O sentimento de ausência entre migrantes internos e internacionais ADRIANA CAPUANO DE OLIVEIRA MARILDA APARECIDA DE MENEZES 1. Introdução: Os migrantes, o deslocar-se de sua terra natal rumo a uma cidade, estado ou país desconhecido, ou conhecido através de narrativas de terceiros escutadas desde a infância, provoca em todos os que se aventuram a tal empreitada o sentimento de abandono de suas referências enquanto ser que se entende pertencendo a um espaço e a uma coletividade conhecidas. Esse sentimento é partilhado tanto por aqueles que se deslocam dentro de fronteiras nacionais as chamadas migrações internas quanto por aqueles que se deslocam por fronteiras entre países diferentes as chamadas migrações internacionais. É certo que cada uma dessas dimensões de deslocamento trazem consigo características próprias, como a diferença de língua e status de cidadania, no caso das migrações internacionais, o que não ocorre com as migrações internas (salvo casos excepcionais de países multi-língues). Por outro lado, entretanto, ambas as formas de partir evocam sentimentos de abandono e perda, culpa e solidão (SAYAD, 1998) que conversam profundamente entre si. Essa é precisamente a proposta desse artigo, o diálogo necessário entre essas duas dimensões das migrações, a partir de relatos e análises de história oral de pesquisas feitas por duas professoras que dedicam-se há anos em suas pesquisas de campo com migrantes e e/imigrantes, brasileiros que se veem obrigados a deixarem seus espaços de pertencimento rumo a outros estados ou nações, naquilo que os aproxima e não os difere: o sentimento de ausência. Migrantes paraibanos que saem de seus lares em busca de uma vida melhor no estado de São Paulo, precisamente nas cidades da região metropolitana de São Paulo (ABC e Campinas) e brasileiros das mais diversas regiões do país que abandonam seus lares em busca Adriana Capuano de Oliveira é Doutora em Ciências Sociais pela Universidade Estadual de Campinas (UNICAMP) e atualmente Professora Adjunto da Universidade Federal do ABC (UFABC). É coordenadora do Grupo de Estudos e Pesquisa em Migrações Internacionais (MIGREPI). Marilda Aparecida de Menezes é professora aposentada da Universidade Federal de Campina Grande, Professora Visitante Nacional Sênior (CAPES/PVNS) da Universidade Federal do ABC e Pesquisadora do CNPq, nível 1D.
2 de uma vida melhor mundo afora, especificamente em dois países aqui tomados como lócus de pesquisa, Japão e Estados Unidos, dois dos destinos mais procurados por brasileiros para a emigração. A proposta desse artigo é compreender como esse sentimento de ausência é construído nas narrativas dos migrantes. A relação entre o ato de narrar e a construção de identidades é analisada por Silva e Menezes (1999) em um artigo sobre as narrativas dos migrantes temporários. As autoras se fundamentam em Walter Benjamin (1987), que compara a arte de narrar à arte do trabalho artesanal, em que não há separação entre produtor e produto do trabalho. A narrativa diz respeito às mãos, aos olhos e à alma. Por isso, é um texto em que se imprime as percepções e os sentimentos. O indivíduo ao narrar sobre sua vida está construindo uma imagem para si mesmo e para os outros, que pode ser a família, o pesquisador ou outros de suas redes de relações. Narrar é mobilizar símbolos identitários. Além de se expressar através da narrativa, o sentimento de ausência pode, também, se revelar, pelos não-ditos, pelos silêncios. Perceber o silêncio sobre o passado ou sobre certas experiências da trajetória migratória pode não expressar esquecimento, mas formas de lidar com experiências ambíguas, conflituosas e, muitas vezes, traumáticas (Pollak, 1992; Menezes, 2005). As lembranças escondidas no silêncio são protegidas por estruturas de comunicações informais, que a sociedade englobante não percebe. Também o fato de não encontrar escuta, ser exposto a mal-entendidos, contribuem para o não-dito e para o esquecimento. 2. Estar ausente em seu próprio país: as migrações internas O sentimento de ausência acompanha toda a trajetória do migrante e de sua família, mesmo que, em termos demográficos, do seu ciclo de vida ou da sua trajetória familiar, possa ser definido como um migrante definitivo. O sentimento de ausência, muitas vezes, expressase na representação dos lugares onde moram os indivíduos como de transição, provisórios, como é o caso da categoria barraco, utilizada pelos migrantes paraibanos para nomearem as casas ou, também, as chamadas pensões, os alojamentos da área canavieira, enquanto que para suas moradias, na Paraíba, usam a categoria casa (COVER, 2011).
