Tradução Luciano Machado Temas Luto infantil; Vida hospitalar; A imaginação como defesa Guia de leitura para o professor 112 páginas Resumo 2008996274999 Matias e Celina aguardam na sala de espera do hospital. Tendo sofrido um acidente, seu pai se encontra em coma profundo, entre a vida e a morte. Dominique, a mãe, permanece ao lado do marido, arrasada pela dor, alheia a tudo o mais. Espectadores impotentes diante da tragédia que as atingiu, as duas crianças vagam desamparadas pelos corredores brancos. Tentando lidar com a dor inerente à situação, os irmãos Matias e Celina criam histórias em um mundo paralelo onde o pai é a Grande Águia, um herói mais forte que a morte, o qual fará com que tudo volte a ser como antes. Matias, pouco mais velho que Celina, esmera-se por tranqüilizar a irmã, ainda que ele mesmo seja assaltado por fortes crises de angústia. O mundo ao redor (escola, amigos, professores, rotina doméstica) perde muito da sua importância nesse intervalo, em que apenas os poderes mágicos oferecem algum consolo contra o silêncio e a falta de sentido.
Mas isso não dura para sempre, pois eles não demoram a defrontar com a dura realidade que os obriga a elaborar o luto pelo pai. E são as palavras de Isaías, um velho faxineiro africano, que vão ajudá-los a superar tamanha perda, mostrando-lhes quão necessário é reaprender a viver. Além da literatura Após conviver com o desamparo de Matias e Celina às voltas com o coma do pai, você encontrará a seguir informações sobre alguns dos temas abordados nessa história: a medicalização da morte, o papel da imaginação e da memória nos processos de luto, a percepção infantil do morrer, entre outros assuntos. Não se trata de subestimar os aspectos propriamente literários da narrativa, nem de converter os personagens em mera ilustração de distúrbios psicológicos, mas sim de oferecer ao professor subsídios conceituais para explorar, em sala de aula, as questões suscitadas no decorrer da leitura. Assim, a partir de contribuições de diversas disciplinas (história, antropologia, psicanálise etc.), procura-se ampliar o leque de referências do educador, levando em conta a carga de angústia mobilizada em situações extremas como as enfocadas nesta coleção. Ritos fúnebres Dividida em grupos, a turma pode pesquisar os significados da morte e os rituais que a acompanham em outras culturas e religiões. No México, por exemplo, o Dia dos Mortos (2 de novembro) é comemorado com uma grande e colorida festa nos cemitérios. Já para os budistas, o corpo físico é apenas um abrigo temporário da consciência. A morte, nessa religião, significa apenas o abandono do corpo pela consciência, que continua viva e pode ressurgir em outro corpo. Por isso, não há razão para lamentar quando uma pessoa morre. A morte tem história Se vivessem em outra época, Celina e Matias provavelmente não passariam tardes e mais tardes no hospital. Entregar o doente grave aos cuidados de médicos e enfermeiros (em vez de tratá-lo em casa) é uma atitude que se torna comum a partir do século XX. As mudanças na representação social da morte e na maneira de lidar com os moribundos constituem um dos objetos de estudo do historiador francês Philippe Ariès (1914-1984), autor de livros como História da morte no Ocidente (Rio de Janeiro: Ediouro, 2003) e O homem diante da morte (Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1981, 2 v.). Ariès explica que, durante a Idade Média, existia maior intimidade entre o morrer e os homens, que encaravam o fim da vida de maneira natural. É o que ele chama de morte domesticada : morrer fazia parte do cotidiano e do destino coletivo do homem. A transformação se inicia no século XVII, quando a angústia em relação à mortalidade começa a aparecer devido ao enfraquecimento dos vínculos com as tradições grupais e do consolo oferecido anteriormente pela religião. No século XIX, o esforço da
