Prevalência da doença degenerativa valvar crônica mitral em cães



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Medicina Veterinária / Veterinary Medicine Prevalência da doença degenerativa valvar crônica mitral em cães Prevalence of mitral valve chronic degenerative disease in dogs Patrícia Pereira Costa Chamas 1, Iaskara Regina Ribeiro Saldanha 2, Regina Lúcia Oliveira Costa 2 1 Curso de Medicina Veterinária da Universidade Paulista, São Paulo-SP, Brasil; 2 Médica Veterinária Autônoma, São Paulo-SP, Brasil. Resumo Objetivo A doença degenerativa da valva mitral (DDVM) é, dentre as alterações adquiridas, a cardiopatia de maior ocorrência em cães geriatras, sendo mais frequentemente observada em cães machos de pequeno e médio porte. A degeneração valvar ocasiona distorção dos folhetos, com consequente regurgitação mitral que determina sobrecarga de volume e dilatação de átrio esquerdo, com consequente insuficiência cardíaca congestiva (ICC) esquerda, ou mesmo hipertensão pulmonar secundária e ICC direita nos casos mais graves. O objetivo do presente estudo foi avaliar a predisposição etária, racial e sexual dos cães acometidos por DDVM em nosso meio. Métodos Foram avaliados 125 cães, nos quais o diagnóstico de DDVM foi suspeitado por anamnese, auscultação cardíaca, eletrocardiografia e radiografia torácica, sendo confirmado por meio de ecocardiografia. Resultados Observou-se, em relação à faixa etária dos cães acometidos, média e desvio padrão de 11,6 ± 2,4 anos, variando de 5 a 18 anos de idade. As raças de cães mais frequentemente acometidas foram aquelas de pequeno e médio porte, observando-se a seguinte frequência de ocorrência: Poodle (38,0%), SRD (32,0%), Pinscher (8,0%), Cocker Spaniel (5,0%), Dachshund (6,0%), Lhasa Apso, Maltês e Pastor Alemão (2,0% cada) e outras (1,0% cada). Evidenciou-se maior predisposição dos machos à DDVM, observando-se sua ocorrência em 74 machos (59,0%) e 51 fêmeas (41,0%). Conclusão Por meio deste estudo epidemiológico, ressalta-se a importância da avaliação cardiológica periódica dos animais mais suscetíveis à DDVM, tais como os cães machos idosos de raças pequenas, buscando-se diagnosticar precocemente essa prevalente doença. Descritores: Valva mitral; Doença da valva mitral; Cães Abstract Objective Degenerative disease of mitral valve (DDMV) is among the acquired heart disease most prevalent in geriatric dogs, being more frequently observed in small and medium male dogs. The degeneration causes distortion of the valve leaflets, with consequent mitral regurgitation that determines volume overload and dilatation of the left atrium with consequent left congestive heart failure (CHF), or secondary pulmonary hypertension and right CHF in severe cases. The aim of this study was to evaluate the age, racial and sexual predisposition of dogs affected by DDMV in our environment. Methods A total of 125 dogs were evaluated, in whom the diagnosis of DDMV was suspected through history, cardiac auscultation, electrocardiography and chest radiography, and confirmed by echocardiography. Results Regarding the age of affected dogs, it was encountered mean and standard deviation of 11,6 ± 2,4, ranging from 5 to 18 years old. The breeds of dogs most frequently affected were those of small and medium size, noticing the following frequency of occurrence in various breeds: Poodle (38.0%), SRD (32.0%), Pinscher (8.0%), Cocker Spaniel (5.0%), Dachshund (6.0%), Lhasa Apso, Maltese and German Shepherd (2.0% each) and others (1.0% each). It was observed a higher susceptibility of males to DDMV, identifying its occurrence in 74 males (59.0%) and 51 females (41.0%). Conclusion This epidemiological study emphasizes the importance of regular cardiac evaluation of the animals more susceptible to DDMV, such as elderly male dogs of small breeds, seeking an early diagnosis of this prevalent disease. Descriptors: Mitral valve; Mitral valve disease; Dogs Introdução A doença degenerativa da valva mitral (DDVM), também denominada de endocardiose da valva mitral é, dentre as cardiopatias adquiridas, aquela de maior ocorrência, correspondendo a 75 a 80% das mesmas na população geriátrica de cães de pequeno e médio porte 1-2. A degeneração mixomatosa não se restringe somente à valva mitral, podendo acometer, mais raramente, as demais valvas