INTRODUÇÃO. Efeitos Regulatórios e Programas Compensatórios de Segurança Alimentar no Brasil. Uma análise em profundidade.



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Transcrição:

INTRODUÇÃO Efeitos Regulatórios e Programas Compensatórios de Segurança Alimentar no Brasil. Uma análise em profundidade. Ana Célia Castro 1 Os autores de Programas Sociais de Combate à Fome: o legado dos anos de estabilização econômica Lena Lavinas e Eduardo Henrique Garcia apontam, como uma das principais conclusões dos seus estudos, a existência de uma grande evasão da clientela e público-alvo de programas estadual e municipal de segurança alimentar no país quando centrados em redes de varejo subsidiado e/ou outros meios de distribuição de alimentos in natura. Esse esvaziamento seria resultante do processo de estabilização da economia brasileira, que teria assim contribuído, decisivamente, para a convergência dos preços entre o varejo alimentar e a comercialização subsidiada de alimentos pelo Estado, reduzindo a atratividade das redes comerciais alternativas. Evidentemente, a ênfase nesta conclusão decorre da certeza de que ela se desdobra em importantes conseqüências para a presente e futura política pública de segurança alimentar no país. Mas antes de concluir com o significado destas implicações, pretendo ressaltar muitas outras novidades que este excelente estudo têm a nos mostrar, e são estas que procuro destacar a seguir. Em primeiro lugar, o livro que agora se publica permitiu realizar uma extensa e intensa limpeza do terreno ao mesmo tempo conceitual e empírica, necessária à avaliação dos efeitos atribuídos aos Programas de Segurança Alimentar. Num momento em que uma das prioridades do Governo Federal é a erradicação da fome no país, através do Fome Zero, programa inquestionavelmente meritório do ponto de vista da justiça social, uma avaliação cuidadosa e criteriosa das experiências anteriores das políticas de segurança alimentar implementadas constitui, sem dúvida, um precioso instrumento de análise. Estes pontos de chegada do trabalho permitem traçar mapas mais claros e seguros para os novos pontos de partida das políticas, reduzindo desvios, encurtando distâncias. 1 Curso de Pós-graduação em Desenvolvimento, Agricultura e Sociedade. Coordenadora do Programa Internacional de Pós-graduação em Políticas de Desenvolvimento, Instituições e Estratégias.

Queria chamar, primeiramente, a atenção para o historicamente determinado conceito de necessidades calóricas diárias de um indivíduo trabalhador: o cálculo per capita da cesta básica do Decreto Lei 399 de 1938, inovação institucional notável do Governo Vargas, foi fei to com base nos nutrientes necessários à realização de uma jornada de trabalho por um trabalhador em atividade, com grande esforço físico e esse cálculo estabeleceu o consumo de 3.155,68 quilos caloria (Kcal) por dia. 2 / Hoje, e segundo medidas internacionalmente reconhecidas e recomendadas, como apontam os autores, esse cálculo estaria nos limites de 2.200 kcal/dia. Evidentemente, o que está mudando, e continuará certamente em declínio, é a quantidade média de kcal/dia necessária à realização do esforço físico e mental regularmente despendido por indivíduos em diferentes tipos de trabalho: intelectual, braçal, burocrático, esportivo, inventivo, entre outros. Esta medida não é de forma alguma irrelevante, muito pelo contrário, na medida em que determina a magnitude da compensação necessária - em termos de quantidades de alimentos e/ou renda para comprá-los - a ser oferecida a grupos com renda insuficiente para fazer face ao consumo sustentável de alimentos necessários a repor o esforço médio do trabalho (físico/intelectual) e a garantir o consumo de seus dependentes. Se esta medida monetária a quantidade de dinheiro necessária para comprar uma cesta de alimentos capaz de garantir o consumo (de calorias, proteínas, vitaminas, sais minerais, etc.) sustentável de uma família típica, composta por dois adultos, uma criança e um adolescente se expressa no somatório dos preços dos alimentos considerados essenciais, evidentemente esta medida depende fundamentalmente dos preços da cesta. Processos de estabilização econômica e o aumento na produtividade na produção desses bens reduzem o custo de programas de segurança alimentar e de erradicação da fome. Aumento do desemprego e baixas taxas de crescimento econômico salgam a conta a ser paga por programas compensatórios, monetários ou através da distribuição física de alimentos através dos mais variados expedientes. Na medida em que sejam consideradas em conjunto todas as regiões do país, os autores demonstram que a renda familiar média per capita brasileira, medida nas grandes cidades, permite adquirir um número de calorias/mês muito superior ao que se considera 2 / O cálculo refere-se à região Nordeste do Brasil. Para as demais regiões o consumo seria de 3123,94 kcal/dia.

