O CÃO SEM PLUMAS. João Cabral de Melo Neto. Por: Welis Couto



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Transcrição:

O CÃO SEM PLUMAS João Cabral de Melo Neto Por: Welis Couto Um estudo crítico da obra de João Cabral de Melo Neto, que vai além de Morte e Vida Severina 2000

I Cientista da palavra, João Cabral de Melo Neto descreve a paisagem do Capibaribe e seu caminho para o mar. Em sua trajetória, o rio leva os dejetos podres e pobres, qual é o povo nordestino. A história desse rio é a história do nordestino: pobre, desnutrido, fraco e rejeitado; convivendo na sua simplicidade, com os grandes usineiros do açúcar. João Cabral inova na forma de escrever quando rejeita a retórica desvairada e compõe a palavra esvaziada, direta, arquitetando o seu texto qual um talentoso engenheiro. A palavra pétrea cria, porém, vida e forma na construção aguçada de João Cabral. "O Cão sem plumas" é composto em quatro partes, sendo que as duas primeiras têm o mesmo título: "Paisagem do Capibaribe". Já no início do poema, João Cabral dá a idéia exata de sua composição com um traspassamento de coisas e objetos se entrelaçando em uma comparação metafórica. A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro: uma fruta por uma espada Vê-se a fria comparação de João Cabral: assim como os cachorros passam pelas ruas, sujos e despercebidos, o rio, da mesma forma, passa pela cidade. Nessa calmaria, há o brusco movimento de uma espada perfurando a maçã. Na mistura de coisas animadas: cachorro e rio, enquanto movimento; e inanimadas: cidade, fruta e espada; entre o fabricado: espada e cidade; e o natural: fruta, rio e cachorro, vêm-se que, no animado e no natural estão o rio e o cachorro. Portanto, o rio é igual ao cachorro.

Nessa comparação: rio - cachorro, o poeta caracteriza o movimento do Capibaribe. O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão. Sendo o rio um cão, às vezes ele arrasta o próprio cão no seu trajeto, momento em que o rio se torna mais denso e morno, ondulando como uma cobra. Como às vezes passa com os cães parecia o rio estagnar-se. Suas águas fluíam então mais densas e mornas: fluíam com as ondas densas e mornas de uma cobra. O rio é, ainda, o próprio povo nordestino, é a calma daquele povo estagnado e o seu sofrimento: Ele tinha algo, então, da estagnação de um louco. Algo da estagnação do hospital, da penitenciária, dos asilos. Da vida suja e abafada (de roupa suja e abafada) por onde se veio arrastando.

Entretanto, o rio conheceu, também, a opulência dos ovos gordos, em oposição à miséria anterior. Mas, esses senhores opulentos lhe dão as costas e o ignoram. É nelas. mas de costas para o rio, que as grandes "famílias espirituais" da cidade chocam os ovos gordos de sua prosa. Rolando densamente e carregando os dejetos por onde passa, será que aquele rio conheceu a beleza e a alegria? O poeta ironiza o real e o imaginário, pois que nos mapas ele vinha pintado de azul. saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas? Paisagem do Capibaribe II - O poeta retoma a imagem do início do poema, entretanto, desaparecem a cidade e a maçã, pois, aqui, o poeta está mais voltado para o homem ribeirinho, as casas ribeirinhas e a lama das casas e dos homens ribeirinhos. Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama plantados em ilhas coagulados na lama: A imagem do cão associa-se à do homem ribeirinho, com suas barbas e cabelos encarapinhados de lama.

O rio sabia daqueles homens sem plumas. Sabia de suas barbas expostas, de seu doloroso cabelo de camarão e estopa. Novamente o contraste é estampado nesta passagem em que o rio de tudo tem ciência. O homem ribeirinho versus os grandes usineiros com seus imensos galpões à beira do cais. Ele sabia também dos grandes galpões da beira do cais (onde tudo é uma imensa porta sem portas) escancarados aos horizontes que cheiram a gasolina Os excluídos das grandes "famílias espirituais" que o autor citou no final da primeira parte, terá toda essa segunda parte dedicada a eles. Buscando sempre a comparação metafórica, João Cabral vai caracterizar o nordestino, que é um cão sem plumas, e que se identifica com o rio e a lama. A lama do rio, a lama no homem e o homem na lama. Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem,

onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem. Contudo, não há uma sinergia perfeita entre o homem - rio, pois o poeta se indaga se aquele homem é mesmo um homem, ou uma deturpação do homem, cuja vida é uma luta insana pela sobrevivência. Difícil é saber se aquele homem já não está mais aquém do homem; mais aquém do homem ao menos capaz de roer os ossos do ofício; capaz de sangrar na praça; capaz de gritar se a moenda lhe mastiga o braço. À chegada do rio, o mar tende a rejeitá-lo, a rejeitar suas imundícies e a contaminação das impurezas, da miséria, assim como o homem rejeita o outro homem; o Brasil rejeita o nordeste. Primeiro, o mar devolve o rio. Fecha o mar ao rio seus brancos lençóis. O mar se fecha a tudo o que no rio são flores de terra, imagem de cão ou mendigo.

O mar, na sua soberania, invade o rio, tentando mostrar a sua superioridade sobre este e sobre todas as coisas que o rio carrega da terra. Persiste a tentativa de evitar a contaminação do mar pelo rio. Depois o mar invade o rio Quer o mar destruir no rio suas flores de terra inchada, Novamente a superioridade do mar se mostra na estrofe seguinte, como se o mar ficasse a policiar tudo o que é jogado em seu dorso, buscando sempre a sensação de limpeza, devolvendo à praia aquilo que lhe é estranho. Uma bandeira que tivesse dentes; que o mar está sempre com seus dentes e seu sabão roendo suas praias. O mar é autófago e se destrói; ao contrário do rio que dissolve as suas margens e carrega-as para o mar. O mar e seu incenso o mar e seus ácidos. O mar e a boca de seus ácidos. O mar e seu estômago que come e se come, Conhecedor do poder do mar, o rio parece se preparar para a batalha e antes de seguir seu curso, ele descansa nos mangues. Os manguezais trazem a conotação da vida, da sobrevivência da fauna e das frutas, na seqüência dos ciclos da vida.

Mas antes de ir ao mar o rio se detém em mangues de água parada. Mas, o rio não está só nessa luta desigual, e a solidariedade se faz presente no poema: a solidariedade dos marginalizados. Junta-se o rio a outros rios. Juntos, todos os rios preparam sua luta de água parada, sua luta de fruta parada. Fábula do Capibaribe - parte III - Essa parte relata a batalha que o rio mantém com o mar. Desaparecem, portanto, a figura do cão e do homem e surge a figura da espada, pois a luta, desigual, traz uma comparação velada. Assim como o rio é rejeitado pelo mar, o nordestino, humilde e pobre, é rejeitado pela sociedade. A cidade é fecundada por aquela espada que se derrama, por aquela úmida gengiva de espada. O mar é visto em posição superior e antagônica ao rio. Pois, se o rio carrega as imundícies que estão à sua margem, o oceano, onipotente, se apresenta claro e limpo. No extremo do rio o mar se estendia, como camisa ou lenço,

sobre seus esqueletos de areia lavada. Ainda, o mar é colocado como uma bandeira, pelo respeito que ele impõe. Podemos, aí, presenciar uma metáfora velada: o rio é um cachorro; o mar é uma bandeira. Novamente a oposição rio/cachorro (animal comum, despercebido) - mar/bandeira (grandiosidade e respeito). Como o rio era um cachorro, o mar podia ser uma bandeira azul e branca desdobrada no extremo do curso Discurso do Capibaribe - parte IV - Nesta parte, o poeta mostra que o rio está presente na memória do pernambucano, o rio que se confunde com a saga daquele povo. Cumprido o trajeto do rio, João Cabral avalia o seu curso e analisa a existência do Capibaribe como um prosseguimento do nordestino. Como em todo o poema, João Cabral foge da metáfora pura e continua a fazer uso da comparação metafórica. está na memória como um cão vivo dentro de uma sala. Como um cão vivo dentro de um bolso. Como um cão vivo debaixo dos lençóis, debaixo da camisa, da pele. Voltam as imagens do cão e da maçã, numa gradação constante até chegar ao homem e retomar a biodinâmica rio - homem.