3 Em um texto anterior (Menezes, 2012), analisamos como o sentimento de ausência emerge nas narrativas dos migrantes paraibanos que residem, com suas famílias, na região canavieira do estado de São Paulo. Analisamos o caso de Dona Maria e seu esposo, Sr. Lázaro, originários do município de São José de Caiana, Sertão Paraibano, migraram em 1993 para o interior e São Paulo e residiam no município de Engenheiro Coelho, região de Campinas, estado de São Paulo no momento da entrevista, em 2007. Na sua narrativa, são explicitadas as noções de nosso lugar e terra dos outros e a representação de São Paulo como um lugar de transição: D. Maria: o problema do nosso lugar é emprego. Eu não acostumo a falar que aqui é meu lugar, eu não esqueço de lá. Sr.Lázaro: a gente volta, porque aqui é pra jovem, a tendência é um dia voltar. Maria: eu não tenho vontade de voltar. D. Maria: o nosso lugar é bom de morar, algum recurso que vai para os pobres, as pessoas que tem poder tira e a maioria das pessoas tem que sair. Se tivesse umas pessoas que soubesse governar, não precisava nós sair. Sr. Lázaro: eu penso em voltar aqui não é terra minha, é dos outros. Marilda: Do que sente saudades? Sr. Lázaro: Ah. (enfático), eu sinto saudades de muita coisa, da família, da liberdade, aqui não tem liberdade, aqui na semana que não trabalha, a coisa fica mais difícil. Sr. Lázaro: eu falo para meus conterrâneos, aqui é terra dos outros, não é terra da gente. O sentimento de ausência poderia explicar certa idealização do nosso lugar em oposição à terra dos outros, visão que é mais evidenciada na narrativa de Sr. Lázaro. No entanto, a narrativa também revela que a experiência como migrantes de viver entre espaços sociais e tempos diferenciados, também os constituem como sujeitos que vivenciam as tensões, ambiguidades das experiências de trabalho e vida. Logo, se há certa idealização do
nosso lugar, há, também, um posicionamento crítico às formas de dominação do nosso lugar e da terra dos outros. O sentimento de ausência como constituinte da experiência do migrante é também central na perspectiva teórica e metodológica de Abdelmalek Sayad, que associa esse sentimento ao desejo de retorno. O retorno é naturalmente o desejo e o sonho de todos os imigrantes, é como recuperar a visão, a luz que falta ao cego, mas, como cego, eles sabem que esta é uma operação impossível. Só lhes resta, então, refugiarem-se numa intranqüila nostalgia ou saudade da terra [...]. A noção do retorno estaria no centro do que pode ser ou do que desejaria ser uma antropologia total do ato de emigrar e de imigrar: antropologia social, cultural, política, na qual se introduz eficazmente a lembrança da dimensão universal do fenômeno migratório (SAYAD, 2000, p.11-12). 4 A noção de retorno em Sayad expressa as ambiguidades, contradições e tensões entre as condições objetivas definidas pelas estruturas socioeconômicas e os sonhos, desejos, expectativas dos migrantes. Assim, embora as condições objetivas não lhes permitam retornar à sua terra natal, o desejo de retornar mantém-se vivo como um sinal da esperança, de dias melhores, de estar próximo a parentes, vizinhos e amigos que estão fisicamente distantes. O desejo de retornar é um alimento para suas almas. Assim, os migrantes vivem o drama do ausente que está presente e do presente que está ausente: Esse é um dos numerosos paradoxos da imigração: ausente onde está presente e presente onde está ausente. Duplamente presente efetivamente aqui e ficticiamente lá e duplamente ausente ficticiamente aqui e efetivamente lá o imigrante teria uma vida dupla, que ultrapassa e que é diversa da oposição tradicional