Gil Vicente e Auto da barca do Inferno Prof. Willian Andrade
O autor Algumas datas: 1460-70: década do nascimento de Gil Vicente 1502: representação da primeira peça 1536: representação da última peça e data provável da morte do autor. Gil Vicente, escultura de Francisco Assis Rodrigues (frontão do Teatro D. Maria II).
A época A vida de Gil Vicente corresponde aos reinados de: D. Afonso V (1438-81) D. João II (1481-95) D. Manuel I (1495-1521) D. João III (1521-57) É uma época de grandes marcos históricos da Expansão portuguesa: 1486: Bartolomeu Dias dobra o cabo da Boa Esperança; 1498: Vasco da Gama descobre o caminho marítimo para a Índia; 1500: Pedro Álvares Cabral descobre o Brasil.
O dramaturgo Gil Vicente escreveu cerca de 50 peças de teatro, em português e castelhano, muitas por encomenda real. As peças eram representadas na corte, na qual o dramaturgo teve a proteção da rainha D. Leonor (viúva de D. João II), de D. Manuel I e de D. João III. A obra vicentina é influenciada pelo teatro medieval e pela época em que o autor viveu. Gil Vicente Representa na Corte, Roque Gameiro.
A obra Pode dividir-se em três fases, de acordo com o género dramático predominante em cada uma. Na 1.ª fase (1502-1508), predominam os autos pastoris e religiosos, com uma ação dramática rudimentar. Na 2.ª fase (1509-1519), têm mais importância as farsas e outros textos burlescos, com objetivo crítico. Na 3.ª fase (1521-1536), sobressaem as comédias e as tragicomédias, com um diálogo mais realista.
As influências medievais Na Idade Média, realizaram-se em Portugal representações dramáticas. Tinham um caráter simples e versavam temas religiosos ou profanos, como acontecia por toda a Europa. Consoante a temática, existiam diferentes géneros ou tipos de peças. Gêneros do teatro pré-vicentino Teatro religioso: mistérios; milagres; moralidades. Teatro profano: momos; entremezes; farsas.
As influências da época No século XV, a produção dramática intensificou-se. Gil Vicente aperfeiçoou-a, sendo influenciado também por autores e pela mentalidade da época. Autores: os dramaturgos espanhóis Juan del Encina, Lucas Fernández e Torres Naharro, contemporâneos de Gil Vicente, vão ser uma das suas fontes de inspiração. Mentalidade: o Humanismo, veiculado em toda a Europa, surge em Gil Vicente na sua vertente crítica. Sabe-se que o autor leu Erasmo de Roterdão.
O contexto histórico: matéria para crítica É uma época de grandes transformações, no auge das Descobertas, com reflexos na vida da capital e na sociedade portuguesa: D. Manuel I, em 1505, sai dos velhos paços reais da Alcáçova de Lisboa e vai para um palácio à beira-rio; A Corte aumenta, multiplicando-se os cargos pagos pelo Estado; A nobreza perde o seu caráter militar e assume postos de chefia, de cariz burocrático; Muitos portugueses tentam fortuna na América do Sul e no Oriente; Muitos produtos e pessoas de outros continentes chegam a Lisboa.
Características da obra vicentina A nível formal: Gil Vicente não dividiu a sua obra em atos e cenas (característica medieval), apesar de existir, por exemplo, entrada e saída de personagens; Composição em heptassílabos (redondilha maior), de rimas regulares. Frontispício da Compilaçam de todalas obras de Gil Vicente, 1562.
A nível do conteúdo: Crítica materializada em personagens-tipo, que representam grupos sociais, e crítica de atitudes e comportamentos gerais, como a ganância ou a infidelidade conjugal; Intenção didática, isto é, denúncia de comportamentos visando uma reflexão e mudança por parte do público. A nível estilístico: Uso de recursos expressivos (por exemplo, metáfora, ironia e alegoria); Utilização de uma linguagem coloquial, marcada por alguns arcaísmos de emprego frequente na época.
Argumento da peça O Auto da Barca do Inferno integra uma trilogia cujo ponto comum é o julgamento das almas depois da morte: Auto da Barca do Inferno (1517); Auto da Barca do Purgatório (1518); Auto da Barca da Glória (1519). A ação da peça ocorre depois de as personagens terem morrido. Estas chegam ao cais de um rio (elemento da mitologia clássica), onde há dois barcos (barcas ou batéis): um é conduzido pelo Anjo e leva ao Paraíso; o outro é conduzido pelo Diabo e leva ao Inferno.
