OBSERVAÇÕES SOBRE AS EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS NA LITERATURA: O CASO DE INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERÍSSIMO

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Transcrição:

OBSERVAÇÕES SOBRE AS EXPRESSÕES IDIOMÁTICAS NA LITERATURA: O CASO DE INCIDENTE EM ANTARES, DE ERICO VERÍSSIMO Dagmar Vieira Nogueira Silva (UEMS) dagmarvns@hotmail.com RESUMO Os discursos sociais presentes em textos literários ou não refletem o pensamento dos usuários da língua sobre os mais variados assuntos que perpassam o corpo social, ampliando o vocabulário e provocando discussões de ordens distintas. Nesse sentido, analisar a linguagem cristalizada pelo uso, verbalizada e sistematizada em veículos textuais, possibilita não só o conhecimento de tais ideias e pensamentos, como também, a compreensão de sentimentos refletidos pelas escolhas lexicais que, em alguns momentos, agem em conjunto para expressar algo que uma lexia isolada, normalmente, não esclarece. Tais expressões, geralmente, encontram-se subentendidas, ou seja, escondidas no significado não literal do bloco, são denominadas como expressões idiomáticas e/ou fraseológicas, expressões capazes de trazer mais expressividade para o texto. Dessa forma, a leitura de textos, dos mais variados tipos e gêneros, requer um olhar mais atento ao que o autor propõe com suas escolhas lexicais. Sendo assim, o objetivo desse artigo pauta-se na importância de um estudo lexicológico, idiomático e fraseológico para a hermenêutica da leitura. Para tanto, adota-se como corpus para a análise a obra de Érico Veríssimo, Incidente em antares, e consideram-se como aporte teórico os estudos de Xatara (1995; 1998), Biderman (2005), Mota (1982), Cabral (1982), Casteleiro (2001), Riva (2009), Silva (2013), Houaiss (2009), entre outros que venham a contribuir com os objetivos aqui delimitados. Palavra-chave: Fraseologia. Lexicologia. Semântica. Expressões idiomáticas. 1. Introdução Uma língua pode ser definida como um conjunto abstrato de códigos linguísticos que possibilitam a comunicação entre os grupos de falantes (VIARO, 2014). É um elemento fundamental na construção do conhecimento e na transmissão deste como forma de conquistar avanços em busca de melhores condições de vida e na perpetuação das espécies. A linguagem considerada como uma habilidade estritamente humana e fundamental às relações sociais é abundante em formas e significados, sendo um dos principais veículos de transformação social. Compreender a amplitude alcançada por esse veículo demanda estudos que ultrapassam o entendimento literal de cada palavra. Ou seja, com- 1586 Revista Philologus, Ano 24, N 72. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2018.

preender a língua utilizada por uma determinada comunidade, por exemplo, vai além da decodificação dos signos linguísticos presente nessa língua, envolve a compreensão dos sentidos denotativos (literais) e conotativos (figurados), muitas vezes metafóricos e metonímicos. Por essa acepção, nota-se que o usuário de uma língua, amparado por seu conhecimento linguístico, histórico e sociocultural emprega com criatividade e coloquialidade termos figurativos, que buscam dar mais expressividade à mensagem, mas que pouco se relacionam com o significado preconizado pelo dicionário. Assim, ao ouvir expressões como arrumar sarna para se coçar (procurar problemas), ou chutar o balde (perder a calma), o ouvinte não deve interpretá-los conforme o sentido literal das palavras ali reunidas e organizadas, ou seja, não se deve tentar entender ao pé da letra, é preciso buscar algumas relações simbólicas para a correta construção do sentido. Essas expressões, corriqueiras em muitos idiomas, são propagadas pelos usuários da língua com muita frequência em diversos contextos sociais, demonstrando a estreita relação entre língua e cultura, reverberando a riqueza desse veículo social. Não é possível conhecer e dominar uma língua sem adentrar-lhe a cultura e apropriar-se dela (SIMÕES, 2004, p. 90) Destarte, o entendimento das expressões Acertar na mosca, Banho de gato, Com a corda toda, Lavar a roupa suja, entre outras, requer concepções permeadas sentidos culturais. Tratada por especialistas como expressões idiomáticas e/ou fraseologia (BALDO, 2014, entre outros), esse conjunto de palavras deve ser observado em grupo, não podendo substituir seus componentes por sinônimos, ainda que estes sejam considerados perfeitos. Dessa forma, andar na linha, não pode ser substituído por andar no fio, mesmo que fio seja um possível sinônimo de linha, como se confere no emprego da palavra fio em Há um fio puxado em sua blusa.. 2. Alguns conceitos de expressões idiomáticas Silva (2014, p. 23) considera as expressões idiomáticas como blocos de palavras que devem ser interpretados semanticamente, porque, isoladamente, as palavras que as compõem perdem o seu significado básico. A exemplo dessa afirmação considera-se a seguinte expressão arroz de festa, cujo significado é uma pessoa que vai a todas as festa, mas que em Suplemento: Anais da XIII JNLFLP 1587

