto, muito mais reprovável). (...) se da lesão corporal (dolosa) resulta deformidade permanente da vítima, também pretendida pelo agente, não há que se falar em crime preterdoloso. Se o agente, desde o princípio, tinha deliberada intenção não só de produzir a lesão, senão também a própria deformidade, temos um crime qualificado pelo resultado integralmente doloso (dolo no antecedente e dolo no resultado subseqüente). O crime preterdoloso, em síntese (dolo + culpa), não se confunde com o crime integralmente doloso (dolo + dolo). 27 Entendo, por duas razões, que o legislador não deveria ter previsto hipóteses em que o resultado mais gravoso pode derivar tanto do dolo quanto da culpa. Primeiro, porque o instituto jurídico do concurso de crimes é suficiente para penalizar o agente que produz um resultado mais grave doloso e, segundo, porque o legislador acaba deixando uma ampla margem de discricionariedade ao juiz quando estabelece uma pena mínima muito distante da máxima. 24 BRUNO, Aníbal. Direito Penal: parte geral. Tomo 2. Rio de Janeiro: Nacional de Direito, 1956. p. 460. 25 GARCIA, Basileu. Instituições de Direito Penal. Tomo I. 3. ed. São Paulo: Max Limonade, 1956. p. 270. 26 BITERNCOURT, Cezar Roberto. op. cit. 27 GOMES, Luiz Flávio. Direito Penal: parte geral. 2. ed. São Paulo: Revista dos Tribunais, 2006. p. 196.

A pena abstrata de um tipo penal, quando excessivamente abstrata, atenta contra toda a lógica do direito penal, que deve restringir ao máximo o poder discricionário do juiz. Caso contrário, não haveria segurança jurídica ao delinqüente, que ficaria à mercê da boa vontade do juiz. Considerando que o legislador previu penas muito altas para certos crimes qualificados pelo resultado, não só a doutrina, mas também a jurisprudência têm entendido que tais penas abrangeriam resultados mais graves culposos e dolosos. É o caso, por exemplo, do latrocínio. Nos termos do art. 157, 3º, do Código Penal, se da violência decorrente do crime de roubo resulta morte, a reclusão é de 20 (vinte) a 30 (trinta) anos, sem prejuízo da multa. Seria ilógico imputar a pena de trinta anos a um agente que praticasse o crime de roubo, mas que, por falta de cautela, matasse a vítima. O latrocínio não é um delito autônomo, mas se submete ao caput do art. 157, do Código Penal. Dessa forma, a violência descrita no 3º do dispositivo em questão é aquela voltada à subtração de coisa alheia móvel, ou seja, o agente não pratica a violência para matar, mas para roubar. Se agisse com dolo direto ou ao menos assumisse o risco de matar a vítima, seria mais justo que o delinqüente respondesse por roubo em concurso formal impróprio com homicídio doloso, aplicando-se a regra do cúmulo material. Note-se que, nesse caso, serão ofendidos dois bens jurídicos tutelados pela norma penal mediante desígnios autônomos do agente. Não obstante, ele responderá pelo crime de roubo qualificado. O legislador cominou penas aos delitos qualificados pelo resultado sem critério algum. Extraise, a partir da análise da quantificação da pena imputada a esta espécie de crime, que ora a lei limita o resultado mais grave à forma culposa, ora permite que tal resultado possa ser doloso ou culposo. Dessa forma, cada tipo penal deve ser analisado separadamente para que possa concluir se se trata de delito necessariamente preterdoloso ou simplesmente delito qualificado pelo resultado. No crime de maus-tratos, e. g., caso ocorresse o resultado morte, a pena seria de quatro a doze anos de reclusão. Se a vontade do agente tivesse sido dirigida à prática de homicídio, a pena seria, no mínimo, de seis a vinte anos. Portanto, a pena cominada ao crime de maustratos com morte da vítima se refere ao resultado mais grave culposo, necessariamente. Nesse sentido, o delito previsto pelo art. 136, 2º, do Código Penal será sempre preterdoloso. Já ao tipificar a lesão