Símbolos Cais do rio o lugar aonde chegam as almas para serem julgadas Barcas a viagem para o Céu ou para o Inferno, consoante a vida terrena das personagens Anjo e Diabo o Bem e o Mal Rio o percurso para a Glória ou para a Perdição
Personagens As personagens centrais são o Anjo e o Diabo, que tem um companheiro no barco. Encontram-se dentro dos seus barcos, à proa, no cais do rio. As personagens que vão surgindo, os que morrem, dirigem-se ao cais e vão alternando entre uma barca e outra, no processo de julgamento da sua alma.
Movimentação O percurso das personagens é quase sempre o mesmo: chegam ao cais, dirigem-se à barca do Diabo, recusam a entrada, vão à barca do Anjo, são rejeitadas e aceitam a condenação. Há, porém, quatro personagens que não seguem este esquema. Julgamento Cada réu conta com o Anjo e o Diabo como advogados de acusação. A defesa cabe à própria personagem, que apresenta os argumentos pelos quais deve ser salva. A sentença, que é sobretudo de condenação, tanto pode ser proferida pelo Anjo como pelo Diabo.
Sequência das personagens São onze as personagens que chegam ao rio: Fidalgo Onzeneiro Joane (o Parvo) Sapateiro Frade Alcoviteira Judeu Corregedor Procurador Enforcado Quatro Cavaleiros
Fidalgo: é condenado à barca do inferno por ter levado uma vida tirana cheia de luxúria e pecados. Onzeneiro: é condenado ao inferno pela ganância, usura e avareza. Parvo: ao chegar à barca da gloria o parvo diz não ser ninguém e, por causa da sua humildade e modéstia, a sua sentença é a glorificação. Sapateiro: é condenado por roubar o povo com seu ofício durante 30 anos e por sua falsidade religiosa. Frade: condenado à barca do inferno por seu falso moralismo religioso. Alcoviteira: condenada à barca do inferno pela prática de feitiçaria, prostituição e por alcovitagem. Judeu: condenado ao inferno por desrespeitar o Cristianismo. Corregedor e Procurador: condenando-os ao batel infernal por usarem o poder do judiciário em benefício próprio. Enforcado: condenado ao batel infernal pela corrupção nos meios burocráticos. Cavaleiros das Cruzadas: O fato de morrer pelo triunfo do Cristianismo garante a esses personagens uma espécie de passaporte para a glorificação.
Veredicto Salvam-se Joane (o Parvo) e os Quatro Cavaleiros, entrando na barca do Anjo. As restantes entram na barca do Diabo, tendo sido condenadas ao Inferno.
Fidalgo Elementos/símbolos Pajem; Manto; Cadeira. Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo Barca do Diabo
Aspetos criticados Altivez, soberba, arrogância: «Pera vossa fantesia / mui pequena é esta barca.» (vv. 87-88) «desprezastes os pequenos» (v. 104) Vida de prazeres: «Do que vós vos contentastes.» (v. 65) Intenção crítica Crítica à nobreza, mostrando a sua vaidade e presunção; Denúncia da exploração dos mais desfavorecidos e da tirania com que os fidalgos tratam o povo; Denúncia da infidelidade conjugal.
Onzeneiro Elemento/símbolo Bolsa. Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo Barca do Diabo
Aspetos criticados Ganância, ambição: «Mais quisera eu lá tardar. / Na safra do apanhar» (vv. 188-189); Usura: «pois que onzena tanto abarca / nam lhe dais embarcação?» (vv. 226-227) «[ ] esse bolsão / tomará todo navio.» (vv. 220-221) Intenção crítica Denúncia do enriquecimento fácil e rápido pelos elevados juros cobrados em empréstimos de dinheiro a pessoas necessitadas; Ambição desmedida.
Joane, o Parvo Elementos/símbolos Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo
Aspetos valorizados Simplicidade de espírito, ausência de malícia (não é dissimulado, cínico nem fingido): «Tu passarás se quiseres / porque em todos teus fazeres / per malícia nam erraste. / Tua simpreza t abaste / pera gozar dos prazeres.» (vv. 313-317) Intenção crítica Enaltecimento dos «pobres de espírito»; Valorização da simplicidade e da inocência.
Sapateiro Elementos/símbolos Avental; Formas de calçado. Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo Barca do Diabo
Aspetos criticados Desonestidade na profissão: «tu roubaste bem trinta anos / o povo com teu mister.» (vv. 341-342); «Essa barca que lá está / leva quem rouba de praça.» (vv. 365-366) Falta de postura e de educação: «nem à puta da badana» (v. 356) Intenção crítica Denúncia dos que roubam através da profissão; Denúncia da prática religiosa hipócrita.