entre vida pública e vida íntima: uma vida presente, banal, cotidiana, vida que pesa e enreda, vida segunda, ao mesmo tempo cronológica e essencialmente secundária; uma vida ausente, figurada ou imaginada, rememorada, uma vida que foi primeira cronologicamente e que permaneceu primeira, essencial, afetiva e efetivamente, e que, sem dúvida, voltará a sê-lo um dia (SAYAD, 2000, p.20). Esse drama do migrante que se sente ausente onde está presente e presente onde está ausente é vivenciado não só ficticiamente, mas, também se revela nas próprias estratégias dos migrantes de estar entre lugares. Tal é o caso do Sr.Adelino, que migrouna década de 1970 e retornou para o seu município de origem, São José de Piranhas, Estado da Paraíba.
Sr.Adelino nasceu em 30 de janeiro de 1952, sua família era agricultora, mas náo tinha terra, trabalhavam como meeiros, que é um relação de trabalho em que o trabalhador divide ao meio com o patrão e dono da terra a produção agrícola. Em 1973, seguindo a trajetória da maioria dos jovens daquela região migraram para o municipio de São Caetano do sul, São Paulo. Entrevistamos Sr.Adelino em março de 2014 no seu municipio de Sáo José de Piranhas, onde estava residindo naquele momento. O sentimento de ausência não é narrado em linguagem direta, explicita, mas está presente nas suas representações sobre o nordeste, sobre a vida em São Paulo e na estratégia de ter retornado para o município de origem, mas mantendo a sua casa, móveis e outros símbolos de pertencimento em Santo André. No momento que relatou a sua migração para Sào Paulo, ele elabora imagens sobre o nordeste: O nordeste ele é muito bom, ele é muito humilde, muito carinhoso, caprichoso(...) quando eu fui, já fui com o pensamento de arrumar alguma coisa e voltar (...)Não! A ideia de ir pra lá, era trabalhar pra viver uma vida melhor, foi essa a minha ideia e quando eu construi uma casa lá, eu me aposentei, ai eu falei: agora eu volto para minha terra! Meu salário já dá para me comer aqui e em qualquer lugar, certo? Essa era a vontade, saudade eu fiquei 24 anos sem vir aqui. 24 anos mais a saudade tinha todo dia! Todo dia chegava um parente sentia saudade, via um parente sentia saudade, mais quando eu pensei... quando eu me aposentei (...) já pensei eu digo: Agora eu volto pro nordeste, ai minha esposa teve que fazer uma cirurgia não pode vir, ai fui trabalhar em transporte escolar, meus filhos estava estudando, quando terminaram em 2008 eu falei: Agora eu vou! Não deu certo! Quando foi em 2009 ai deu certo! Agora estou indo vocês ficam ai, vão viver a vida de vocês que eu vou viver a minha no nordeste 5 O desejo de retornar acompanhou a trajetória de Sr.Adelino desde o momento que partiu e se concretizou quando as condições objetivas de vida o permitiram, ou sejam, após a aposentadoria e os filhos serem independentes. Ele tem um filho com 27 anos já casado e uma filha com 29 anos solteira. Observamos na narrativa que o sentimento de ausência está expresso na frequência e intensidade em que a palavra saudade é utilizada, no fragmento ela aparece quatro vezes. A saudade é uma palavra da língua portuguesa incorporada a