No interior do Nordeste brasileiro até hoje persiste o costume de beber o morto : servir café, cachaça e biscoito para quem compareça ao velório. Após a pesquisa, os grupos podem apresentar os resultados para o restante da classe, por meio de um seminário. Esta atividade ajuda os alunos a ampliar seus horizontes, relativizando o conceito de morte e as formas de encará-la. E também pode servir como pretexto para trabalhar a tolerância cultural e religiosa. A terra dos pés juntos O longo caminho de construção do conceito de morte, assim como as dificuldades de assimilar o morrer como condição universal e irreversível também deixam marcas na linguagem. Uma delas é a profusão de eufemismos e circunlóquios com que nos referimos ao término da vida. O dicionário Aurélio, no verbete morrer, arrola vários deles, alguns dos quais muito curiosos: abotoar o paletó; assentar o cabelo; bater as botas; comer capim pela raiz; dar com o rabo na cerca; empacotar; entregar a rapadura; esticar a canela; ir para o Acre, passar desta para melhor; virar presunto. O professor pode sugerir aos alunos que investiguem a origem desses circunlóquios, mediante consulta a dicionários de provérbios e a outros textos sobre tradições populares. Tal investigação poderia levá-los à produção de um texto (poema ou narrativa em prosa), utilizando essas expressões e até criando outras, dentro do mesmo espírito. ciência para racionalizar a morte convive com o romantismo da literatura, que encara o fim da vida como algo admirável, uma fuga do cotidiano. Ariès dá a essa época o nome de era da bela morte. De acordo com o historiador, no século XX aparece uma maneira absolutamente nova de morrer, especialmente nas áreas urbanas e mais desenvolvidas tecnologicamente. A essência dessa nova morte é a invisibilidade: no lugar do leito de morte e da família, entra o hospital, onde são prolongados ao máximo os últimos momentos de vida e onde se morre sozinho. Esse fenômeno se intensifica nas décadas de 1930 a 1950, e a sociedade ocidental passa a viver a era da morte interdita, em que o fim da vida se torna vergonhoso e deve ser escondido. Ao mesmo tempo que a sociedade se esforça para tornar a morte obscena, tem uma ânsia de controlá-la: aparecem uma enxurrada de livros, artigos, conferências, documentários e programas de TV sobre a morte e o morrer. As crianças entendem, sim! Para Dominique, mãe de Celina e Matias, é difícil falar sobre o estado grave do marido. É comum que os adultos fiquem inseguros quando têm de falar de morte com seus filhos ou alunos. Muitos acreditam que as crianças não sabem o que isso significa e que se deve poupá-las ao máximo em situações de falecimento. Mas o mais provável é que elas já tenham presenciado a morte de algum bichinho ou visto alguma cena parecida num desenho animado ou programa de TV. De modo geral, o tema da morte começa a aparecer para a criança por volta dos três anos. Os adultos podem não identificar essa compreensão porque a criança a expressa com os meios de que dispõe, ou seja, ela não fala diretamente da morte, mas a representa em seus desenhos e em suas brincadeiras. Nessa idade, os pequenos ainda acham que o fato é temporário, como acontece nos desenhos animados. Ao ingressar na idade escolar, a criança desenvolve gradativamente as noções de permanência e universalidade da morte. O domínio completo dessas noções demanda uma série de conquistas cognitivas. De acordo com Jean Piaget (1896-1980), biólogo e psicólogo suíço, criador da Epistemologia Genética, esse período da vida corresponderia à aquisição das operações concretas. Entre os 5 e os 9 anos, a criança aprende que a morte é irreversível, mas imagina que isso só acontece com os outros, a menos que vivencie a perda de alguém muito próximo. É só por volta dos dez anos que ela passa a perceber a morte como a
interrupção das atividades do corpo, algo natural, que faz parte da vida e que ocorre com todos. Quando a perda é vivenciada, seja qual for a idade da criança, é essencial que ela se sinta segura e bem cuidada. Tristeza, irritação e medo são algumas das reações possíveis a esse fato. É importante não ocultar dela a verdade, mas também não forçá-la, obrigando-a a ir a enterros e velórios. Explicar de forma simples o que está acontecendo, deixando-a livre para perguntar é a melhor maneira de fazer com que ela assimile o acontecimento. As coisas findas Amar o perdido/ deixa confundido/ este coração.// Nada pode o olvido/ contra o sem sentido/ apelo do Não.// As coisas tangíveis/ tornam-se insensíveis/ à palma da mão.