Frade Elementos/símbolos Moça; Escudo (broquel) e espada; Capacete (casco). Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo Barca do Diabo
Aspetos criticados Vida de prazeres: «e folgar com ũa molher / se há um frade de perder» (vv. 421-422) Vida de cortesão: «Deo gracias, sam cortesão.» (v. 384); «Dê vossa reverência lição / d isgrima que é cousa boa.» (vv. 434-435) Intenção crítica Crítica ao Clero que não seguia as regras de conduta da classe (castidade e comportamento moral exemplar); Denúncia da falta de vocação dos seus membros e da contradição entre os comportamentos e os valores morais.
Alcoviteira Elementos/símbolos São vários e enumerados pela personagem (vv. 506-520), todos relacionados com a sua atividade. Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo Barca do Diabo
Aspetos criticados Prática de lenocínio: «eu sou Brísida a preciosa / que dava as moças òs molhos. // A que criava as meninas / pera os cónegos da sé.» (vv. 539-542); «tantas cachopas com eu / todas salvas polo meu» (vv. 550-551) Intenção crítica Denúncia da prática da prostituição e dos seus agentes; Denúncia da dissolução dos costumes por parte do Clero.
Judeu Elemento/símbolo Bode (às costas). Movimentação Barca do Diabo
Aspetos criticados Sobrevalorização do dinheiro: «Passai-me por meu dinheiro.» (v. 578); Desprezo pelo catolicismo (por isso vai a reboque da barca do Diabo): «E s ele mijou nos finados / no adro de sam Gião. // E comia a carne da panela / no dia de nosso senhor» (vv. 611-614) Intenção crítica Denúncia do fanatismo religioso dos Judeus e do seu apego exagerado ao dinheiro; Crítica à teimosia dos Judeus que recusavam a conversão ao catolicismo.
Corregedor Elementos/símbolos Processos judiciais («feitos»); Vara (na mão). Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo Barca do Diabo
Aspetos criticados Corrupção: «Quando éreis ouvidor / nonne accepistis rapina? (vv. 658-659) Falta de consciência religiosa: «Eu mui bem me confessei / mais tudo quanto roubei / encobri ao confessor.» (vv. 715-717) Intenção crítica Denúncia da prática fraudulenta da justiça e da corrupção dos agentes envolvidos nos processos judiciais; Denúncia da decadência dos valores ético-morais (ocultação dos pecados mais graves aquando do sacramento da confissão).
Procurador Elementos/símbolos Livros. Movimentação Barca do Diabo Barca do Anjo Barca do Diabo
Aspetos criticados Corrupção: «Bacharel sou dou-me ò demo.» (v. 711) Aceitação de dinheiro: «e é muito mau de volver / depois que o apanhais.» (vv. 720-721) Intenção crítica Denúncia da prática fraudulenta da justiça e da corrupção dos agentes envolvidos nos processos judiciais.
Enforcado Elemento/símbolo Corda (baraço). Movimentação Barca do Diabo
Aspetos criticados Ausência de consciência: «que fui bem aventurado / que polos furtos que eu fiz / sou santo canonizado» (vv. 769-771) Desvalorização da justiça divina: «Se Garcia Moniz diz / que os que morrem como eu fiz / são livres de Satanás.» (vv. 779-781) Intenção crítica Denúncia das falsas doutrinas que altos funcionários da Corte transmitiam a criminosos e ladrões; Condenação da ideia de que a justiça humana substitui a Justiça Divina.
Quatro Cavaleiros Elementos/símbolos Cruz de Cristo; Espadas e escudos. Movimentação Barca do Anjo
Aspetos valorizados Sacrifício e morte pela fé cristã: «morremos nas partes dalém / e nam queirais saber mais.» (vv. 854-855); «Ó Cavaleiros de Deos / a vós estou esperando / que morrestes pelejando / por Cristo senhor dos céus.» (vv. 856-859) Intenção crítica Louvor pelo desprendimento dos bens terrenos; Apologia do espírito de Cruzada na luta contra os Mouros.
As passagens citadas do Auto da Barca do Inferno seguem a edição: As Obras de Gil Vicente, direção científica de José Camões e prefácio de Ivo Castro, Centro de Estudos de Teatro da Faculdade de Letras da Universidade de Lisboa, 1.ª ed., vol. I. Lisboa: Imprensa Nacional-Casa da Moeda, 2002.