6 linguagem brasileira, que define um estado d`alma e um sentimento de dor, de angústia, de nostalgia provocado pela distância, pela ausência, pelo desejo de estar num outro tempo e lugar (Oliveira, 1997:8) Sr.Adelino vivenciou as ambiguidades da migração durante sua trajetória. Ou seja, nos termos de Sayad (2000), ele teve uma vida dupla, esteve presente em um lugar e ficticiamente em outro, ausente onde está presente e presente onde está ausente. Após 26 anos em São Paulo, ele construiu uma casa na área urbana de São José de Piranhas, local onde nasceu, e retornou com sua esposa. Quando perguntamos como ele se sentia após cinco anos morando em São José de Piranhas, ele construiu uma imagem idealizada desse lugar contrastando com São Paulo. Eu, pra mim, já me sinto mais não tão seguro, mais já me sinto tranquilo, um pouco já me sinto mais tranquilo, eu hoje se eu disser à você eu vou pra São Paulo ficar 15 dias, 20 dias, um mês, chegar já começo me estressar. Já muda! Só em descer do aeroporto, ou ir de carro, quando entra São Paulo demora 3, 4 horas pra andar como daqui em Souza você já começa a se estorcer (rsrs). Isso ai existe, você vê o cara batendo no seu lado, vê o cara assaltar na frente, então, aqui eu me sinto mais seguro! Eu estou me sentindo mais seguro, graças à Deus, estou começando a dizer que aqui é melhor do que lá, assim, pra quem já tenha condição de chegar aqui e ter um pão pra comer. Porque se vier no plano de ganhar alguma coisa não tem não! Aqui não existe emprego! Aqui existe bom amizade, bom companheirismo é... bom papo, mais salário, não! Não conte com salário que aqui não existe. Aqui nós não temos salário! Aqui nós temos tudo, menos salário! Aqui não tem emprego pra jovem Na narrativa sobre São Paulo enfatiza aspectos negativos, como a violência, mas, também, o valoriza por ter emprego e oferecer condições para melhorar de vida quem é bom trabalhador. Ao narrar sobre o aqui, referenciando-se ao seu lugar de moradia atual, enfatiza que é o lugar da boa amizade e companheirismo, reafirmando uma narrativa idealizada de um lugar onde reina a harmonia social e elos sociais de proximidade entre parentes, vizinhos e amigos. Sintetiza a idealização com a frase: Aqui nós temos tudo, menos salário. A
invisibilização das dificuldades, carências do lugar ou dos conflitos, decepções e expectativas frustadas no relacionamento com as pessoas de suas redes pode ser compreendida como uma estratégia narrativa para legitimar não apenas a decisão de retornar mas justificar a permanência nesse lugar. Essa idealização do lugar de origem é recorrente nas narrativas de migrantes nacionais e internacionais, como mostra o estudo de Oliveira : No caso dos emigrantes brasileiros, a experiência na América também é dramática, à medida que se depara com outros padrões de comportamento, com a frieza americana", os valores diferentes, outras condições de trabalho e moradia - morar em apartamentos com várias pessoas, trabalhar lavando pratos, engraxando sapatos, cuidando de crianças, serviços que não fariam no Brasil, sem tempo para descanso, pois são 12 a 15horas de trabalho por dia, é também traumático. Este desencanto contribuirá para transformar a terra natal em utopia - a saudade é o sentimento que permeará os dias do emigrante valadarense e tornando-se quase um lamento que acompanha cada dia, transformando-se em desejo de voltar ao Brasil (Oliveira, 1997:7) 7 Se o retorno de Sr.Adelino é definitivo é difícil de prever, mas a ambiguidade de ser migrante permanece. A narrativa, enquanto um texto de construção para si mesmo e para o outro, no caso, os entrevistadores, expressa a construção simbólica do sentimento de presença a esse aqui. Ao tecer essa representação, está reafirmando o sentimento de presença e tentando controlar e se distanciar do sentimento de ausência. Embora, na representação sobre São Paulo, sobressaem-se aspectos negativos, ele mantem sua casa em Santo André e três vezes ano vai passear e rever seus filhos e netos.. Meu filho é casado, a filha não! A filha esteve aqui a semana passada, todos os dois vivem lá, os dois vive tranquilo, tem o