Os Pretos novos que não chegaram a velhos: morte e sepultamento de escravos. recém-chegados de África, no Rio de Janeiro do século XIX.



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Transcrição:

Os Pretos novos que não chegaram a velhos: morte e sepultamento de escravos recém-chegados de África, no Rio de Janeiro do século XIX. Júlio César Medeiros da S. Pereira. - PPG-UFRJ A proposta inicial desta pesquisa consiste em analisar a forma dos sepultamentos realizados no cemitério dos Pretos Novos, situado na Gamboa, do Rio de Janeiro e que funcionou de 1722 a 1830, reconstruindo um pouco da história dos africanos que morriam tão logo desembarcavam no porto do Rio de Janeiro, durante a primeira metade do século XIX, e que ficaram conhecidos como pretos novos i. Para tanto, lançamos mão de várias fontes primárias, dentre elas, jornais de época, relatos de viajantes, ofícios dirigidos à Câmara de Vereadores e abaixo-assinados dos moradores do Valongo que pediam o fim do cemitério. Nesse sentido entendemos, através da noção de representação ii social, o aparelho simbólico que conferia aos pretos novos a possibilidade de serem lançados à flor da terra, desprovidos, aparentemente, de qualquer ritual religioso, bem como de aparatos como mortalhas, roupas e orações iii. Inseridos em sociedade escravista e extremamente hierarquizada, os pretos novos ocupavam assim o patamar mais baixo da população iv Os estudos fundamentais como os de J. J. Reis e Claudia Rodrigues indicam que, no Brasil, os sepultamentos eram realizados nas Igrejas até pelo menos 1850. Nesse tempo, a idéia da boa morte estava vinculada ao momento da morte da pessoa e ao seu local de enterramento. Nesse sentido, dentro de uma mentalidade transpassada pelo cristianismo, estar enterrado em uma igreja era estar perto de Deus, o que significava uma maior possibilidade de uma vida mais feliz no porvir. Assim, as igrejas no Brasil, recebiam os corpos de seus fiéis desde que tivessem sido, em vida, pessoas de uma certa posição social, e que os seus pudessem arcar com as despesas do sepultamento. Desta feita, quanto maior a posição social do defunto, maior era a sua proximidade com o templo, quando não, do próprio altar-mor. Assim como o caso estudado exaustivamente por Engemann e Marcelo de Assis, que se debruçaram sobre os óbitos de escravos da Freguesia de Itambi, e puderam constatar que "[...] a distribuição espacial dos sepulcros na 1

área de templo cristão tendia, portanto, a refletir uma dentre as várias hierarquizações presentes entre os cativos" v p. 195. De fato o tema da morte não é uma problemática recente. O cristianismo conseguiu, dentro da tradição semita, se impor como uma religião inumista. Não por acaso, Origines advertira na obra Contra Celsum sobre o cuidado que se devia ter com relação aos mortos, bem como o uso da procissão fúnebre vi. Da mesma forma, na procissão fúnebre medieval, já se encontravam elementos que perdurariam por toda a Idade Média, ou seja, cantos, o carregamento de estandartes da cruz e as relíquias dos santos. vii Os primeiros cristãos tinham o costume de sepultar os seus mortos com ritos próprios e em lugares separados, aos quais chamavam de coemeterium (palavra latina derivada do grego koimètérium, forjada a partir do termo koimâo, que tem por significado "eu faço dormir"). Nesses espaços, com o intuito de fugir da perseguição vigente, os cristãos se reuniam para celebrar o seu culto. Mais tarde, a construção de igrejas se daria ao lado das criptas e catacumbas e, a partir do século IV, primeiramente os reis e, mais tarde, todos os comuns, passaram a ser sepultados dentro das igrejas.a morte passara, mesmo que de uma forma simbólica, a pertencer aos cuidados da Igreja, porquanto abadias, irmandades, corporações religiosas e de ordem terceiras, passaram a dominar este terreno que se tornava de jurisdição sacerdotal. Era o enterro ad Sanctos. viii Segundo Ariès, as atitudes ocidentais perante a morte se dividiriam em quatro etapas: a morte mansa, do primeiro milênio da era cristã; a morte pessoal, dos 750 anos seguintes; a vossa morte que expressava uma preocupação da família com os seus (do século XIX até o começo do século XX) e a morte proibida, que vigorou nestes últimos trinta e poucos anos. Para além de todas as críticas que se possam fazer a este modelo compartimentado, com certeza pertinentes, é preciso notar que o autor avança quando demonstra um mapeamento da zona desconhecida da consciência humana, sobretudo para o primeiro século d.c. Sobre este tema, Ariès analisa os costumes fúnebres dos primeiros cristãos, que invertiam a prática dos patrícios romanos que sepultavam seus 2

