Alterações estruturais e nutricionais em lipídeos submetidos a processamento químico ou aquecimento



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Transcrição:

Alterações estruturais e nutricionais em lipídeos submetidos a processamento químico ou aquecimento Patrícia Martins Bock * Joelso dos Santos Peralta ** RESUMO: O consumo de alimentos industrializados e fritos é grande, devido às características sensoriais. A hidrogenação industrial dos ácidos graxos insaturados leva a saturação completa ou parcial dos óleos vegetais. Dependendo das condições de reações, o processo pode ter maior ou menor formação de trans. Durante o processo de fritura, é observada a formação de substâncias derivadas de óleo original, como isômeros trans e produtos da lipoperoxidação. Tem sido demonstrado que quanto maior é a temperatura, maior a formação de ácidos graxos trans e produtos da lipoperoxidação. PALAVRAS-CHAVE: ácidos graxos trans aquecimento lipoperoxidação hidrogenação catalítica ABSTRACT: The processed and fried food intake is large due to sensory characteristics. Unsaturated fatty acid industrial hydrogenation leads to complete or partial saturation of vegetable oils. Depending on reaction conditions, more or less trans fats can be formed. During the process of frying, chemical substances derivated from original oil are formed, such as trans isomers and lipoperoxidation products are formed. At higher temperatures, more trans fatty acids and lipoperoxidation products are formed. KEYWORDS: Trans fatty acids heating lipoperoxidation catalytic hydrogenation * Mestre em Fisiologia pela UFRGS e Docente do Centro Universitário Metodista IPA. Graduada em Farmácia pela UFRGS. ** Mestrando em Ciências Médicas pela UFRGS, Nutricionista da Action Academia e Docente do Centro Universitário La Salle. Graduado em Nutrição pela UNISINOS. La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009 77

BOCK, Patrícia Martins; PERALTA, Joelso dos Santos Introdução Os lipídeos são biomoléculas hidrofóbicas e lipossolúveis. A maior parte dos lipídeos utilizados na alimentação humana é composta de triacilgliceróis (TAG), correspondendo a mais de 90% dos lipídeos dietéticos (CHAMPE, HARVEY e FERRIER, 2009; VOET, VOET e PRATT, 2008). Os ácidos graxos que estão presentes nos TAG podem ser saturados (Figura 1), e a predominância de tais moléculas em um TAG faz com que este lipídeo seja sólido a temperatura ambiente, já que o ponto de fusão de um ácido graxo saturado normalmente é alto. As gorduras de origem animal são geralmente ricas em ácidos graxos saturados (AGS) (BRUICE, 2006, COULTATE, 2004). Figura 1: Estrutura química de um ácido graxo saturado. Já os ácidos graxos insaturados (AGI), quando possuírem apenas uma ligação dupla, são denominados monoinsaturados (AGMI), quando possuírem mais que duas ligações, são ditos poliinsaturados (AGPI) (Figura 2). Os AGI geralmente são líquidos a temperatura ambiente e, como exemplo, destacam-se os óleos de origem vegetal (BRUICE, 2006; COULTATE, 2004; VOET, VOET e PRATT, 2008). Figura 2: Estrutura química de um ácido graxo insaturado. Os óleos e gorduras de origem natural possuem um misto de ácidos graxos saturados e insaturados, por exemplo, o óleo de soja contém maior percentual de AGPI, enquanto que o óleo de oliva contém maior percentual de AGMI. Já a gordura de coco contém maior percentual de AGS (CHAMPE, HARVEY e FERRIER, 2009). A tabela 1 mostra os percentuais de AGS e AGI encontrados em alimentos (REDA e CARNEIRO, 2007). 78 La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009

Alterações estruturais e nutricionais em lipídeos submetidos a processamento químico ou aquecimento Tabela 1: Composição de ácidos graxos em óleos. A ligação dupla dos AGI pode apresentar estereoquímica cis ou trans, que se refere à conformação espacial da molécula (Figura 3) (BRUICE, 2006, PADO- VESE e MANCINI FILHO, 2002). Figura 3: Estereoquímica cis e trans. A posição dos hidrogênios em lados opostos da cadeia carbônica, como observado da configuração trans, permite a formação de uma molécula linear, mais rígida. Diferentemente, na configuração isomérica cis, observa-se uma dobra na cadeia (Figura 4). Essa diferença confere propriedades físicas distintas, como aumento do ponto de fusão da conformação trans quando comparada com a cis. Por exemplo, o ácido oléico (cis-9-octadecenóico, C18:1-9c) tem ponto de fusão de 13ºC, enquanto que o ácido elaídico (trans-9-octadecenóico, C18:1-9t) tem ponto de fusão de 44ºC (COULTATE, 2004; PADOVESE e MANCINI FI- LHO, 2002). Figura 4: Estrutura tridimensional de ácidos graxos cis e trans. La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009 79