Como todo real é espesso. é espesso e real. (...) Como é mais espesso um homem do que o sangue de um cachorro. Como é muito mais espesso o sangue de um homem do que o sonho de um homem. Continuando a conceituação do Capibaribe, ele traz consigo a vida que se multiplica, a vida que gera mais vida, mesmo sendo árdua a luta constante que, como uma ave vai conquistando o seu vôo. Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida como uma fruta é mais espessa que sua flor;... porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu vôo).

O CÃO SEM PLUMAS João Cabral de Melo Neto I. Paisagem do Capibaribe A cidade é passada pelo rio como uma rua é passada por um cachorro; uma fruta por uma espada. O rio ora lembrava a língua mansa de um cão, ora o ventre triste de um cão, ora o outro rio de aquoso pano sujo dos olhos de um cão. era como um cão sem plumas. Nada sabia da chuva azul, da fonte cor-de-rosa, da água do copo de água, da água de cântaro, dos peixes de água, da brisa na água. Sabia dos caranguejos de lodo e ferrugem. Sabia da lama como de uma mucosa. Devia saber dos polvos. Sabia seguramente da mulher febril que habita as ostras. jamais se abre aos peixes, ao brilho, à inquietação de faca que há nos peixes. Jamais se abre em peixes. Abre-se em flores pobres e negras como negros. Abre-se numa flora suja e mais mendiga como são os mendigos negros. Abre-se em mangues de folhas duras e crespas como um negro. Liso como o ventre de uma cadela fecunda, o rio cresce sem nunca explodir. Tem, o rio, um parto fluente e invertebrado como o de uma cadela. E jamais o vi ferver (como ferve o pão que fermenta). Em silêncio, o rio carrega sua fecundidade pobre, grávido de terra negra. Em silêncio se dá: em capas de terra negra, em botinas ou luvas de terra negra para o pé ou a mão que mergulha. Como às vezes passa com os cães, parecia o rio estagnar-se. Suas águas fluíam então mais densas e mornas; fluíam com as ondas densas e mornas de uma cobra. Ele tinha algo, então, da estagnação de um louco. Algo da estagnação do hospital, da penitenciária, dos asilos, da vida suja e abafada (de roupa suja e abafada) por onde se veio arrastando. Algo da estagnação dos palácios cariados, comidos de mofo e erva-de-passarinho. Algo da estagnação das árvores obesas

pingando os mil açúcares das salas de jantar pernambucanas, por onde se veio arrastando. (É nelas, mas de costas para o rio, que "as grandes famílias espirituais" da cidade chocam os ovos gordos de sua prosa. Na paz redonda das cozinhas, ei-las a revolver viciosamente seus caldeirões de preguiça viscosa). Seria a água daquele rio fruta de alguma árvore? Por que parecia aquela uma água madura? Por que sobre ela, sempre, como que iam pousar moscas? saltou alegre em alguma parte? Foi canção ou fonte Em alguma parte? Por que então seus olhos vinham pintados de azul nos mapas? II. Paisagem do Capibaribe Entre a paisagem o rio fluía como uma espada de líquido espesso. Como um cão humilde e espesso. Entre a paisagem (fluía) de homens plantados na lama; de casas de lama plantadas em ilhas coaguladas na lama; paisagem de anfíbios de lama e lama. Como o rio aqueles homens são como cães sem plumas (um cão sem plumas é mais que um cão saqueado; é mais que um cão assassinado. Um cão sem plumas é quando uma árvore sem voz. É quando de um pássaro suas raízes no ar. É quando a alguma coisa roem tão fundo até o que não tem). O rio sabia daqueles homens sem plumas. Sabia de suas barbas expostas, de seu doloroso cabelo de camarão e estopa. Ele sabia também dos grandes galpões da beira dos cais (onde tudo é uma imensa porta sem portas) escancarados aos horizontes que cheiram a gasolina. E sabia da magra cidade de rolha, onde homens ossudos, onde pontes, sobrados ossudos (vão todos vestidos de brim) secam até sua mais funda caliça. Mas ele conhecia melhor os homens sem pluma. Estes secam ainda mais além de sua caliça extrema; ainda mais além de sua palha; mais além