ideal por qualquer standard. De fato, como dizem os autores, não há no Brasil um problema de oferta de alimentos, tanto mais quando se têm em conta os elevados volumes de alimentos exportados somos os maiores exportadores internacionais do complexo soja, de suco de laranja, detemos predominante lugar na exportação de produtos do complexo agroindustrial de carnes, e assim por diante. Em suma, é inegável a competitividade internacional do agronegócio brasileiro, e a sua capacidade de gerar alimentos mais do que suficientes para a população do país. O problema da fome, como em tantas partes do mundo, se dá em meio à abundância, como já foi assinalado por vários autores que se dedicam ao tema. A capacidade de produzir alimentos e de consumi-los, dada a renda média familiar per capita, ainda segundo os autores, esconde o quadro de desigualdade e de comprometimento da própria capacidade de sobrevivência da população mais carente. Estão entre os gráficos mais importantes do livro aqueles que se referem ao primeiro e segundo decís de renda em kcal Gráficos 1.7 e 1.8. Os gráficos mostram a situação da renda familiar em kcal em diferentes capitais do país, medida sempre nos meses de setembro - de 1990 a 1997. A partir da estabilização dos preços, ou posteriormente a 1995, a situação melhora claramente, especialmente no segundo decil de renda, mas as capitais Belém, Belo Horizonte, Recife e Salvador ainda se encontram abaixo do nível de consumo alimentar considerado adequado. Uma atualização destes dados deveria ser realizada periodicamente pelas autoridades competentes. Estas considerações permitem aos autores a delimitação das linhas de carência alimentar No Brasil com o um todo, cerca de 21% da população não têm renda para adquirir as calorias necessárias (...). O número de famílias considerado alvo chega a 7 milhões. O público beneficiário estimado para esse programa seria, aproximadamente, de 32 milhões de indivíduos. Entretanto, dizem os autores, o atendimento integral aos que estão abaixo do nível de consumo de 2.200 kcal representaria um custo muito elevado (custo anual de cerca de R$8,5 bilhões). Sendo assim, a cobertura de 75% do requerimento calórico considerado padrão pela FAO seria bem razoável, uma vez que o grau de cobertura é elevado (...) e seu custo ainda representaria a metade do custo de um programa destinado ao suprimento das necessidades calóricas de toda a demanda. Chega -se assim, a um programa ajustado à linha de 1.650 kcal, a proporção de famílias atendidas seria de 89%, o

público-alvo diminuiria de 32 milhões para 21 milhões, mas o custo anual do programa cai de R$8,5 bilhões para R$4,6 bilhões. Estes resultados, revistos e refeitos com grande seriedade, convencem sem dramaticidade as verdadeiras proporções de um programa revolucionário do ponto de vista de seus objetivos e alcances. Por fim, a grande contribuição deste livro, que agora finalmente chega ao conhecimento de todos aqueles que reconhecem a urgência das políticas de segurança alimentar, está no exame cuidadoso, na avaliação sistemática, e no cuidado em refazer as próprias pesquisas primárias em momentos subseqüentes, dos programas de segurança alimentar, especialmente os de cunho compensatório, expresso na doação e/ou venda subsidiada de alimentos. Deixo aos leitores o prazer de descobrir e redescobrir o trabalho minucioso de avaliação de políticas públicas, e de acompanhamento dos impactos dos programas compensatórios de segurança alimentar, seja através da doação direta de alimentos (PRODEA), seja através de sua venda subsidiada por Estados e Municípios nos anos 1990 (foram exaustivamente avaliados os Programas da SMAB/Curitiba e os Programas da Rede Baiana Cesta do Povo, inclusive em dois momentos do tempo) todos caracterizados pela compra governamental de alimentos in natura. Está em questão, ou melhor, há ampla comprovação da evasão da clientela e público-alvo dos programas, bem como da redução da atratividade de redes alternativas de comercialização quando os preços dos alimentos comercializados se aproximam dos praticados pelo mercado. Vale a pena, como política governamental, comprar alimentos in natura e constituir estoques para posterior distribuição/venda subsidiada? A resposta da minuciosa avaliação realizada é clara e convincente. Os autores ressaltam, entretanto, a importância de atividades que produzam efeitos regulatórios, e mais ainda o impacto extremamente positivo que poderiam vir a ter programas educacionais, que certamente melhoram a qualidade da alimentação das populações carentes. Uma cesta de alimentos supostamente adequada às necessidades calóricas, comprada entre os produtos mais baratos no mercado, corre o grande risco de manter a população-alvo dos programas refém de uma alimentação de qualidade inferior e pouco diversificada, num país em que o sistema agroalimentar é dos mais competitivos e diversificados do mundo. É pertinente indagar se carecemos ainda da eleição de uma nova cesta básica - qualquer que seja ela meta

perseguida pelos que insistem, mais uma vez, em atualizar esse referencial - ou se nossos esforços devem voltar-se para estimar a velocidade e o grau de acesso dos mais pobres à oferta variada e de qualidade do mercado de alimentos no Brasil. Concluo com a palavra dos autores, convencida de que estudos como este fazem pensar a respeito, de que estamos todos envolvidos na busca de soluções, e de que o compromisso é da sociedade brasileira como um todo. Dar renda ao invés de dar alimentos é uma forma, das menos onerosas e das mais eficazes, de se renovar políticas sociais de caráter compensatório, para que passem a agir eficientemente não só sobre o combate de curto prazo à pobreza, mas também sobre a desigualdade, causa maior da miséria no Brasil. (...) Amplia-se, assim, a condição de cidadão...