BOCK, Patrícia Martins; PERALTA, Joelso dos Santos Em sua maior parte, os ácidos graxos de ocorrência natural possuem conformação cis. Atualmente, muito tem sido discutido acerca da utilização de ácidos graxos insaturados trans (ou simplesmente, ácidos graxos trans, AGT) na alimentação humana. Os mesmos estão relacionados com aumento da lipoproteína de baixa densidade (LDL), diminuição da lipoproteína de alta densidade (HDL), alteração da fluidez das membranas biológicas, prejuízo no metabolismo de ácidos graxos essenciais e doenças cardiovasculares, como a aterosclerose (KATAN, 2006; KUMMEROW, 2009; MARTIN, MATSHUSHITA E SOUZA, 2004). O consumo de alimentos fritos e processados industrialmente é grande em todas as idades e níveis socioeconômicos, pois os mesmos têm grande aceitação devido às características sensoriais de tais alimentos. As características agradáveis se manifestam na cor, sabor, textura e palatabilidade. O processamento químico ou o preparo de alimentos pelo processo de fritura (imersão em óleo sob aquecimento) podem levar a formação de substâncias derivadas de óleo original. Dessa forma, torna-se de suma importância para o profissional da saúde compreender o que são e como são formados os diferentes ácidos graxos que podem estar presentes na alimentação humana. Biossíntese de ácidos graxos saturados e insaturados No metabolismo dos seres vivos, os ácidos graxos saturados são sintetizados a partir de acetil-coa, que é um grupamento acetato (correspondente ao ácido carboxílico de dois carbonos), ligado a uma coenzima derivada do ácido pantotênico, a coenzima A. Essa síntese é feita no compartimento extramitocondrial pela atuação conjunta de enzimas como a acetil-coa carboxilase e o complexo multienzimático ácido graxo sintase. Esse sistema está presente em muitos tecidos, incluindo o fígado, o rim, o cérebro, o pulmão, a glândula mamária e o tecido adiposo (DEVLIN, 2007; MURRAY, GRANNER e RODWELL, 2007). Os AGI são formados a partir dos saturados por um grupo de enzimas denominadas dessaturases. Os animais possuem apenas dessaturases para inserir ligações duplas até o carbono 9 de um ácido graxo e podem sintetizar, por exemplo, os ácidos palmitoléico (C16:1-9c) e oléico (C18:1-9c). Em outras palavras, há impossibilidade de produzir endogenamente os ácidos graxos com ligações duplas a partir do carbono 9 e, por isso, estes são considerados essenciais. Os ácidos graxos nutricionalmente essenciais (AGE) são os ácidos linoléico (cis-9,12-octadecadienóico, C18:2, w-6) e o a-linolênico (cis-9,12,15-octadecatrienóico, C18:3, w-3) (DEVLIN, 2007; MURRAY, GRANNER e RODWELL, 2007). 80 Hidrogenação dos ácidos graxos insaturados A hidrogenação dos AGI pode ocorrer em ruminantes ou industrialmente. Na natureza, a hidrogenação é resultante da atividade microbiana no lúmen de animais ruminantes, em que AGMI e AGPI os quais derivam da dieta são con- La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009