// Mas as coisas findas/ muito mais que lindas,/ essas ficarão. A propósito das considerações sobre a importância da memória nos processos de luto, o professor pode apresentar à classe o poema Memória, do escritor mineiro Carlos Drummond de Andrade (1902-1987), que faz parte do livro Claro enigma, de 1951. Com base nele, os alunos poderiam tentar responder a uma das últimas perguntas feitas por Matias ao seu amigo Isaías: Mas como se pode amar alguém que não está mais aqui? (p. 103). Ao professor cumpriria destacar a ação paradoxal da memória, que dá permanência ao que passou, conferindo sentido ao que se viveu (só fica o que significa), daí seu poder poético e curativo em relação à dor da ausência. Lembrar para melhor esquecer Matias passa a aceitar melhor a perda do pai quando conhece Isaías, o faxineiro do hospital, que ensina o menino a contar com as lembranças para que o pai continue vivo dentro dele. Para Freud, as lembranças também eram uma das chaves para resolver conflitos emocionais. De acordo com a teoria psicanalítica, o ser humano procura se proteger das experiências dolorosas e conflitivas vividas na infância. A fim de evitar o sofrimento psíquico, ele recalca a memória desses fatos, subtraindo-os da consciência. Só que essas memórias recalcadas continuam agindo no inconsciente e seguem causando dor. No ensaio Recordar, repetir, elaborar (1914), o pai da psicanálise explica que, em vez de simplesmente recordar os fatos reprimidos como algo pertencente ao passado, o homem os revive nas suas atitudes do dia-a-dia, fenômeno ao qual dá o nome de repetição neurótica. O processo de terapia psicanalítica consiste, justamente, em trazer à tona essas lembranças reprimidas, fazendo com que o paciente as reproduza como recordações, não como atitudes. Dessa forma, ele tem a chance de se libertar das neuroses e viver com seu passado, em vez de se sentir refém dele. Quando se perde alguém querido, a memória também tem um papel essencial, como explica Freud em Luto e melancolia (1917). De acordo com ele, a pessoa que atravessa um período de luto perde o interesse pelo mundo externo, porque o objeto do seu amor perdido não está mais presente. O trabalho do luto, como Freud o denomina, consiste em desprender a energia depositada no objeto perdido, liberando o sujeito para novos investimentos afetivos. Para alcançar tal desprendimento, cada uma das memórias e expectativas relativas ao objeto perdido é evocada. A recordação (ao contrário da repetição neurótica) traz, de certa forma, o objeto perdido de volta e nos ajuda a superar sua perda.
Riso é remédio Enquanto Doutores da Alegria não é lançado em vídeo e DVD, pode-se em havendo condições técnicas no colégio promover para os alunos uma exibição de Patch Adams o amor é contagioso (Patch Adams, dirigido por Tom Shadyac, Estados Unidos, 1998). O filme é baseado na história verdadeira de Hunter Adams (interpretado por Robin Williams), um médico dos anos 1970 que usava o humor para tratar seus pacientes. Depois de assistir ao filme, vale a pena incentivar um debate sobre o papel desempenhado pelo humor nos momentos de dificuldade e impasse. Nariz vermelho sobre fundo branco Matias e Celina driblam a dor causada pela doença do pai e o tédio que sentem nos corredores do hospital criando um mundo de fantasia. Nele, o pai se transforma na Grande Águia e eles, em Águia Marrom e Pequena Montanha, ou em tripulantes da Nave Branca. O vôo da imaginação cria um consolo momentâneo e lhes permite, ainda que de modo limitado, enfrentar a dureza da situação real ao mesmo tempo que expressam suas angústias. No Brasil, existe um grupo de artistas que também usa as armas da imaginação para lidar com as agruras da doença e a solidão dos hospitais. São os Doutores da Alegria, que têm por objetivo levar a brincadeira até as crianças que estão internadas nesse tipo de instituição. Vestidos de palhaço, eles visitam, sempre em duplas, quartos e UTIs provocando o riso em quem está triste e de cama. Muitas vezes, os palhaços-doutores são a única visita que a criança recebe. O criador do grupo é Wellington Nogueira, que atende pelo nome de Dr. Zinho e se diz especialista em besteirologia. Em 1988, quando morava em Nova York e sonhava ser ator da Broadway, conheceu o trabalho do Big Apple