corporal seguida de morte, o legislador optou por prever expressamente que a pena ali cominada diz respeito ao resultado morte culposo. Dispõe o art. 129, 3º, do Código Penal: Se resulta morte e as circunstâncias evidenciam que o agente não quis o resultado, nem assumiu o risco de produzi-lo: Pena --- reclusão, de 4 (quatro) a 12 (doze) anos. A interpretação deste dispositivo é a mesma do art. 136, 2º: não faria sentido se a pena do homicídio simples fosse mais severa do que a pena imputada a um agente que, após uma conduta inicial dirigida à lesão da vítima, matasse-a com consciência e vontade. Por sua vez, o crime de extorsão mediante seqüestro abrange tanto o dolo quanto a culpa em relação ao resultado morte, que porventura ocorrer. Isso porque o tipo penal descrito no art. 159, 3º, do Código Penal, prevê uma pena abstrata completamente exacerbada. Mesmo se fosse aplicada a regra do cúmulo material entre as penas do caput do art. 159 e do caput do

art. 121, a pena mínima seria de quatorze anos e, portanto, muito inferior à do 3º, do art. 159. Maior ainda seria a discrepância entre as penas se considerado o art. 159, caput, c/c art. 121, 3º. Por esta razão, não deveria o art. 159, 3º sequer abranger o resultado mais grave culposo. Conforme salientado, a realização de um mesmo tipo penal pode, de acordo com o elemento subjetivo em relação ao resultado mais gravoso, descrever tanto um crime preterdoloso como um crime complexo distinto daquele, o qual seria em termos genéricos um crime qualificado pelo resultado. Luiz Flávio Gomes diferencia ainda do crime preterdoloso a figura delituosa em que há culpa no fato antecedente e dolo no fato subseqüente, exemplificando essa hipótese a partir de uma lesão corporal culposa no trânsito (CTB, art. 303) seguida de omissão de socorro dolosa (neste caso a omissão de socorro agrava o crime anterior) 28. Esclarece o autor que Tampouco parece acertado utilizar o nome preterculposo (porque o prefixo preter, do latim praeter, que significa ir além, só parece compatível com a conduta precedente dolosa). 29 Por fim, também não há que se cogitar em crime preterdoloso quando a hipótese for de culpa no antecedente e culpa no resultado mais gravoso, como ocorre no incêndio culposo em razão do qual morre alguém. 5.1 - Inadmissibilidade da tentativa em crimes preterdolosos Para que um indivíduo possa responder por um crime tentado, é preciso que sua consciência e vontade sejam dirigidas à realização do tipo penal em sua integralidade, de modo a abranger todos os seus elementos. Ocorrendo uma qualificadora especial, passa ela a integrar a norma e, portanto, a consciência e vontade do agente têm que recair sobre ela também. No caso dos crimes preterdolosos, não há o elemento volitivo em relação ao resultado mais grave. Via de conseqüência, em hipótese alguma poderá haver tentativa dessa espécie delituosa. Se o resultado é culposo e, como visto, a culpa não se coaduna com a tentativa, por conseguinte, não é possível que haja tentativa de delito preterdoloso, que é constituído pelos elementos subjetivos dolo e culpa. Em tese, a questão não suscita maiores problemas, vez que a maioria dos doutrinadores não discordam da inadmissibilidade da tentativa em crimes preterdolosos. Entretanto, na prática, a jurisprudência vem entendendo em sentido diverso, o que gera conseqüências irreparáveis principalmente ao condenado. Nesse sentido expõem-se os seguintes julgados: TENTATIVA DE LATROCÍNIO. ALEGAÇÃO DE DISPARO ACIDENTAL DA ARMA EMPUNHADA POR UM DOS CO-AUTORES. INCIDÊNCIA DO ARTIGO 19, DO CÓDIGO PENAL. RECURSO IMPROVIDO. O RESULTADO QUE AGRAVA ESPECIALMENTE A PENA DO CRIME DE ROUBO - ARTIGO 157, 3º, COMBINADO COM O ARTIGO 14, II, DO CP, DEVE SER IMPUTADO AO RÉU AINDA QUE O TENHA PRODUZIDO CULPOSAMENTE. 28 GOMES, Luiz Flávio. op. cit.. p. 197. 29 GOMES, Luiz Flávio. op. cit.. p. 197.