emprego dele, eu vou duas, três vezes por ano passear lá, eu agora tenho tempo de passear (...) Agora tenho tempo de passear, eu não tinha, eu trabalhei 37 anos, 30 anos dentro de empresa e 7 anos com transporte escolar, eu perdi a hora uma vez pra chegar no emprego, perdi a hora cheguei atrasado uma vez. Não explicita em sua narrativa o desejo de algum dia retornar à Santo André, mas ter uma casa é ter um lugar ao sol e viabilizar o retorno. Enquanto vai tecendo a narrativa de estar presente em São José de Piranhas, o lugar que representa o ausente torna-se presente
8 em suas idas três vezes para passear, verbo que expressa ir a um lugar por divertimento, por um tempo transitório e se opõe a trabalho, que expressa disciplina, obrigação, fixação em um lugar e tempo determinado. Mas, na vivência de sua ambiguidade enquanto migrante, passear também se revela como uma expressão de não pertencimento àquele lugar. 3. Estar ausente longe de seu país: as migrações internacionais Como dito brevemente no início desse artigo, algumas diferenças são essenciais entre as migrações internas e as internacionais. A principal delas, para os propósitos que nos interessam aqui, versa sobre a travessia de fronteiras entre os Estados nacionais que formam o sistema internacional vigente, ainda alicerçado pelas leis de Westifália. Cruzar tais fronteiras entre países, Estados nação, implica, além das questões de regulamentação do processo migratório documentação, permissão de acordo com as legislações dos países receptores, ou a ausência dessa permissão/documentação atravessar, não raras vezes, culturas e línguas muito distantes da de nossa localidade de nascimento. Esse tem sido o caso de boa parte dos brasileiros que emigram rumo a países tais como Estados Unidos, Japão, Alemanha, Reino Unido, e mesmo Itália e Espanha. Portugal, embora garanta a facilidade e o acesso da língua em comum, não deixa isento o sentimento de desbravar os símbolos e códigos de uma nova cultura que, embora semelhante a nossa, muito específica em diversos aspectos. Mas, para os propósitos desse artigo, não nos cabe ressaltar as diferenças entre ambas as migrações (internas e internacionais) senão as semelhanças. Dentre um das mais representativas semelhanças está o sentimento de ausência que perpassa o emigrante. Estar vivendo entre dois mundos, sentimento muito comum entre aqueles que se aventuram a atravessar fronteiras, pode nos dar uma primeira sensação ilusória de que temos o mundo aos nossos pés. A princípio, a sensação de ausência não é invasiva. Tudo é descoberta. Com o passar do tempo e o desenrolar do processo emigratório, um sentimento contraditório parece
9 emergir no cotidiano desses emigrados. Embora o tempo os coloque em contato de maior conhecimento e esclarecimento de como funciona e como se comportar na sociedade receptora, o que implica em uma maior condição de integração desse emigrante ao seu local de destino, o sentimento de ausência se instala com maior frequência e força. Ausência de não poder estar em sua terra natal, ausência de não se sentir completamente pertencente ao seu lócus de vivência, mesmo quando o processo de integração caminha dentro do êxito pretendido ou possível. Segundo Sayad, em todo processo e/imigratório (o emigrante de um Estado ou país é o imigrante de outro, e essa relação complementar é também paradoxal), há o sentimento do que o autor chama de pecado original. Esse pecado consiste, entre outros aspectos, na culpa que o e/imigrante carrega de não estar mais entre os seus, no seu lugar, partilhando de parte de sua vida que ela não consegue mais viver. Ao longo de anos trabalhando