ENTREVISTA Concedida por e- mail, em 31 de Outubro de 2013
Foto: Guilherme Pupo Rogério Pereira Nasceu em Galvão (SC), em 1973. É jornalista, editor e escritor. Em 2000, fundou em Curitiba o jornal Rascunho uma das raras publicações sobre literatura no Brasil. É idealizador do Paiol Literário, projeto que já recebeu cerca de 60 grandes nomes da literatura brasileira para debates literários na capital paranaense. Realiza curadorias para bienais do livro, além de projetos culturais. Desde janeiro de 2011, é diretor da Biblioteca Pública do Paraná, onde coordena o Plano Estadual do Livro, Leitura e Literatura; o Sistema de Bibliotecas Públicas Municipais do Paraná e o Núcleo de Edições da Secretaria da Cultura. É editor e escreve crônicas semanais para o site Vida Breve (www.vidabreve.com.br). Em novembro de 2013, lança seu primeiro romance: Na escuridão, amanhã, pela editora Cosac Naify. Vive em Curitiba (PR).
Conte- nos um pouco sobre a sua formação e percurso intelectual. Nasci na roça, no meio do ano, num grotão de Santa Catarina. Vim ao mundo pelas mãos de uma parteira. Três dias se debatendo nas entranhas da mãe. Numa noite de tempestade, fui expulso do corpo que habitava. Saí da roça com 6 anos. Fui a Curitiba sobreviver com meus pais, que pouco foram à escola. Os livros nunca fizeram parte de nossas vidas. Sempre fomos uma família ágrafa a literatura era apenas um fantasma que desconhecíamos, que não nos assustava. Fui à escola pública, levando no primeiro dia de aula um lápis, uma borracha e um caderno dentro de um pacote de arroz de cinco quilos. Comecei a trabalhar aos 10 anos, juntamente com meus irmãos. Segui na escola. Cheguei à universidade de filosofia, depois à de jornalismo. Entrei em jornal aos 14 anos porque minha mãe era empregada doméstica na casa do diretor da Gazeta Mercantil, em Curitiba. No jornal e na escola, decidi que iria ser um leitor. Após a faculdade de jornalismo, concluída em 1997, fui à Espanha fazer pós- graduação. Na volta, em 2000, fundei o Rascunho. Agora, estou aqui respondendo esta entrevista. O que motivou o surgimento, como e quando do Rascunho? A vingança me impulsiona a seguir com a literatura. Quero vingar todos os segundos que meus pais não passaram na escola. Não pensava nisso quando criei o Rascunho. Mas é isto: o que me leva a seguir com o jornal é a vingança num país de analfabetos e banguelas. Minha mãe era banguela. Agora, é defunto. Mas queria fazer um suplemento literário amplo, plural, democrático, com textos e entrevistas longos. O Rascunho surgiu da vontade de fazer algo relevante, importante, que desse um sentido à maneira como eu encaro a leitura. Assim, surgiu o Rascunho, em 8 de abril de 2000: um grupo de amigos que desejava fazer algo pela literatura. Descreva a procura e alcance do Rascunho impresso. O Rascunho tem um alcance muito grande de público. Hoje, temos cerca de 10 mil leitores em todo o país na versão impressa. Em nosso site, são mais 30 mil todos os meses. Isso me parece espantoso, absurdo. O que mudou no panorama da literatura brasileira neste período? Mudou quase tudo. Houve um crescimento expressivo do mercado editorial, com a chegada de grandes grupos editoriais, graças às crescentes compras governamentais. Os eventos literários impulsionados pela Flip ganharam todo o país. A internet facilitou o surgimento e a divulgação de muitos autores. Vivemos, acredito, um momento muito mais propício à leitura/literatura do que no início do século. No entanto, estamos muito longe de um mínimo ideal. Falta muito, muitíssimo. O Rascunho está neste meio, tentando colaborar de alguma maneira. É muito importante que fortaleçamos o valor social da leitura. Com o definhamento dos cadernos culturais nos jornais de grande circulação, o Rascunho resiste como um jornal dedicado exclusivamente à literatura. Como manter um jornal como esse vivo? A teimosia me move. Sou como um burro velho diante do precipício. Dou sempre um jeito de atravessá- lo. Se não mantiver o Rascunho, me parece que a vida perde um bocado de sentido. Como vou morrer aos 85 anos, ainda tenho de buscar algo para fazer nos próximos 45 anos. Acho que vou continuar com o Rascunho. Pararei quando a artrose, o reumatismo ou o câncer me alcançarem. Mas hoje o Rascunho é mantido graças ao empenho de todos os colaboradores. Temos cerca de 50 colaboradores (escritores, jornalistas, editores, ilustradores) a cada edição. Ninguém recebe para colaborar com o jornal. O Rascunho é um hospício com abnegados loucos à espreita. Para todos os demais custos (impressão, distribuição, escritório, etc.), dou um jeito de conseguir dinheiro. Minha próxima ação será assaltar uma agência do Banco do Brasil, que se o.