NESTE SENTIDO, DE NENHUMA VALIA A ALEGAÇÃO DE DISPARO ACIDENTAL DA ARMA EMPUNHADA PELO ASSALTANTE, UMA VEZ QUE O MANUSEIO DO REVÓLVER SEM AS CAUTELAS EXIGÍVEIS, EXPÕE, NO MÍNIMO, A MANIFESTAÇÃO DA IMPRUDÊNCIA DO RÉU, MODALIDADE DE CULPA QUE LEGITIMA A IMPUTAÇÃO DO CRIME AGRAVADO PELO RESULTADO. 30 PENAL - TENTATIVA DE LATROCÍNIO - DESCLASSIFICAÇÃO PARA ROUBO QUALIFICADO PELO RESULTADO LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE - INEXISTÊNCIA DA VONTADE DIRIGIDA CONSCIENTEMENTE PARA O RESULTADO MORTE - DISPARO ACIDENTAL DA ARMA DE FOGO - PROVIMENTO. O LEGISLADOR PREVIU O AUMENTO DA PENA DO ROUBO, SE DA VIOLÊNCIA UTILIZADA NA AÇÃO RESULTASSE LESÃO CORPORAL DE NATUREZA GRAVE OU MORTE. ESTES RESULTADOS FORAM PREVISTOS OBJETIVAMENTE E SÃO PUNIDOS, NO MÍNIMO, A TÍTULO DE CULPA. ASSIM, VERIFICADOS OBJETIVAMENTE A OCORRÊNCIA DAQUELES RESULTADOS, A PENA DEVERÁ, OBRIGATORIAMENTE, SER MAJORADA PARA OS LIMITES PREVISTOS. PARA QUE O RÉU SEJA CONDENADO POR TENTATIVA DE LATROCÍNIO, MISTER ESTEJA PRESENTE ANIMUS NECANDI. OCORRENDO DISPARO ACIDENTAL DA ARMA E ADVINDO PARA A VÍTIMA LESÕES DE NATUREZA GRAVE, DEVE SER ELE CONDENADO NAS PENAS DO ART. 157, 3º, 1ª PARTE DO CÓDIGO PENAL. RECURSO PROVIDO. 31 Saliente-se que, em ambas as decisões, trata-se de crime cujo resultado foi culposo, apesar de o crime de latrocínio admitir que esse resultado fosse doloso. A questão foi até sumulada pelo Supremo Tribunal Federal: Súmula 610 Há crime de latrocínio, quando o homicídio se consuma, ainda que não realize o agente a subtração de bens da vítima. Tal súmula é absurda e desprovida de qualquer sentido que encontre respaldo no ordenamento jurídico brasileiro. Se o tipo base do delito qualificado pelo resultado não se consumou, mas ocorreu a morte da vítima, haveria um crime autônomo tentado e outro consumado, não podendo a tentativa englobar os dois tipos penais em um só delito o qualificado pelo resultado. Atento ao enunciado da Súmula 610, do STF O Tribunal de Justiça de Minas Gerais proferiu a decisão abaixo transcrita: APELAÇÃO. TENTATIVA DE LATROCÍNIO. DESCLASSIFICAÇÃO PARA TENTATIVA DE ROUBO MAJORADO. POSSIBILIDADE. AUSÊNCIA DO ANIMUS NECANDI. O latrocínio na modalidade preterdolosa não se admite a tentativa, somente sendo responsabilizado o agente por tal delito quando da conduta culposa resultar morte da vítima. Em não ocorrendo no famigerado evento, ainda que de forma culposa, a morte da vítima, e tampouco verificação do animus necandi, não há se falar na hipótese em tentativa de latrocínio, mas sim, tentativa de 30 TJDF, Apelação Criminal 20030110562320APR DF, 1ª Turma Criminal, Desembargador Relator EDSON ALFREDO SMANIOTTO. Julgado em : 03/06/2004. Publicado em: 25/08/2004. 31 TJDF, Apelação Criminal 19990410038126APR DF, 1ª Turma Criminal, Desembargador Relator NATANAEL CAETANO. Julgado em: 30/08/2000. Publicado em: 20/09/2000.