Alterações estruturais e nutricionais em lipídeos submetidos a processamento químico ou aquecimento vertidos em AGT. Os produtos de origem animal, como o leite e derivados, originários de animais ruminantes, apresentam uma pequena quantidade de gorduras trans. Esses isômeros trans são formados pela biohidrogenação (MURRAY, GRANNER e RODWELL, 2007). A maior contribuição de AGT na dieta, contudo, origina-se do processo de hidrogenação industrial. No século XIX, os altos preços da manteiga estimularam a busca de substitutos da mesma. Dessa forma, um químico francês chamado Mege Monries produziu um substituto aceitável naquela época. Em 1897, os químicos franceses Sabatier e Senderens descobriram um processo utilizando níquel como catalisador para hidrogenar AGI, provenientes de óleos vegetais. A primeira aplicação industrial desse processo foi em 1903. Na década de 30, a indústria da hidrogenação teve um grande crescimento repercutindo em um alto consumo de margarina. O mesmo aconteceu no Brasil na década de 1950. Portanto, os AGS podem ser produzidos a partir dos insaturados por um processo denominado de hidrogenação catalítica ou hidrogenação industrial, em que são adicionados hidrogênios na insaturação com a catálise efetuada por um metal, como a platina ou níquel, levando a uma saturação total ou parcial do ácido graxo (Figura 5) (KUMMEROW, 2009; MARTIN, 2007). A gordura vegetal hidrogenada é encontrada em vários alimentos, tais como as margarinas vegetais, massas, recheios de biscoitos, sorvetes, chocolates, formulações de bases de sopas e cremes, produtos de panificação e produtos de fast-foods. Figura 5: Representação esquemática da hidrogenação catalítica. O objetivo do processo de hidrogenação catalítica, que ocorre somente industrialmente, é alterar as propriedades físico-químicas dos ácidos graxos originais, aumentando seu ponto de fusão (deixando-o mais consistente à temperatura ambiente) e alterando suas características organolépticas. A hidrogenação industrial também aumenta a estabilidade à oxidação lipídica (lipoperoxidação), uma vez que reduz a quantidade de duplas ligações no produto hidrogenado produzido. Em outras palavras, é aumentada a concentração de AGS e reduzida a concentração de AGI. Para que esse processo de hidrogenação ocorra, as condições reacionais não são brandas, ou seja, há necessidade de um catalisador, bem como altas pressões de hidrogênio (H ) no meio reacional e temperaturas elevadas, sendo assim a formação de AGS não pode ocorrer apenas com o aquecimento de 2 óleos em processos de fritura de alimentos (BANSAL et al., 2009, KARABULUT, KAYAHAN e YAPRAK, 2003; MARTIN, 2007). La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009 81

BOCK, Patrícia Martins; PERALTA, Joelso dos Santos As reações que ocorrem com a utilização de catalisadores químicos (não enzimáticos), levam normalmente à formação de subprodutos, o que também pode ser observado no processo de hidrogenação catalítica de AGI. Os principais subprodutos formados são AGI com configuração trans, pois a reação incompleta não permite a hidrogenação, porém ocorre a formação de um estado de transição, na presença do catalisador, onde a ligação dupla é transitoriamente rompida e rapidamente refeita. Nesse estado de transição há interação entre o catalisador, a molécula de ácido graxo e o hidrogênio adicionado. Após esse período de transição, que altera a conformação da molécula, obtém-se o ácido graxo trans a partir do ácido graxos cis (BRUICE, 2006; LI et al., 2009). A formação do isômero trans é favorecida por menor impedimento estérico, já que a presença dos substituintes volumosos da molécula em lados opostos aumenta a estabilidade da mesma. O isômero trans é na verdade um subproduto obtido na reação de hidrogenação, que objetivava a formação de AGS e não AGT (PADOVESE e MANCINI FILHO, 2002). Dependendo das condições de reações, como pressão de hidrogênio e do tipo e concentração do catalisador, o processo de hidrogenação catalítica pode ter maior ou menor formação de trans. Sendo assim, a manipulação industrial dessas variáveis é útil para diminuir a formação de trans (COULTATE, 2004; KARABULUT, KAYAHAN e YAPRAK, 2003; LI et al., 2009; MARTIN, 2007). Além disso, um processo determinado interesterificação enzimática permite a produção de lipídeos livres de isômeros trans (LI et al., 2009; MARTIN, MATSHUSHITA e SOUZA, 2004). Alterações químicas dos ácidos graxos frente ao aquecimento O preparo de alimentos fritos é bastante antigo, sendo atribuído aos Chineses. Muitas mudanças químicas podem ocorrer nos óleos durante este processo, pois a fritura ocorre em altas temperaturas e na presença de ar e água (MACHADO, GARCIA e ABRANTES, 2008). Tais mudanças são resultados de reações de oxidação, pirólise, polimerização, hidrólise e isomerização, produzindo várias substâncias que são incorporadas aos alimentos (CORSINI e JORGE, 2006; MARTIN, 2007). Entre as alterações físicas, decorrentes nas mudanças químicas, podemos citar o aumento da viscosidade, a alteração da cor, formação de espuma e desenvolvimento de sabor e aroma indesejáveis (CORSINI, 2008; CORSINI e JORGE, 2006). Dentre as alterações químicas podemos observar a interconversão entre os isômeros cis e trans, sem a presença de outros reagentes, quando a molécula recebe calor acima de 180ºC (Figura 6). A formação de AGT durante a fritura de alimentos é relacionada à temperatura do processo e ao tempo (MARTIN, 2007; MARTIN, MATSHUSHITA e SOUZA, 2004). 82 La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009