Em uma entrevista concedida a Antônio Abujamra, no programa Provocações, da TV Cultura, você comentou brevemente que o Jornal já enfrentou algumas polêmicas com escritores, principalmente no início. Você poderia nos dar algum exemplo? Prefiro não falar disso. Não que me arrependa destas polêmicas. Muito pelo contrário. Mas fazem parte da história do Rascunho. Sempre fizeram e vão continuar fazendo. Recentemente, demos viúvas do Leminski e são muitas, além da midiática Alice Ruiz saíram da cova para atacar o Rascunho. Achei ótimo. O Rascunho não é um jornal de compadres, não é um jornal de amiguinhos. Somos um jornal literário com opinião, um espaço para o debate, para a batalha, para a briga, para a porrada. Quem não gostar disso, pode ir ler o gibi da Mônica. Promover a polêmica é uma condição para a crítica literária? Óbvio. A polêmica faz parte da crítica. Ponto final. Como você vê o lugar da crítica literária, hoje? Está recolhida no reduto universitário? Resiste em publicações como o Rascunho? Está ocupando espaços significativos na internet? Tem muita crítica literária por aí. Boa e ruim. No Rascunho, há muita coisa boa e muita bobagem. Na universidade também. Há doutores geniais. E doutores bestiais. Ser genial e idiota é condição humana. A internet terra de ninguém é hoje o espaço mais generoso para a crítica literária. O jornal impresso é quase um bibelô de uma vovó saudosista. A crítica universitária (com algumas boas exceções) segue encastelada em seus departamentos acadêmicos, com sua linguagem intransponível aos mortais do outro lado muro. Então, a internet ganhou força, muita força. Há de tudo: do genial ao idiota, com grande vantagem para o idiota. A seleção natural acontece aos poucos. Tornou- se lugar- comum a ideia de que, hoje, com o acesso à tecnologia, qualquer um pode se tornar um escritor e divulgar o seu trabalho, não dependendo mais das grandes casas editoriais. O mesmo poderia ser dito sobre a crítica literária: com poucos veículos na imprensa tradicional, o crítico migraria para o território livre da internet. Nesse contexto, a figura do editor está em crise? Adora- se a palavra crise. A crise do romance. A crise da leitura. A crise da literatura. A crise do meu ciático. Etc. Não acho que a figura do editor esteja em crise. E se está não vejo problema. Veja, mesmo na internet, há um editor. Quem é o editor? O leitor. Você pode publicar qualquer coisa num blog e ninguém ler. Não é porque a publicação e a divulgação são fáceis que se vai ter milhões de leitores. A maioria das coisas publicadas na internet tem baixíssimo índice de leitura. E vamos combinar: somos uma seita de poucos leitores sobre literatura. Nem mesmo os estudantes de Letras se interessam por crítica literária. Na verdade, acho que os estudantes de Letras não se interessam por literatura. Mas esta é outra conversa. Que critérios norteiam a composição do corpo de colaboradores do Jornal? O Rascunho tem 20 critérios editoriais que precisam ser seguidos à risca pelos colaboradores. Busco sempre manter uma boa diversidade de vozes entre os colaboradores. Temos desde o jornalista (às vezes, apenas impressionista), passando pelo jovem acadêmico, até nomes consagrados. Somos uma miscelânea de animais num zoológico de poucos visitantes. Mas fazemos muito barulho. O importante é que as portas estejam sempre abertas a novas espécies de animais. Mas é imprescindível que saibam ler e escrever. Que critérios norteiam a seleção e organização da pauta? Os colaboradores possuem liberdade de escolha dos livros que comentam, ou há uma seleção predeterminada? É bastante simples. Todos os livros que chegam à redação são avaliados levando em consideração a linha editorial do Rascunho. Em seguida, estes livros são incluídos numa lista de pauta. Hoje, são quase 2 mil livros à espera. Os livros ficam na lista por até dois anos. Todos os meses, os