roubo duplamente majorado, em face da presença das majorantes do emprego de arma e concurso de pessoas. 32 Mais absurdo ainda é o entendimento de alguns aplicadores do direito no sentido invertido da referida súmula, ou seja, reconhecendo o latrocínio quando a subtração de bens da vítima se realizar, ainda que não se consume o homicídio: APELAÇÃO - PENAL - CRIME CONTRA O PATRIMÔNIO - LATROCÍNIO - TENTATIVA. No crime de roubo seguido de morte - qualificado pelo resultado - o agente responde pelo resultado mais gravoso mesmo se este tenha ocorrido mediante culpa. Havendo subtração consumada e morte tentada, o crime deverá ser de latrocínio tentado. 33 Decisões como essa atentam frontalmente contra princípios constitucionais e penais, eis que se respaldam em uma verdadeira responsabilização penal objetiva. Não poderia o delinqüente responder por latrocínio, nesses casos, por uma simples razão: Para que haja latrocínio é necessária a morte da vítima, morte esta consumada e não meramente tentada. O legislador foi claro ao estabelecer, no art. 157, 3º, do Código Penal, a exigência do resultado morte causada pela violência intrínseca ao crime de roubo. Inobstante ser mais freqüente a aplicação concreta, pelos magistrados, da tentativa de crimes preterdolosos quando se trata de latrocínio, não raros são os casos em se comete o mesmo equívoco em relação aos delitos previstos pelo art. 223, do Código Penal (formas qualificadas do estupro ou atentado violento ao pudor). A título exemplificativo, temos o seguinte julgado: Tentativa de estupro qualificado (CP, art 213, c/c 14, II, e 226, III). Configurado o ilícito a que responde o réu, sob a forma tentada, não há porque desclassificá-lo, predominante o crime-fim, à míngua de desistência voluntária. Apelação conhecida e parcialmente provida, para o fim de atenuar-se a pena, por confissão espontânea. 34 O Tribunal de Justiça de Minas Gerais teve a oportunidade de julgar um outro caso que elucidaria exatamente o problema aqui estudado, se não fosse a saída encontrada pelo próprio tribunal para viabilizar uma punição mais severa ao acusado. Nesse caso, uma vítima foi encontrada morta e semi-nua, com as calças arriadas até o joelho e com os seios expostos, sendo que não foi submetida à cópula vagínica. Devido à dificuldade, senão impossibilidade, de ser aferida a intenção do delinqüente no momento da prática criminosa, o tribunal julgou o acusado como incurso nas sanções cominadas ao delito previsto no art. 214 c/c 223, parágrafo único, ambos do Código Penal: (...) Diante disso, não há dúvidas de que pretendia o apelante manter com a ofendida atos libidinosos diversos da conjunção carnal, pois, em momento algum, sequer tentou praticar a cópula vagínica. Configurado, pois, o crime do art. 214 do Código Penal, qualificado pelo resultado preterdoloso morte. (...) 35 32 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0439.04.036711-2/001(1), Desembargador Relator VIEIRA DE BRITO. Julgado em: 03/10/2006. Publicado em 10/11/2006. 33 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0079.06.287234-0/001(1), Desembargadora Relatora MARIA CELESTE CUNHA. Julgado em: 08/01/2005. Publicado em: 25/01/2005. 34 TJDF, Apelação Criminal APR1425994 DF, 2ª Turma Criminal, Desembargador Relator ROMEU JOBIM. Publicado em: 06/10/1994. Publicado em: 17/05/1995. 35 TJMG, Apelação Criminal nº 1.0000.00.300125-2/000(1), Desembargador Relator SÉRGIO RESENDE. Julgado em: 13/02/2003. Publicado em: 18/03/2003.