uma análise individual de cada lexia que constitui a expressão nada apresentaria nesse sentido. Conforme Xatara (1998, p. 148), as expressões idiomáticas são expressões indivisíveis que possibilitam transferências semânticas regulares, do concreto ao abstrato, do físico ao psíquico, exprimindo julgamentos sociais e compartilhando das mais diversas sensações e emoções. Todas essas possibilidades contribuem com o falante na representação de seu pensamento e juízo, de acordo com seu conhecimento de mundo. A autora defende a ideia de que as expressões idiomáticas deveriam ter entradas específicas nos dicionários, não ficando à margem do significado de outras lexias, no emprego dessas lexias coloquialmente. Ainda por esse viés, Xatara salienta a desagradável situação de que os usuários da língua, nativos ou não, vivenciam ao tentar encontrar no dicionário essas expressões, revelando também uma falta de critérios relacionados ao tratamento e registros dessas linguagens. Ainda por esse foco, observa-se as críticas proferidas por Xatara (1995): Os dicionaristas parecem, no entanto, esbarrar na questão das lexias complexas, as quais, não se determinando como entradas separadas, segundo Pottier (apud Loffler & Lobato, 1979), comporiam outros verbetes. As EI são grupos de lexias indecomponíveis, salvo numa perspectiva etimológica ou histórica. Em sincronia, pela análise distribucional ou funcional, tais grupos formam uma unidade lexical (unidade à qual corresponde um só significado). Deveriam, portanto, constituir entradas específicas nos dicionários, o que, infelizmente, não ocorre. (XATARA, 1995) Por outro lado, há outro inconveniente para se localizar num dicionário uma EI: qual o critério seguro e único para distinguir um termo de uma expressão e não outro como palavra-chave, e então, no verbete referente a esse termo, encontrar tal idiomatismo? A escolha da palavra-chave deve depender do tipo do dicionário (em sua maioria, na versão uni ou bilíngue, são alfabéticos, semasiológicos, não-analógicos e não-nocionais) e do seu objetivo (compreensão do desconhecido ou procura da expressão mais apropriada). Não há dúvida, porém, de que se o usuário encontrasse as lexias complexas como entradas, a consulta seria realmente eficaz. Biderman (1978) critica a prática lexicográfica de inserir as EI na entrada doprimeiro verbo ou substantivo que as compõem, sugerindo uma entrada individualizada para facilitar a localização da informação. Conside- 1588 Revista Philologus, Ano 24, N 72. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2018.