cardíacas. Observa-se, aproximadamente, 62,0 a 71,4% de acometimento único da valva mitral, 21,8 a 32,5% de degeneração concomitante de ambas as valvas atrioventriculares (mitral e tricúspide) e somente 10% para a valva tricúspide isolada, sendo bem mais raro o acometimento da valva pulmonar ou aórtica 2-4. A DDVM é geralmente observada, com maior freqüência, em cães de pequeno a médio porte e de faixa etária avançada, denotando-se maior ocorrência dentre os machos quando comparados às fêmeas 1-3,5-10. Embora alguns autores defendam a hipótese de uma base genética envolvida na gênese desta cardiopatia, devido à maior predisposição da mesma em determinadas raças, a etiopatogenia da degeneração da valva mitral ainda não foi totalmente esclarecida 9,11-12. Deposição desorganizada de colágeno e acúmulo de mucopolissacarídeos nas camadas esponjosas e fibrosas dos folhetos valvares, estresse dos folhetos e, possivelmente, alterações da função endotelial, parecem estar envolvidos no processo degenerativo 9,10,13. A degeneração valvar ocasiona a distorção dos folhetos com consequente regurgitação sanguínea pelo orifício valvar mitral 2,9. A regurgitação de grau discreto não causa alterações no tamanho ou função cardíaca, pois o volume sistólico anterógrado é mantido, e o pequeno volume de regurgitação é facilmente acomodado no átrio esquerdo 2. Porém, com a progressão das lesões valvares, a porção regurgitante sistólica ventricular esquerda aumenta, determinando progressiva dilatação de átrio esquerdo e, posteriormente, também de ventrículo esquerdo. O aumento da fração regurgitante de sangue para o átrio esquerdo acarreta em diminuição do volume sistólico ventricular e débito cardíaco, com consequente ativação de diversos mecanismos compensatórios cardíacos e não cardíacos (renal, neuro-humoral e vascular), que inicialmente contribuem para manter o volume sistólico anterógrado; no entanto, a longo prazo, tais mecanismos tornam-se deletérios ao organismo 10. Como a regurgitação geralmente desenvolve-se lentamente ao longo de meses a anos, a pressão média do átrio esquerdo permanece razoavelmente baixa, a menos que o volume regurgitante aumente muito e de forma repentina, como nos casos de rompimento das cordoalhas tendíneas 14. A velocidade com que a regurgitação piora, bem como o grau de distensibilidade atrial e de contratilidade ventricular, influenciam a capacidade de tolerância do animal à doença 10. 214

Quando as alterações da valva mitral são discretas, o paciente mantém-se assintomático por muito tempo, graças à ação dos mecanismos compensatórios; muitas vezes, nesses animais, o sopro sistólico de regurgitação mitral só é constatado casualmente em exame de rotina 7. Nos pacientes sintomáticos, observa-se manifestações clínicas inerentes à insuficiência cardíaca congestiva esquerda (ICCE), caracterizada por tosse, dispnéia, cianose, fraqueza e síncopes. O agravamento do quadro pode gerar hipertensão pulmonar secundária, com consequente insuficiência cardíaca congestiva direita (ICCD) e quadros de efusão pleural, ascite ou edema de membros pélvicos 14. A tosse pode ser decorrente da compressão brônquica, resultante do aumento do átrio esquerdo, caracterizada por tosse seca e áspera semelhante a engasgos, ou secundária ao edema pulmonar, casos em que a tosse é descrita como produtiva, com expectoração espumosa rósea e associada à taquipnéia e dispnéia, inquietação, inapetência e dificuldade do animal de se manter em decúbito lateral 1-2,8,10. Embora sejam utilizados a radiografia torácica e a eletrocardiografia como exames subsidiários para diagnóstico da DDVM, atualmente considera-se a ecocardiografia como o exame que fornece ao clinico o diagnóstico definitivo dessa doença. O exame ecocardiográfico, em modo bidimensional, permite a visualização dos folhetos espessados da valva mitral e o reconhecimento da dilatação das câmaras cardíacas esquerdas, que ocorre devido à regurgitação valvar mitral. A ecocardiografia com estudo Doppler permite avaliar a presença e intensidade da regurgitação, bem como sua localização dentro do átrio esquerdo. Desta forma, avalia-se a existência e gravidade das valvopatias e suas conseqüências hemodinâmicas 1-2,15-18. Se a doença for reconhecida, o tratamento deve ser instituído com o objetivo de promover melhor qualidade de