PALAVRAS-CHAVE: ABSTRACT



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Transcrição:

BEZERRA, Henrique. O gesto do ator na construção da comicidade. Salvador: UFBA. PPGAC, mestrado, Orientador Luiz Marfuz. Bolsista CAPES. Professor e Ator. RESUMO O artigo busca analisar caminhos possíveis para a potencialização ou obtenção de efeitos risíveis no trabalho do ator na cena cômica, tendo como foco, o riso proveniente diretamente do desempenho do artista e não o resultante de uma piada inserida na dramaturgia. Para isso, utiliza como ponto de partida as reflexões do filósofo francês Henri Bergson a respeito da comicidade e, por meio delas, encontra no gesto do ator um recurso provável para a obtenção do riso. A partir de uma breve discussão do conceito, apresenta-o como ferramenta capaz de desvelar o caráter mecânico e físico da cena teatral que por sua vez pode propiciar ao público uma apreciação risível da cena. PALAVRAS-CHAVE: gesto, trabalho de ator, comicidade, riso, teatro. ABSTRACT This article seeks analyze possible ways for potentiation or obtaining of laughable effects in the actor s work in the comic scene, focusing on the laugher coming directly from the artist s performance and not the result from a joke inserted into dramatic text. It uses as a start point, Henri Bergson s reflections about comic, and thought them find out the actor s gesture is a probable feature to obtain the laugh. From a brief discussion of the concept, present it as a tool capable of revealing the character mechanical and physical of the theater scene which in turn can provide to public an appreciation ludicrous of the scene. KEY WORDS: gesture, actor s work, comicality, laugh, theater. O riso é um assunto que há tempos intriga os filósofos. É curioso observar que dependendo do estudioso ele adota uma nova faceta. Em sua história, o riso já foi taxado de agressivo, sardônico, punitivo, grotesco e tantos outros adjetivos. Seu caráter multifacetado se estende as manifestações artísticas que o tenham como objetivo. Dependendo dos processos utilizados para sua obtenção ele pode aparecer com uma de suas máscaras ou simplesmente não marcar presença. Na tentativa de [...] determinar os procedimentos de fabricação da comicidade [...] (BERGSON, 2004, p. VIII) o filósofo francês Henri Bergson encara esse monstro de muitas faces sob a ótica de sua teoria do mecânico colado no vivo. De acordo com ele, ri-se quando a vida parece se desviar para uma rigidez mecânica. Isto se dá por meio de distrações, gestos que se repetem, dentre outros. Quando os seres vivos, flexíveis ; adotam atitudes que parecem tirar esta flexibilidade, revelam seu lado mecânico e repetitivo; esse contraste da vida caminhando em direção a mecânica poderá provocar o riso. Uma pessoa ao cair em um buraco, pode tornar-se cômica porque estava distraída em seu caminhar a tal ponto que não percebeu a armadilha no caminho. Foi exigido dela a flexibilidade que todo ser vivo possui, mas no momento estava em um caminhar mecânico, distraído e por isto caiu. O que há de risível [...] é certa rigidez mecânica quando seria de se esperar a maleabilidade atenta e a 1

flexibilidade vívida de uma pessoa (BERGSON, 2004, p. 08). Acredito que, ao transpor algumas proposições bergsonianas para a cena teatral, possa ser possível encontrar caminhos para a potencialização dos efeitos risíveis no trabalho do ator, e um destes caminhos é através do gesto. O gesto é um recurso frequentemente utilizado nas cenas cômicas. Sua presença é visível desde o grammelot 1 da commedia dell arte passando pelo período medieval, em que os bufões e atores populares que não tinham acesso às casas de espetáculo, confinados as ruas e feiras, perceberam nas eventualidades do espaço a possibilidade do desenvolvimento de toda uma comicidade gestual e corporal por meio de acrobacias, danças, caretas, etc. Do mesmo modo, pode-se verificar ainda hoje sua importância na construção dos efeitos risíveis na cena. Através dele torna-se possível ressignificar o discurso, pontuar determinados aspectos da encenação, estabelecer relações, entre outros. Pois, Originalmente, a gestualidade parece dominar a cena cômica. (ROUBINE, 1987, p. 30). O ator e autor italiano Dario Fo percebe as potencialidades cômicas e significativas deste recurso e as explora com frequência em seus espetáculos. Jacques-Lecoq ensinou Fo a utilizar seu corpo desengonçado e a relação gestualidade-palavra na criação de gag s e mecanismos para obtenção da comicidade. Apesar disto, o ator italiano reconhece que na prática teatral, por vezes, o gesto é deixado ao acaso, não é trabalhado. Argumento que pode ser visto na seguinte afirmação: Porque essa desatenção? Porque acreditamos que o gesto e a gestualidade são sempre a salada, o acompanhamento, enquanto o prato principal, a carne, é sempre a palavra. [...] O gesto é renegado até mesmo no trabalho do ator. (FO, 2004, p. 62). Este aparente descaso com o gesto pode minar o trabalho do artista ao trazer em sua performance uma bagagem de clichês e maneirismos gestuais que nada, ou pouco, auxiliarão seu desempenho. Na tentativa de convencimento do público, o ator despreparado corre o risco de criar subterfúgios mímico-gestuais que possivelmente prejudiquem seu trabalho: coça constantemente a cabeça, coloca as mãos no bolso, esfrega os olhos. Ausentes de intenções reais, estes gestos parecem ser apenas um caminho para dissipar o nervosismo do ator. Por surgirem como fruto do acaso, podem se tornar periféricos, sem expressão viva e atrapalhar o artista. O perigo deste tipo de utilização do recurso gestual, já foi advertido pelo diretor e pesquisador russo Constantin Stanislavski. De acordo com ele: A atuação de um ator que se perde num emaranhado e na multiplicidade de gestos em muito se assemelha a uma folha de papel cheia de borrões. [...] os atores fazem muitos movimentos involuntários, num esforço para ajudarem a si próprios, sempre que se vêem diante de trechos difíceis de seus papeis. (STANISLAVSKI, 2001, p. 49-50) O teatro é uma construção intencional, geralmente os participantes do evento já discutiram e ensaiaram anteriormente o que irão realizar. Frente a isto, penso que o gesto capaz de carregar um potencial cômico é um 1 Mistura de sons e palavras criando um jogo onomatopeico que em conjunto com os gestos e ritmo imposto pelos atores pode ser capaz de transmitir um discurso completo. 2