Circus Clown Care Unit, um programa que levava palhaços para visitar crianças em hospitais. Wellington teve de voltar ao Brasil para visitar o pai, que estava na UTI. Resolveu trocar a Broadway pelo Hospital das Clínicas de São Paulo e, em 1991, fundou a organização Doutores da Alegria, sem fins lucrativos. Hoje, a equipe de besteirólogos leva seus esquetes terapêuticos a cinco hospitais de São Paulo, dois do Rio de Janeiro e três de Recife. Para fazer parte do grupo, os atores têm de passar por um processo de seleção rigoroso e fazer estágio e treinamento para não perder a graça durante a jornada de seis horas diárias visitando crianças e adolescentes doentes. Em 2005, o grupo comemorou 13 anos de atividade com um longa-metragem no cinema. Em Doutores da Alegria, dirigido por Mara Mourão, o próprio Wellington Nogueira e seus besteirólogos contam a história da trupe, que já visitou mais de 350 mil pacientes. Para seguir pensando... Livros O que é a morte, de José Luiz de Souza Maranhão (São Paulo: Brasiliense, 1992. 78 p.). Neste livro, o professor de filosofia não trata da morte de maneira solene ou pesada. A proposta de seu ensaio é crítica e provocadora, abordando diversas concepções filosóficas a respeito do morrer. Maranhão levanta questões a respeito da abreviação e
do prolongamento da vida e mostra que a repressão da morte na sociedade capitalista (que se esforça para transformá-la em tabu) é também uma estratégia para disfarçar injustiças sociais. Uma morte muito suave, de Simone de Beauvoir (Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1984. 106 p.). A mãe de Simone de Beauvoir foi internada para tratar de uma fratura no fêmur, mas acabou descobrindo que tinha câncer. O livro narra suas últimas semanas de vida e traz os sentimentos e reflexões da escritora francesa. Não há morte natural: nada do que acontece ao homem jamais é natural, pois sua presença questiona o mundo. Todos os homens são mortais, mas para cada homem sua morte é um acidente e, mesmo que ele a conheça e a consinta, uma violência indevida, ela conclui. O homem e a morte, de Edgar Morin (Rio de Janeiro: Imago, 1997. 328 p.). A espécie humana é a única para a qual a morte está presente ao longo da vida, a única a acompanhar a morte com um ritual funerário, a única a crer na sobrevivência ou no renascimento dos mortos, diz o pensador francês. A partir dessa constatação, Morin faz um estudo antropológico da morte, analisando os rituais ligados a ela como uma maneira de entendê-la melhor. E propõe a literatura, por muito tempo desprezada pelos historiadores, como fonte para entender o comportamento humano em relação ao fim da vida. Filmes Fale com ela, dirigido por Pedro Almodóvar (Hable com ella, Espanha, 2002). Nesse filme, o coma faz com que uma grande amizade nasça entre dois homens. O jornalista Marco (Darío Grandinetti) sofre um grande baque quando sua namorada, a toureira Lydia (Rosario Flores), é atacada por um touro e entra em coma. No hospital, ele recebe o apoio do enfermeiro Benigno (Javier Câmara). Há quatro anos, o enfermeiro dedica-se inteiramente a Alicia (Leonor Watling), jovem bailarina em estado vegetativo. Benigno aconselha Marco a seguir seu método de trabalho: conversar com Lydia e esperar por um milagre. Peixe grande e suas histórias maravilhosas, dirigido por Tim Burton (Big Fish, Estados Unidos, 2003). Ed Bloom (Ewan McGregor/Albert Finney) não perde a oportunidade de contar um causo, e todo mundo adora ouvir as histórias de seus feitos fantásticos. Menos o seu filho, Will (Billy Crudup), que não suporta ver todas as atenções voltadas para o pai. Quando Ed rouba a cena na festa de noivado de Will, ele se afasta do pai e vai morar na França. Só que Ed fica muito doente, e a mãe de Will, Sandra (Jessica Lange), pede que ele volte para casa. Começa, então, a busca de Will pelo verdadeiro pai. Memória e fantasia se confundem e ajudam a recuperar o relacionamento entre os dois. Elaboração do guia Lavínia Fávero (jornalista e tradutora); supervisão Eliane Jover (psicóloga e jornalista, mestre em Psicologia Clínica pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul); preparação Fabio Weintraub; revisão Penelope Brito, Carla Mello Moreira e Gislaine Maria da Silva