vida e aumento da sobrevida, porém não pode ser considerado como método curativo. Os principais objetivos da terapia medicamentosa são o controle dos sinais de insuficiência cardíaca congestiva, a melhora do débito cardíaco, a redução do volume regurgitante e a modulação da ativação neurormonal excessiva. São prescritos diuréticos, vasodilatadores, digitálicos, antitussígenos e terapias dietéticas. A escolha dos fármacos, ou ainda, o momento certo de prescrever cada um deles, é estipulado de acordo com a classe funcional de insuficiência cardíaca em que o animal se encontra 2,10. O presente estudo objetivou avaliar a predisposição etária, racial e sexual da população de cães acometidos por DDVM, atendidos em um período de 24 meses no Serviço de Cardiologia do Hospital Veterinário da Universidade Paulista (UNIP). Métodos Foram avaliados, num período de 24 meses (janeiro de 2008 a dezembro de 2009), 125 cães referidos ao Serviço de Cardiologia do Hospital Veterinário da Universidade Paulista devido à presença de manifestações clínicas de doença cardiovascular, tais como tosse, cansaço fácil e intolerância a exercícios, dispnéia, posição ortopneica, cianose, síncopes, ascite ou edema de membros. O diagnóstico da DDVM nestes animais foi suspeitado pelos resultados de auscultação cardíaca, eletrocardiografia e radiografia torácica. A auscultação revelava sopro sistólico de regurgitação em foco da valva mitral nos cães acometidos pela doença; a eletrocardiografia detectava alterações sugestivas de sobrecarga de átrio e/ou ventrículo esquerdo, além da presença de arritmias atriais em alguns animais; a radiografia torácica evidenciava cardiomegalia e alterações pulmonares secundárias à DDVM, como edema pulmonar. O diagnóstico definitivo foi confirmado por meio de ecocardiografia, uma vez que os métodos anteriores podem revelar resultados normais, mesmo na presença da DDVM. A ecocardiografia foi realizada com aparelho de ultrassom marca GE e transdutor de cinco mhz, mantendo-se o animal em decúbito lateral esquerdo, sem sedação. Foram observados e analisados os seguintes parâmetros: anatomia dos folhetos da valva mitral (presença de espessamento, degeneração e/ou prolapso, conforme ilustrado na Figura 1), tamanho do átrio esquerdo (normal ou aumentado, conforme ilustrado na Figura 2; tal aumento era classificado como leve, moderado ou importante, de acordo com o valor da relação aorta/átrio esquerdo), tamanho do ventrículo esquerdo (normal ou aumentado devido à insuficiência valvar) e índices de função sistólica do ventrículo esquerdo (fração de encurtamento e fração de ejeção, que se apresentavam aumentados na maioria dos cães com DDVM devido à sobrecarga de volume ventricular). Também realizou-se o estudo com Doppler dos fluxos transvalvares, que evidenciou presença de fluxo sistólico turbulento no interior do átrio esquerdo nos cães acometidos pela DDVM. Uma vez diagnosticada a DDVM, os animais foram incluídos na amostra, para posterior análise dos percentuais de ocorrência da doença em relação à idade, raça e sexo dos animais acometidos. VE = ventrículo esquerdo; VD = ventrículo direito; AE = átrio esquerdo; AD = átrio direito; DM = degeneração mitral Figura 1. Ecocardiograma modo bidimensional (corte transversal) demonstrando aumento de átrio esquerdo em comparação à aorta, em cão com DDVM São Paulo 2010 AO = aorta; AE = átrio esquerdo Figura 2. VE = ventrículo esquerdo; VD = ventrículo direito; AE = átrio esquerdo; AD = átrio direito; DM = degeneração mitral Chamas PPC, Saldanha IRR, Costa RLO. 215

Resultados e discussão Observou-se, no presente estudo, média e desvio padrão de 11,6 ± 2,4 anos (mediana = 12) dos cães acometidos por DDVM, com idades variando de 5 a 18 anos. Os resultados relativos à faixa etária dos animais afetados, encontram-se dispostos no Gráfico 1. Segundo os relatos existentes, diversas raças podem ser acometidas pela DDVM; no entanto, observa-se maior frequência da doença em cães de médio e pequeno porte, com destaque para as raças: Poodle, Dachshund, Cavalier King Charles Spaniel (CKCS), Schnauzer miniatura, Pinscher, Fox terrier, Boston terrier, Chihuahua, Yorkshire e Pomerânios 5,8,10. Cães de porte grande que desenvolvem DDVM, normalmente têm evolução mais rápida e grave do quadro de insuficiência cardíaca congestiva que