movimento voluntário no sentido que não seja mera resposta a estímulos físicos desenvolvido previamente durante os ensaios. Nesta perspectiva, encontram-se a construção de possibilidades cômicas que se pautam no estabelecimento de uma relação entre a situação, o possível discurso e uma maneira trabalhada de utilização do gesto. Porém, ao adotar esta perspectiva, os contornos que delimitam o conceito de gesto podem se confundir com a ideia de ação. Ambos têm a capacidade de definirem os seres ficcionais, são movimentos voluntários para o ator que os realiza e foram criados previamente no ensaio. Para tentar resolver este impasse, resgato a ideia de ação defendida por Burnier. Para ele, a ação é algo capaz de modificar a realidade, quer seja exterior (no sentido da cena) ou interior (no sentido do ator e do personagem). Pois: Do ponto de vista conceitual, entender a ação como algo que modifica a realidade pode nos ajudar. Será ação para o sujeito-ator tudo o que o modifica de alguma maneira, que tem relação com seu ser, sua vontade, seus desejos, anseios, determinações, com sua pessoa [...] (BURNIER, 2009, p. 34). Sendo assim, a ação ainda está de certo modo ligada a uma situação, ainda possui um objetivo ou desejo, por mais nebuloso ou ilógico que estes possam parecer. No tocante ao trabalho do ator, caso esta ação seja capaz de corporificar e transmitir para a plateia os desejos que a animam, tem-se uma ação física. Para que ela seja este ato modificador da realidade, deve estar atrelada as energias potencias que a geraram, não se trata do mero percurso físico do movimento. Então, Burnier afirma que ela possui dois elementos distintos, a corporeidade e a fisicidade: A corporeidade é a maneira como as energias potencias se corporificam, é a transformação dessas energias em músculo, ou seja, em variações diversas de tensão. Essa transformação de energias potenciais em músculo é o que origina a ação física. [...] A fisicidade é o aspecto puramente físico e mecânico da ação física, é a espacialidade física deste corpo [...] o puro itinerário do movimento de uma ação, até onde vai, se é grande ou pequeno. (BURNIER, 2009, p. 55). A ação, por ser carregada de desejo e intenção, animada por estas energias potenciais, apresenta-se como este ato total e modificador, e, de certo modo, chama a atenção para os motivos que exigiram sua realização, e nisto diferencia-se do gesto. Este por sua vez, parece estar mais próximo da fisicidade do que da corporeidade. Caso o ator consiga que seus gestos ganhem destaque na ação, que o aspecto físico do movimento torne-se mais evidente do que as causas que o levaram a ser realizado, pode-se encontrar um caminho possível para a obtenção da comicidade. Como sintetiza Bergson: Na ação, é a pessoa inteira que se dá; no gesto, uma parte isolada da pessoa se exprime, sem o conhecimento da personalidade total ou pelo menos separadamente desta. [...] o gesto tem algo de explosivo, que desperta nossa sensibilidade pronta para deixar-se embalar, e que, lembrando-nos assim de nós mesmos, impede-nos de levar as coisas a sério. Portanto, a partir do momento em que nossa atenção incidir no gesto, e não no ato, estaremos na comédia. (BERGSON, 2004, p. 108). 2 2 Grifos meus. 3