colaboradores recebem a relação de livros na pauta. Cada um precisa escolher pelos menos dez opções para escrever sobre. Após as escolhas, eu defino qual será a pauta de cada colaborador. Além disso, eu indico livros que precisam ser resenhados, autores para entrevistas. Pauto ensaios. Também recebemos algumas sugestões de pauta. Ao final, é uma grande conversa entre todos para que a cada mês tenhamos uma nova edição. Sua carreira como cronista é prolífica. O trabalho do escritor influencia na atuação do editor? É verdade que você tem um romance pronto? O trabalho de editor e o de escritor são bem distintos. Quando estou editando o Rascunho, sou jornalista. Quando escrevo a minha ficção, sou um louco. Às vezes, as coisas se confundem. Considero os dois trabalhos importantes para mim. Têm valor para mim. É possível que não tenham para os outros. Mas sigo fazendo: edito o Rascunho e escrevo minha ficção. Agora em novembro, estreio na ficção com a novela Na escuridão, amanhã, pela Cosac Naify. Trabalhei neste livro durante mais de 10 anos. É um livro do século passado. Agora, é esperar para ver o que acontece. Possivelmente, não acontecerá nada. Você é um entusiasta da literatura brasileira contemporânea? Como vê a cena atual? Sou um entusiasta da literatura, independentemente de ser brasileira ou paquistanesa. Acredito na força da literatura na transformação do indivíduo. A literatura brasileira contemporânea passa por um ótimo momento. Há escritores de muita qualidade. Poderia citar pelo menos vinte bons autores brasileiros. A literatura brasileira é tão rica quanto a americana, a inglesa, a francesa, etc. Há uma quantidade imensa de bons autores. E de ruins também. Mas os maus autores são importantes para iluminar os bons. Em um debate promovido pelo Instituto Moreira Salles, o prof. Alcir Pécora afirmou que a literatura contemporânea está dominada pelas r Concordo em parte com a afirmação do Pécora, que é um sujeito que poderia ser editor do Rascunho: ele gosta de uma boa confusão. As relações de compadrio são muito fortes na literatura brasileira. Muitos autores parecem cães no cio se lambendo o tempo todo. Ficam se elogiando, propagando a genialidade um do outro, etc. É um enlace bestial. Mas o importante é que isso, na verdade, não tem nada a ver com literatura. Não é o compadrio que vai transformar um escritor ruim num grande autor. Ele pode ganhar dinheiro, ser convidado para vários eventos, etc., mas continuará sendo um escritor medíocre. O leitor sabe disso. Se não sabe, ficará sabendo um dia. O mentiroso sobrevive até o dia em que o caixão envolver todos os seus ossos. Em 2008, o escritor João Paulo Cuenca foi entrevistado do projeto Paiol Literário. Ele comentou que muita gente busca um caráter utilitário na literatura, como que buscando ensinamentos concorda com a afirmação? a comprar uma geladeira nova. No meu, também. Acho que esta ideia da inutilidade da literatura é um lugar- comum bastante forte. Eu também o papagueio por aí. Mas me parece um posicionamento político. A literatura tem um sentido muito grande individualmente. A importância da literatura é individual. Para alguns, pode não servir para nada. Para mim, serve para algo muito importante. A literatura possuiu ou possui uma função social? Claro. Passar o tempo, esperar a morte. Qual a função social da novela de tevê? Tudo tem uma função social. Absolutamente, tudo. O indivíduo é quem dá a função social à determinada coisa. Muitas vezes, sob forte influência, é claro. Se a literatura transforma o indivíduo (e acredito nisso), e o indivíduo só consegue viver em sociedade, então...
Como tem sido sua experiência como diretor da Biblioteca Pública do Paraná? Gratificante. Frustrante. Animadora. Deprimente. Feliz. Trabalhar no serviço público é ser bipolar o tempo todo. Não há rivotril que dê jeito. É uma inconstância terrível. É possível fazer grandes projetos, realizar coisas importantes para o cidadão. Mas no serviço público encaramos o demônio o tempo todo, vislumbramos Deus raramente, enquanto um caixão florido nos espera lá na frente. Nunca sabemos no que vai dar. Mas seguimos adiante. Dizem que no meio do caminho ainda existe o purgatório. Que relação você vê da atuação de um profissional com formação específica em Letras com a Literatura? Não acompanho muito a formação em Letras nas universidades brasileiras. Nos encontros, nas palestras, noto (e isso pode ser uma impressão muito equivocada) que o curso de Letras tem muito pouco a ver com literatura. Os alunos conhecem muito pouco de literatura, não se interessam em conhecer. A literatura brasileira contemporânea, por exemplo, é um ET que ainda não aterrissou nos cursos de Letras. Mas talvez eu esteja muito equivocado. Espero que sim.