Alterações estruturais e nutricionais em lipídeos submetidos a processamento químico ou aquecimento Figura 6: Interconversão de isômeros cis e trans. Como, por impedimento estérico, o isômero trans é mais estável, a formação do mesmo é favorecida (PADOVESE e MANCINI FILHO, 2002). Dessa forma, em preparações de alimentos imersos em óleo, em que a temperatura alcance 180ºC, teremos a formação de isômeros trans a partir do cis (BRUICE, 2006; ROMERO, CUESTA e SÁNCHEZ-MUNIZ, 2000; SANIBAL e MANCINI FILHO, 2004). SANIBAL e MANCINI FILHO (2004) observaram que o aquecimento do óleo de soja a 180ºC por tempos crescentes (10, 20, 30, 40 e 50 min) promoveu um aumento da concentração de ácidos graxos trans (AGT) monoinsaturados de 0%, antes do início da fritura até 14,27% ao final dos 50 min. Porém, em outros estudos tem sido demonstrado que até mesmo em 150ºC há formação de AGT, e quanto maior é a temperatura, maior a formação de AGT (MARTIN, 2004). De acordo com Bansal et al. (2009), não somente a fritura de alimentos imersos em óleo aumenta a formação de AGT, mas também o aquecimento do óleo sem a presença do alimento. Diversos alimentos fritos comercializados possuem a alegação de zero de gordura trans. A legislação brasileira sobre o assunto indica que quando o conteúdo de gordura trans for menor ou igual a 0,2 g/porção, a informação nutricional será expressa como zero ou não contém (BRASIL, 2003). Porém, a um grande número de infrações registradas na Agência Nacional de Vigilância Sanitária (Anvisa) correspondentes a informações inadequadas nos rótulos de alimentos (DIAS e GONÇALVES, 2009). Observa-se também que alimentos com alegação de zero de gordura trans, quando analisados quimicamente, possuem gordura trans, porém respeitam a legislação brasileira (GAGLIARDI, MANCINI FILHO e SANTOS, 2009). Mesmo alimentos provenientes de redes de fast-foods, como McDonalds, não são isentos de gordura trans, apenas a contém nas quantidades permitidas pela legislação para alegação de zero trans (KATAN, 2006). Uma estratégia utilizada por grandes redes é a utilização de gordura parcialmente hidrogenada para o processo de fritura, o que diminui a quantidade de AGT no produto final (MARTIN, 2007). Considerando a discussão sobre os efeitos maléficos dos AGT, a Organização Mundial de Saúde (OMS) estipula que o consumo diário de AGT deve ser igual ou inferior a 1% do valor energético total (VET), ficando em cerca de 2,0 g/dia para um indivíduo adulto submetido a uma dieta com 2000 kcal diárias (WHO, 2009). Uma outra alteração química encontrada em óleo submetido ao aquecimento é a oxidação de lipídeos, através de um processo conhecido como peroxidação lipídica ou lipoperoxidação (LPO). Esse é um processo oxidativo que ocorre quando o oxigênio reage com os ácidos graxos presentes, preferencialmente os AGI (CORSINI e JORGE, 2006). La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009 83