ocorre pela doença 19. Dentre as raças acometidas, o CKCS apresenta progressão mais rápida e por vezes mais grave da doença; ainda, a precocidade com que a mesma é observada nessa raça, muitas vezes em cães de dois a três anos de idade, aponta a hereditariedade como causa de DDVM nesses animais 9. Os resultados de distribuição racial da DDVM obtidos no presente estudo apresentam grande semelhança com aqueles dispostos na literatura consultada, uma vez que 97,4% (n=120) da amostra desse trabalho constituía-se de cães de porte pequeno ou médio (peso corpóreo de até 20 Kg) e apenas 2,6% (n=5) de cães de porte grande (peso corpóreo > 20 Kg). Dos 125 animais estudados, observou-se a presença da doença em 74 machos (59,0%) e 51 fêmeas (41,0%), como mostra o Gráfico 3. Gráfico 1. Distribuição etária dos cães acometidos por DDVM Com relação à predisposição etária da doença valvar mitral, estudos relatam que a prevalência aumenta proporcionalmente com a idade 19, sendo observada em 10% de cães com idade entre cinco e oito anos, 20% a 25% de cães com idade entre nove e 12 anos e 30% a 35% nos animais acima desta idade, nos quais pode acometer até 75% dos mesmos 7,12. Ainda, a prevalência de DDVM à necropsia pode superar o índice de 90% em cães com idade superior a 13 anos 1. Em um estudo, a média de idade dos animais acometidos por DDVM foi de 6,25 anos 20. No presente relato, os animais afetados por DDVM apresentavam idade mais avançada, com média de 11,6 anos, embora a doença também tenha sido diagnosticada em animais mais jovens, a partir de 5 anos de idade. As raças de cães com DDVM mais frequentemente acometidas neste estudo foram: Poodle (38,0%), SRD (cães sem definição racial) pequeno ou médio (30,0%), Pinscher (9,0%), Cocker Spaniel (5,0%), Dachshund (6,0%), Lhasa Apso, Maltês e Pastor Alemão (2,0% cada) e Fox Paulistinha, Pequinês, Pointer, Sheepdog, Yorkshire e SRD grande (1,0% cada). A distribuição racial dos animais estudados encontra-se representada no Gráfico 2. Gráfico 3. Distribuição sexual dos cães acometidos por DDVM Diversos estudos demonstram a predileção sexual da DDVM pelos cães machos, que apresentam maior gravidade e progressão mais rápida da doença, com maior prevalência de insuficiência cardíaca congestiva em relação às fêmeas 10,19. Num estudo, a avaliação de 32 animais com DDVM revelou que 53,12% dos cães acometidos eram machos e 46,87% eram fêmeas 3. Os resultados do presente trabalho, em relação à predisposição sexual para a DDVM, corroboram com aqueles dispostos na literatura, com maior ocorrência da doença em cães machos do que em fêmeas. Conclusão A doença degenerativa crônica da valva mitral é a doença cardíaca adquirida de maior ocorrência dentre os cães, particularmente daqueles de porte pequeno ou médio, machos e de faixa etária mais avançada. Trata-se de doença de evolução lenta e progressiva, que pode ser assintomática nos estágios iniciais, ou cursar com insuficiência cardíaca congestiva esquerda nos estágios mais avançados, podendo causar óbito por edema pulmonar ou outras complicações. O reconhecimento precoce desta doença por meio dos métodos diagnósticos atualmente disponíveis, particularmente da ecocardiografia, permite que se estabeleça, prontamente, um protocolo terapêutico apropriado. Com este estudo epidemiológico, ressalta-se a importância da avaliação cardiológica periódica de cães machos idosos, de raças de porte pequeno ou médio, buscando-se o diagnóstico precoce dessa prevalente doença nestes animais. Gráfico 2. Distribuição racial dos cães acometidos por DDVM Referências 1. Abbott JA. Doença valvular adquirida. In: Tilley P; Goodwin JK. Manual de cardiologia. 3ª ed. Tradução José Jurandir Fagliari. São Paulo: Roca; 2002. p.109-25. 2. Kvart C, Häggström J. Cardiopatia valvular adquirida. In: Ettinger SJ, Feldman EC. Tratado de Medicina Interna Veterinária. 5ª ed. Rio de Janeiro: Guanabara Koogan; 2004. p. 833-46. 3. Soares EC, Larsson MHMA, Yamato RJ. Doença valvar crônica: diagnósticos clínico, radiográfico, eletrocardiográfico e ecocárdiográfico, dados preliminares. Rev Bras Ciênc Vet. 2000;7(1supl):67. 4. Mucha CJ. Insuficiência valvular mitral: endocardiosis mitral. In: Belereniam CG. Mucha JC, Camacho AA. Afecções cardiovasculares em pequenos animais. 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