ra, entretanto, que tal procedimento resultaria num aumento significativo do índex verborum (XATARA, 1995, p. 197) Nesse sentido, Xatara considera outros estudos da área sobre as palavras-chaves, possíveis identificadoras das expressões idiomáticas, quando estas aparecem dentre os significados dos verbetes dos dicionários. Além disso, essa pesquisa buscará compreender outras associações importantes com relação às expressões idiomáticas no que tange a motivação de sua criação, a valoração contextual e suas características. Deste modo, essas noções virão ao encontro do que se propôs como objeto desse estudo. 3. A obra Incidente em Antares Publicada em 1971, Incidente em Antares é uma obra de estilo modernista, apontada como o último romance de Veríssimo. A narrativa divide-se em dois momentos, o primeiro aborda o panorama sócio-político do Brasil contemporâneo a partir da localidade de Povinho da caveira (primeira referência ao palco da narrativa), que logo em seguida já é retratada como a cidade de Antares, arena das desavenças políticas e sociais entre os representantes oligárquicos, Vacarianos e Campolargos. Na segunda parte, apontada como O incidente, o autor traz o arrebatador julgamento de nobres cidadãos antarenses por sete mortos-vivos, deixados à porta do cemitério numa sexta-feira, 13 de dezembro de 1963, insepultos por força de uma greve-geral que evidencia, dentre outras questões, a importância de profissionais como os coveiros. Érico Lopes Veríssimo (17/12/1905 28/11/1975) foi um dos mais importantes escritores brasileiro do século XX. Autor de várias obras dentre contos, ensaios, literatura infanto-juvenil, romances, novelas, biografias, autobiografias e traduções. De acordo com alguns pesquisadores, as obras de Veríssimo podem ser divididas em três fases: romance urbano, romance histórico e romance político. A história é contada em terceira pessoa por um narrador onisciente e onipresente, que ao longo da narrativa transcreve trechos de vários pseudoautores. Caracterizada por um Realismo-fantástico, a narrativa apresenta uma linguagem repleta de ambivalências em que se contrapõem as virtudes e os Suplemento: Anais da XIII JNLFLP 1589

pecados dos seres humanos. Com uma linguagem cheia de alegorias e simbolismos, encontram-se presentes expressões idiomáticas, fraseologias, neologismos, alguns regionalismos, além de termos coloquiais e eruditos da língua portuguesa. Em sua maioria retratada na linha paradoxal entre história x ficção, opressores x oprimidos, justiça x injustiças, bem x mal, vivos x mortos, oportunizando uma gama de estudos da variedade do uso da língua atrelados ao contexto e aos interlocutores. 4. As expressões idiomáticas em Incidente em Antares Feita as considerações a respeito da obra, do autor e de suas escolhas lexicais, cabe salientar alguns exemplos que ilustram a importância do estudo realizado sobre os idiomatismos presentes na obra em questão. Dessa forma, pontua-se que para a análise desejada serão consideradas as expressões idiomáticas e/ou fraseologias que buscam simbolizar os sentimentos refletidos nos discursos apresentados pela obra, os quais não encontram traduções no acervo lexical de uma língua. Assim, segue o exemplo: (01) A troco de quê Deus iria começar o Juízo Final logo neste cafundó onde Judas perdeu as Botas? (Incidente em Antares, 1974, p. 2) Esse primeiro recorte evidencia uma expressão antiga, utilizada para informar uma localidade muito distante. A expressão idiomática onde Judas perdeu as botas está registrada no Dicionário Brasileiro de Fraseologia como uma variante de caixa-prego que apresenta os seguintes significados e empregos: CAIXA-PREGO. Caixa-prego. 1) Lugar distante ou de difícil acesso. 2) Lugar cujo nome se ignora. Cafundó do Judas. (HA). Ir para a caixa prego. Mandar embora alguém que está importunando ou aborrecendo. Mandar para a caixa prego. Ir para a caixa prego. No caixa-prego. Em lugar muito distante.... Posse ficava no caixa-prego, lá em cima encostada na Bahia (W. Bariâni Ortêncio, Vão Dos Angicos, p. 3). Para lá de caixa-pregos. Diz-se de um lugar muito distante. Convencionouse que a inexistente caixa-pregos está localizada no fim do mundo ou onde Judas perdeu as botas. 1590 Revista Philologus, Ano 24, N 72. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2018.