BOCK, Patrícia Martins; PERALTA, Joelso dos Santos Durante o processo de aquecimento dos óleos para fritura de alimentos ocorre a formação de espécies reativas do oxigênio (ERO), o que acelera a LPO (Figura 7). As ERO reagem com os ácidos graxos, preferencialmente com os insaturados, já que os saturados são mais estáveis frente à abstração de elétrons. O radical livre ataca um ácido graxo formando um radical livre centrado no carbono e este elétron não pareado pode migrar, levando à formação de ligações duplas trans (COULTATE, 2004). Esse radical centrado no carbono, leva ao consumo de oxigênio e consequente formação de radical peroxil (ROO ). Esse radical também é altamente instável, podendo abstrair um hidrogênio de outro lipídeo adjacente, o que leva a formação de peróxidos orgânicos ou hidroperóxidos lipídicos (LOOH), o que corresponde ao processo de propagação. O LOOH sofre rearranjo espontaneamente, dando origem a aldeídos, que são tóxicos e podem ter ação mutagênica (BOCK e PERALTA, 2006; HALLIWELL & GUTTERIDGE, 1999; LIMA, CARATIN e SOLIS, 2002). Figura 7: Representação esquemática da lipoperoxidação. 84 O processo de LPO, bem como outros processos químicos, leva a uma degradação dos AGI, dando origem a aldeídos e produtos de polimerização que acarretam a formação de espuma e aumento da viscosidade (COULTATE, 2004). Essa degradação pode estar relacionada com o aumento na proporção de AGS observados nos processo de fritura, já que a concentração dos mesmos não se altera no processo de fritura (CORSINI et al., 2008; MACHADO, GARCIA e ABRANTES, 2008). La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009

Alterações estruturais e nutricionais em lipídeos submetidos a processamento químico ou aquecimento Óleo de soja, devido ao seu alto conteúdo de ácido linolênico, que é altamente lábil, é bastante susceptível a oxidação (COULTATE, 2004). Considerações finais O aquecimento de óleos vegetais para fritura (180ºC), bem como a hidrogenação industrial, conduz a formação de isômeros trans a partir do cis, favorecida pela estabilidade adquirida da molécula com seus substituintes volumosos em lados opostos. O processo de aquecimento para fritura também favorece o processo oxidativo dos AGI (lipoperoxidação), o que poderia aumentar a proporção de AGS em virtude de uma menor proporção de AGI. Devemos perceber que o aumento de proporção de AGS não significa que eles estão sendo formados em um processo de fritura, mas, sim, que concomitantemente foi diminuído a percentual do AGI devido aos processos de degradação destes óleos. Nesse sentido, o termo saturado, que é algumas vezes interpretado de maneira equivocada, já que se refere às ligações simples entre os carbonos de um ácido graxo, portanto, formando um ácido graxo saturado. Todavia, o termo saturado, no sentido de farto, cheio ou repleto, poderia ser usado para indicar que um óleo vegetal, submetido ao aquecimento, está repleto de produtos de peroxidação lipídica. Referências BANSAL, G. et al. Analysis of trans fatty acids in deep frying oils by three different approaches. Food Chemistry 116: 535-541, 2009. BOCK, P. M.; PERALTA, J. S. Radicais livres e antioxidantes. Ciência em Movimento 1: 53-60, 2006. BRASIL. RDC n. 360/2003. Regulamento Técnico sobre Rotulagem Nutricional de Alimentos Embalados. Diário Oficial da República Federativa do Brasil, Brasília, DF, 2003. BRUICE, P. Y. Química Orgânica. 4. ed. São Paulo: Pearson Prentice Hall, 2006. CHAMPE, P. C.; HARVEY, R. A.; FERRIER. D. R. Bioquímica ilustrada. Porto Alegre: ArtMed, 2006. CORSINI, M. S. et al. Perfil de ácidos graxos e avaliação da alteração em óleos de fritura. Quim. Nova, Vol.31, No.5, 956-961, 2008. CORSINI, M. S.; JORGE, N. Estabilidade oxidativa de óleos vegetais utilizados em frituras de mandioca palito congelada. Ciência e Tecnologia de Alimentos, 26(1): 27-32, 2006. COULTATE, T. P. Alimentos: a química de seus componentes. 3. ed. Porto Alegre: ArtMed, 2004. DEVLIN, T. M. Manual de Bioquímica com correlações clínicas. 6. ed. São Paulo: Editora Blücher, 2007. DIAS, J. R.; GONÇALVES, E. C. B. A. Avaliação do consumo e análise da rotulagem nutricional de alimentos com alto teor de ácidos graxos trans. Ciência e Tecnologia de Alimentos, Campinas 29(1): 177-182, 2009. La Salle - Revista de Educação, Ciência e Cultura v. 14 n. 2 jul./dez. 2009 85

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