da palha de seu chapéu; mais além até da camisa que não têm; muito mais além do nome mesmo escrito na folha do papel mais seco. Porque é na água do rio que eles se perdem (lentamente e sem dente). Ali se perdem (como uma agulha não se perde). Ali se perdem (como um relógio não se quebra). Ali se perdem como um espelho não se quebra. Ali se perdem como se perde a água derramada: sem o dente seco com que de repente num homem se rompe o fio de homem. Na água do rio, lentamente, se vão perdendo em lama; numa lama que pouco a pouco também não pode falar: que pouco a pouco ganha os gestos defuntos da lama; o sangue de goma, o olho paralítico da lama. Na paisagem do rio difícil é saber onde começa o rio; onde a lama começa do rio; onde a terra começa da lama; onde o homem, onde a pele começa da lama; onde começa o homem naquele homem. Difícil é saber se aquele homem já não está mais aquém do homem; mais aquém do homem ao menos capaz de roer os ossos do ofício; capaz de sangrar na praça; capaz de gritar se a moenda lhe mastiga o braço; capaz de ter a vida mastigada e não apenas dissolvida (naquela água macia que amolece seus ossos como amoleceu as pedras). III. Fábula do Capibaribe A cidade é fecundada por aquela espada que se derrama, por aquela úmida gengiva de espada. No extremo do rio o mar se estendia, como camisa ou lençol, sobre seus esqueletos de areia lavada. (Como o rio era um cachorro, o mar podia ser uma bandeira azul e branca desdobrada no extremo do curso ou do mastro do rio. Uma bandeira que tivesse dentes: que o mar está sempre com seus dentes e seu sabão

roendo suas praias. Uma bandeira que tivesse dentes: como um poeta puro polindo esqueletos, como um roedor puro, um polícia puro elaborando esqueletos, o mar, com afã, está sempre outra vez lavando seu puro esqueleto de areia. O mar e seu incenso, o mar e seus ácidos, o mar e a boca de seus ácidos, o mar e seu estômago que come e se come, o mar e sua carne vidrada, de estátua, seu silêncio, alcançado à custa de sempre dizer a mesma coisa, o mar e seu tão puro professor de geometria). O rio teme aquele mar como um cachorro teme uma porta entretanto aberta, como um mendigo, a igreja aparentemente aberta. Primeiro, o mar devolve o rio. Fecha o mar ao rio seus brancos lençóis. O mar se fecha a tudo o que no rio são flores de terra, imagem de cão ou mendigo. Depois, o mar invade o rio. Quer o mar destruir no rio suas flores de terra inchada, tudo o que nessa terra pode crescer e explodir, como uma ilha, uma fruta. Mas antes de ir ao mar o rio se detém em mangues de água parada. Junta-se o rio a outros rios numa laguna, em pântanos onde, fria, a vida ferve. Junta-se o rio a outros rios. Juntos, todos os rios preparam sua luta de água parada, sua luta de fruta parada. (Como o rio era um cachorro, como o mar era uma bandeira, aqueles mangues são uma enorme fruta: A mesma máquina paciente e útil de uma fruta; a mesma força invencível e anônima de uma fruta trabalhando ainda seu açúcar depois de cortada. Como gota a gota até o açúcar, gota a gota até as coroas de terra; como gota a gota até uma nova planta, gota a gota até as ilhas súbitas aflorando alegres).

IV. Discurso do Capibaribe está na memória como um cão vivo dentro de uma sala. Como um cão vivo dentro de um bolso. Como um cão vivo debaixo dos lençóis, debaixo da camisa, da pele. Um cão, porque vive, é agudo. O que vive não entorpece. O que vive fere. O homem, porque vive, choca com o que vive. Viver é ir entre o que vive. O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio. Como todo o real é espesso. é espesso e real. Como uma maçã é espessa. Como um cachorro é mais espesso do que uma maçã. Como é mais espesso o sangue do cachorro do que o próprio cachorro. Como é mais espesso um homem do que o sangue de um cachorro. Como é muito mais espesso o sangue de um homem do que o sonho de um homem. Espesso como uma maçã é espessa. Como uma maçã é muito mais espessa se um homem a come do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa se a fome a come. Como é ainda muito mais espessa se não a pode comer a fome que a vê. é espesso como o real mais espesso. Espesso por sua paisagem espessa, onde a fome estende seus batalhões de secretas e íntimas formigas. E espesso por sua fábula espessa; pelo fluir de suas geléias de terra; ao parir suas ilhas negras de terra. Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida, como uma fruta é mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessa que sua árvore, etc. etc. Espesso,

porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu vôo). III. Fábula do Capibaribe A cidade é fecundada por aquela espada que se derrama, por aquela úmida gengiva de espada. No extremo do rio o mar se estendia, como camisa ou lençol, sobre seus esqueletos de areia lavada. (Como o rio era um cachorro, o mar podia ser uma bandeira azul e branca desdobrada no extremo do curso ou do mastro do rio. Uma bandeira que tivesse dentes: que o mar está sempre com seus dentes e seu sabão roendo suas praias. Uma bandeira que tivesse dentes: como um poeta puro polindo esqueletos, como um roedor puro, um polícia puro elaborando esqueletos, o mar, com afã, está sempre outra vez lavando seu puro esqueleto de areia. O mar e seu incenso, o mar e seus ácidos, o mar e a boca de seus ácidos, o mar e seu estômago que come e se come, o mar e sua carne vidrada, de estátua, seu silêncio, alcançado à custa de sempre dizer a mesma coisa, o mar e seu tão puro professor de geometria). O rio teme aquele mar como um cachorro teme uma porta entretanto aberta, como um mendigo, a igreja aparentemente aberta. Primeiro, o mar devolve o rio. Fecha o mar ao rio seus brancos lençóis. O mar se fecha a tudo o que no rio são flores de terra, imagem de cão ou mendigo. Depois, o mar invade o rio. Quer o mar destruir no rio suas flores de terra inchada, tudo o que nessa terra pode crescer e explodir, como uma ilha, uma fruta. Mas antes de ir ao mar o rio se detém em mangues de água parada. Junta-se o rio a outros rios numa laguna, em pântanos onde, fria, a vida ferve. Junta-se o rio

a outros rios. Juntos, todos os rios preparam sua luta de água parada, sua luta de fruta parada. (Como o rio era um cachorro, como o mar era uma bandeira, aqueles mangues são uma enorme fruta: A mesma máquina paciente e útil de uma fruta; a mesma força invencível e anônima de uma fruta trabalhando ainda seu açúcar depois de cortada. Como gota a gota até o açúcar, gota a gota até as coroas de terra; como gota a gota até uma nova planta, gota a gota até as ilhas súbitas aflorando alegres). IV. Discurso do Capibaribe está na memória como um cão vivo dentro de uma sala. Como um cão vivo dentro de um bolso. Como um cão vivo debaixo dos lençóis, debaixo da camisa, da pele. Um cão, porque vive, é agudo. O que vive não entorpece. O que vive fere. O homem, porque vive, choca com o que vive. Viver é ir entre o que vive. O que vive incomoda de vida o silêncio, o sono, o corpo que sonhou cortar-se roupas de nuvens. O que vive choca, tem dentes, arestas, é espesso. O que vive é espesso como um cão, um homem, como aquele rio. Como todo o real é espesso. é espesso e real. Como uma maçã é espessa. Como um cachorro é mais espesso do que uma maçã. Como é mais espesso o sangue do cachorro do que o próprio cachorro. Como é mais espesso um homem do que o sangue de um cachorro. Como é muito mais espesso o sangue de um homem do que o sonho de um homem. Espesso como uma maçã é espessa. Como uma maçã é muito mais espessa se um homem a come do que se um homem a vê. Como é ainda mais espessa se a fome a come. Como é ainda muito mais espessa se não a pode comer a fome que a vê.

é espesso como o real mais espesso. Espesso por sua paisagem espessa, onde a fome estende seus batalhões de secretas e íntimas formigas. E espesso por sua fábula espessa; pelo fluir de suas geléias de terra; ao parir suas ilhas negras de terra. Porque é muito mais espessa a vida que se desdobra em mais vida, como uma fruta é mais espessa que sua flor; como a árvore é mais espessa que sua semente; como a flor é mais espessa que sua árvore, etc. etc. Espesso, porque é mais espessa a vida que se luta cada dia, o dia que se adquire cada dia (como uma ave que vai cada segundo conquistando seu vôo).