(SILVA, 2013, p. 378 adaptado) A expressão idiomática onde Judas perdeu as botas é geralmente utilizada como um advérbio. Ao buscar uma relação histórica, tendo o elemento Judas como elemento de forte apelo semântico, pode-se dizer que esse termo por si só já carrega sentidos depreciativos. Relacionado à história cristã que relata a morte desse apóstolo em lugar longínquo, arroga-se à crença popular a ideia de que o traidor de Cristo teria escondido o pagamento por sua traição, trinta moedas, em suas botas, ainda que na Bíblia não exista menção do uso desse calçado por Judas. Quando fora encontrado (após ter cometido suicídio), ele já se encontrava sem as botas e, consequentemente, sem o pagamento. Relacionando ao contexto em que aparece essa expressão na obra de Veríssimo, pode-se supor que ao escolher essa expressão, o autor não só buscou transmitir a ideia de lugar distante, como também, de lugar sem importância no cenário geopolítico, cabendo, no que tange a ideia de lugarzinho, uma modesta semelhança com os sentidos provocados pelo poema Cidadezinha qualquer, de Carlos Drummond de Andrade. Atualmente, ouve-se também Onde Judas perdeu as meias, indicando um lugar menos distante que o indicado pela expressão anterior. Outras expressões, como as exemplificadas abaixo, aparecem no decorrer da obra. (02) Chico Vacariano não teve outro remédio senão engolir o sapo, segundo uma expressão sua. (1974, p. 10) (03) Agressivo, opiniático, autoritário, o patriarca do clã dos Vacarianos era um sujeito sem tato. (1974, p. 11) (04) Castilho escreveu a Benjamim Campolargo recomendando-lhe fizesse Vista grossa ao reaparecimento dos seus inimigos Vacarianos em Antares. (1974, p. 22) Com relação à outra expressão apresentada por Veríssimo, valendose de um dos processos de formação das palavras, os hibridismos (Palavra formada a partir da mistura de duas línguas) destaca-se a seguinte aparição: (05) O que temos no Brasil é uma merdocracia! (1974, p. 193) O termo merdocracia é um hibridismo, cujo significado apoia-se na junção do elemento merda (coisa sem qualidade, porcaria) + cracia Suplemento: Anais da XIII JNLFLP 1591

(sufixo grego que significa poder/governo). Nas quase quinhentas páginas dessa obra estão outras expressões idiomáticas e fraseologias que serão, como dito anteriormente, observadas, sistematizadas e analisadas com base no aporte teórico selecionado e demais conhecimentos que perfazem a cultura de um povo. 5. Considerações finais Considerando os sentidos alcançados pela escolha e uso das expressões idiomáticas e/ou fraseologias, e levando em conta peculiaridades do processo de enunciação, torna-se significante considerar as expressões idiomáticas como parte fundamental de uma língua, visto que tais expressões carregam nuances de sentimentos que muitas vezes não encontram no léxico sinônimo perfeito. Os estudos dos aspectos semânticos, sintáticos e pragmáticos da língua demandam observações acerca do uso das expressões idiomáticas em diferentes contextos de produção e elocução, cristalizados culturalmente, originados do individual para o social. Com base nessa concepção, verificou-se em Incidente em Antares, clássico da literatura brasileira, uma oportunidade próspera de correlacionar e explorar os estudos proporcionados pelos autores Xatara (1995; 1998), Biderman (2005), Mota (1982), Cabral (1982), Casteleiro (2001), Riva (2009), Silva (2013), Houaiss (2009), entre outros, nas representações de expressões idiomáticas e/ou fraseologias oferecidas pela obra literária. Nesse sentido, o levantamento, a sistematização e a análise das expressões idiomáticas e/ou fraseologias observadas na obra supracitada, é de grande relevância, considerando o sentido semântico e pragmático produzido por esse conjunto indecomponível de combinações linguísticas, em favor de uma maior expressividade da mensagem e dos discursos nos diversos contextos sociais. REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS BALDO, Alessandra. Compreensão de expressões idiomáticas da língua portuguesa como L2: evidências de protocolos verbais. In: Ling. (dis)curso [online], vol. 14, n. 2, p. 375-90, 2014. 1592 Revista Philologus, Ano 24, N 72. Rio de Janeiro: CiFEFiL, set./dez.2018.

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