ao lado de brasileiros que emigraram para diversos países, mas em particular para dois países que são grandes polos de atração da emigração brasileira: Estados Unidos e Japão, expressões que revelam esse sentimento de ausência e de culpa são frequentes. (...) eu estava bem, com trabalho, tudo certinho. Mas cansado daquilo. Sabia que aquela situação era só por um tempo, por isso também que eu aguentava né? Tava muuuuito cansado daquilo, muito cansado mesmo. Tinha tudo, sabia de pessoas que estavam em situação bem pior que a minha, a minha não tava ruim, eu tinha tudo. Mas, sempre que eu olhava pro céu e via um avião passar, aquilo mexia muito comigo. Ficava olhando sempre os aviões que passavam e pensando, um dia serei eu num desses aviões, voltando pra casa. Eu sabia que esse dia ia chegar. Não podia ver um avião passando no céu que sempre pensava nisso. Emigrante brasileiro no Japão. chegou um momento que eu nem queria mais falar com a minha família, sabe? Por que era um tal de pedir coisa e pedir coisa, toda hora tinha um parente encrencado, um tio, um primo, todo ferrado, querendo vir pra cá mas sem dinheiro, ou que não conseguia tirar o visto pra vir, e dai tocava a gente ajudar eles lá [Brasil]. Poxa, mas chega uma hora que ninguém aguenta mais né? Cada um que cuide de sua vida!!! Mas parece que rola uma inveja, que você conseguiu entrar aqui [EUA] e eles não, então, no fundo no fundo você sabe que deu sorte de conseguir estar aqui e estar bem, que ele também não tem
10 culpa, por que o Brasil é uma b. Dai eu me sentia culpada também de ter conseguido chegar aqui, de ganhar bem no trabalho, de ter trabalho, de poder comprar as coisas... Por que se eles pudessem estar aqui, estariam bem também. Eu tentava ajudar, mas eles me faziam me sentir culpada as vezes sabe? No final, nem queria mais muito contato com minha família, não dava mais..., eu também queria poder viver minha vida... Emigrante brasileira nos Estados Unidos Quando o sitio do Pica Pau Amarelo veio pra cá, quando tavam anunciando que iam fazer o programa de novo e tal, eu fiquei super feliz, pensei: agora eu vou matar a saudade de minha infância e do Brasil. Fiquei no mó entusiasmo... Putz, mas aí o programa começou e eu vi que ao invés de matar a saudade ver aquilo me dava mais saudade ainda!!! Lembrava da Emília, eu tinha uma boneca da Emília, sabe? Da Estrela!, lembrava das estórias da Narizinho, da minha mãe, das minhas irmãs, credo, que coisa, em vez de matar a saudade me dava mais saudade ainda! Caraca, que coisa ruim! Larguei mao de assistir! Emigrante brasileira nos Estados Unidos Através desses breves relatos podemos perceber o quanto o sentimento de culpa e saudade, o peso da sensação da ausência é marcado nas migrações internacionais, assim como as vivenciadas nas migrações internas. Bibliografia Benjamin BENJAMIN, W. Magia e técnica, arte e política. 3. ed. v. 1. São Paulo: Brasiliense 1987. Silva e Menezes SILVA, M. A. M.; MENEZES, M. A. Migrantes temporários: fim dos narradores. Revista Neho, n. 1, nov. 1999
11. História Oral: uma metodologia para o estudo da memória. Revista Vivência, n. 28, p. 23-36, 2005.) POLLAK, M. Memória, esquecimento, silêncio. In: Estudos Históricos, Rio de Janeiro, v. 5, n. 10, p. 200-212, 1992. SAYAD, A. O retorno: elemento constitutivo da condição do migrante. Travessia, v. 13, n. esp., p. 7-32, jan. 2000. ASSIS, Gláucia de Oliveira. Estar aqui estar lá... Uma carografia da vida entre dois lugares. Trabalho apresentado no XXI Encontro anual da ANPOCs. http://www.anpocs.org/portal/index.php?option=com_docman&task=doc_view&gid=5289&i temid=360; acesso em 30 de junho de 2015