Atente-se que o argumento utilizado pelo eminente relator para justificar o delito de atentado violento ao pudor consumado se fundou unicamente no fato de não ter o acusado tentado praticar a cópula vagínica. Entretanto, consta da própria decisão que o réu matou a vítima quando tentava vencer sua resistência ( diante da resistência física apresentada pela vítima, passou a espancá-la, chegando a asfixiá-la até a morte ). Data vênia, tal argumento não é suficiente, pois nada impediria que a intenção do acusado fosse de praticar o estupro após vencida essa resistência. Se, em observância ao princípio do in dúbio pro reo, dada a dificuldade de se aferir, com segurança, o que se passava na cabeça do agente, o tribunal acolhesse a tese de ter havido tentativa de estupro ao invés de atentado violento ao pudor consumado, as conseqüências do acórdão seriam completamente diversas. A rigor, e com respaldo nos estudos apresentados pelo presente trabalho, o delinqüente responderia pelo crime de estupro tentado c/c homicídio culposo consumado, já que a violência é elemento daquele delito e foi o seu emprego, em excesso culposo, que ocasionou a morte da vítima. Note-se que, se assim fosse, a pena não passaria de 6 anos e 4 meses (art. 213 c/c art. 14 e art. 121, 3º, todos do Código Penal). Reconheço, todavia, que a sanção seria muito branda para alguém que tentou estuprar outrem e acabou por cometer homicídio. Entretanto, se para que haja a justiça do caso concreto seja preciso extrapolar os limites legais, prendendo-se tão-somente a uma avaliação subjetiva do juiz, então essa justiça não pode se efetivar, principalmente quando se trata de matéria penal, pois existem valores maiores a serem preservados. Havendo uma lacuna no ordenamento jurídico acerca da previsão e punição desse tipo de situação, não pode o delinqüente sair prejudicado, sob pena de serem ofendidos princípios como o da segurança jurídica e da dignidade da pessoa humana. Se o legislador resolveu criar a figura do crime qualificado pelo resultado, poderia ter criado, por exemplo, um tipo próprio para aqueles crimes em que somente o resultado mais gravoso se consume, e não o tipo base. Insta salientar que, o eminente Desembargador Luiz Carlos Biasutti, no julgado supra-referido, voto vencido, acolheu o entendimento segundo o qual não se poderia afirmar ter consumado o atentado violento ao pudor. Em seu voto, manifestou: (...) - Quanto ao pleito de reconhecimento da tentativa de estupro qualificada pelo resultado morte, ouso discordar do entendimento do i. Relator, segundo o qual o apelante pretendia manter com a vítima tão-só atos libidinosos diversos da conjunção carnal. Segundo ressai da confissão judicial do réu, afirmou ele que desde o princípio pretendia se relacionar sexualmente com a vítima (fl. 71), ou seja, sua intenção sempre foi a de manter relações sexuais com a vítima, mas, diante da resistência dela, acabou lhe tapando a boca e lhe desferindo vários socos (cf. fl. 71), donde se vê como ocorreram as lesões, bem como a morte por asfixia. Ora, diante de tão contundente confissão, não há que se falar em atentado violento ao pudor. O acusado deixa bem claro que sua intenção era a conjunção carnal - e não a prática de atos libidinosos diversos desta -, a qual só não se consumou por circunstâncias alheias à sua vontade, pois, procurando minar a resistência da vítima, acabou por asfixiá-la, causando a sua morte.