É nesta perspectiva que atos aparentemente trágicos podem adotar uma forma cômica. À primeira vista, a cena em que Desdêmona é sufocada por Otelo não se apresenta como risível, no entanto, com alguns ajustes no trabalho dos atores a comicidade se torna possível. No caso inicial, a atenção do público é voltada para a ação que Otelo realiza e todo o contexto que o levou a executá-la. Na perspectiva cômica, os atores, por meio de artifícios como a repetição, o exagero, movimentos ritmados, entre outros, encaminham a atenção do público não para a ação em si, mas para o modo como ela é executada, para os gestos utilizados no ato. Neste momento, é como se a fisicidade se tornasse mais evidente que a corporeidade. O que é realizado em cena ainda tem importância, mas adquire uma função secundária em relação ao modo como é apresentado. No primeiro caso, a atenção do espectador é voltada para a ação e suas consequências, que logo poderiam engendrar a piedade, dor e o sofrimento que dificultariam a manifestação do riso. Já no segundo momento, a forma mecânica da situação ganha destaque, proporcionando uma apreciação diferente da cena por parte do público. O conteúdo da situação ainda está presente, mas o modo como ela é apresentada favorece esta percepção risível do que é levado ao palco. Trabalhado nesta perspectiva, o gesto deixa à mostra o lado mecânico que envolve a execução de algo e, como lembra Bergson: As atitudes, os gestos e os movimentos do corpo humano são risíveis na exata medida em que esse corpo nos faz pensar numa simples mecânica. (BERGSON, 2004, p. 22). Por privilegiar a fisicidade, o gesto resgata outra reflexão bergsoniana: o fato do personagem chamar a atenção para a existência física de seu corpo. Quando isto acontece, os aspectos morais e psíquicos que animaram determinada atitude esmorecem, e, provavelmente darão lugar a uma visão cômica da cena. Apesar da aparente complexidade deste processo, ele foi e é, um recurso amplamente utilizado por artistas cômicos. Penso que um exemplo desta proposta de encaminhamento da cena possa ser encontrado no livro Palhaços, de Mario Fernando Bolognesi. Nele, o autor conta o caso do palhaço Piquito que transformou um melodrama lacrimoso em uma hilariante comédia : A dor e as desgraças do herói eram apresentadas e imediatamente satirizadas pelo bêbado palhaço. A ênfase, portanto, não recaiu sobre a exploração do elemento dramático, mas sim no desvio do foco de ação, do sentimento para a exposição do corpo, mediante uma interpretação calçada no improviso. [...] Ele desviou o enredo para si próprio, para sua personagem-palhaço, explorando a comicidade dos gestos, de forma a fazer que plateia se ocupasse exclusivamente com sua performance. (BOLOGNESI, 2003, p. 154) Neste exemplo, percebe-se que apesar do texto não ser incialmente uma comédia, a evidenciação do corpo físico, por meio do trabalho com o gesto, modifica a atenção do público. Ela é transferida do enredo para à performance do artista, e, com isso, abre às portas para uma provável apreciação risível do que é apresentado. Sob esta ótica, o gesto desvia a atenção do público do conteúdo moral da situação para sua forma e, além disso, diversifica os significados propostos pela cena. Desta forma, cria para o espectador um hiato entre o que acontece e como este ato está sendo 4

realizado, favorecendo assim o jogo cênico cômico, possibilitando a transformação de dramas em comédias. Este artifício não se restringe à palhaçaria, seu uso também é encontrado no cinema mudo por artistas como Chaplin, Buster Keaton, Laurel e Hardy. No teatro, pode-se resgatar o trabalho de Dario Fo, citado anteriormente. Entretanto, não se trata da execução de gestos que substituam a fala (metalinguísticos), nem mesmo da elaboração de uma codificação gestual como a pantomima. Tais processos trazem a ideia de uma significação imediata e dificilmente dão espaço para que o público tenha outras interpretações do que é visto. Gestos cotidianos, icônicos e metalinguísticos podem não ser risíveis justamente por não darem espaço para as interpretações da plateia. Eles exigem que a atenção do receptor se foque na mensagem que está sendo transmitida e não no gesto que é o portador da mesma; por apresentarem uma ideia pronta e acabada não favorecem que o público perceba o arranjo mecânico que o gesto pode aflorar na vida. Por fim, como lembra Dario Fo, o gesto no teatro deve ser reinventado, suas potencialidades vão além de um mimetismo cotidiano e o tornam capaz de enriquecer o ofício do ator. Neste sentido, pode carregar a possibilidade de apresentar-se como suporte físico no trabalho do ator para a teoria bergsoniana do mecânico colado no vivo, e, justamente por isto, como um caminho provável para a obtenção do riso. BERGSON, Henri. O riso: ensaio sobre a significação da comicidade. São Paulo: Martins Fontes, 2004. BOLOGNESI, Mário Fernando. Palhaços. São Paulo: UNESP, 2003. BURNIER, Luís Otávio. A arte de ator: da técnica a representação. Campinas, SP: Unicamp, 2009. FO, Dario. Manual mínimo do ator. São Paulo: Senac, 2004. ROUBINE, Jean-Jacques. A arte do ator. Rio de Janeiro: Jorge Zahar, 1987. STANISLAVSKI, Constantin. Manual do ator. São Paulo: Martins Fontes, 2001. VENEZIANO, Neyde. A cena de Dario Fo: o exercício da imaginação. São Paulo: Códex, 2002. XIMENES, Fernando Lira. O ator risível: procedimentos para cenas cômicas. Ceará: Expressão Gráfica, 2010. 5