mortos extra muros. Com o advento do cristianismo, o morto voltou a ter um contato com os vivos e assim permaneceu por muito tempo. Ariès também nos informa que por volta do século XIV as sepulturas não eram mais apenas covas que pertencem a alguém, ou a uma família, algo que se passe de geração a geração, mas paulatinamente passavam a representar um monumento, uma peça de um jogo onde a intenção era proclamar aos vivos, as virtudes imperecíveis dos seus habitantes ix. Isso nem a morte poderia apagar; logo, a inscrição nos túmulos se assemelham bastante ao que Pierre Nora chamou de lugares de memória, ou seja, devem-se criar arquivos, (...) manter aniversários, (...) pronunciar elogios fúnebres, registrar atas, porque essa operações não são e não podem ser naturais x. Antes de tudo, elas registram os feitos dos ilustres restos mortais que habitam na sepultura. Se de início elas consistiam em mensagens simples e curtas, ao longo do tempo elas se transformaram em verdadeiras biografias daqueles que temiam a crueldade do esquecimento eterno. Traçando um paralelo com a pesquisa que no momento realizo, eis aí no que difere substancialmente o Cemitério dos Pretos Novos de outros tantos cemitérios que existiram antes, ou viriam a existir depois; ali não existia inscrição alguma, não existia nome algum, nenhum jaz fora escrito nem pronunciado, pois não se pretendia preservar a recordação nem a lembrança dos escravos, nem mesmo grandes feitos de que seus descendentes pudessem se orgulhar mais tarde. Pelo contrário, o desejo premente era o de lançar no esquecimento a existência perene daqueles escravos mortos arrancados de sua terra natal, levados a um reino longínquo para morrerem longe do seu povo e de sua terra xi. A pesquisa desenvolvida sobre este campo santo demonstra sua existência colada ao sistema escravista que existiu no Brasil durante séculos. Ao desembarcarem no porto de Rio de Janeiro, os escravos eram levados para o mercado, ou às vezes, expostos em praça pública, leiloados a quem estivesse disposto a pagar. Muitos negociantes vendiam as suas peças aos fazendeiros abastados de toda província do Rio de Janeiro, e mesmo aos não abastados pois, conforme nos lembram alguns estudiosos, todos podiam comprar escravos, 3

mesmo os mais pobres, de fato, não era preciso ser rico ou ser branco para ser senhor de escravos [...] a escravidão é má e obriga todos (grifo do autor) a sê-lo xii É o Marquês do Lavradio, quando então ocupante do cargo de vice-rei e Capitão General de Mar e Terra do Estado do Brasil, por volta de 1769, quem nos conta como o negócio era feito: Havia... nesta cidade, o terrível costume de tão logo os negros desembarcarem no porto vindos da costa africana, entrar na cidade através das principais vias públicas, não apenas carregados de inúmeras doenças, mas nus... e fazem tudo que a natureza sugeria no meio da rua... xiii O Marquês não perdeu a oportunidade em recomendar que não mais se fizesse o comércio dessa forma e expulsou do centro da província os mercadores e o seu mercado. Desde então o mercado se mudou para a famosa, já a época, Rua do Valongo a qual era conhecida como longa e sinuosa xiv e que terminava no porto: ali se estabeleceram grandes galpões ou armazéns, como preferiu chamar o Marquês, nos quais cabiam de 300 a 400 escravos, que até chegarem ao destino, já haviam por certo transposto um longo caminho; já tinham passado pela alfândega onde eram cobrados os impostos sobre todos os escravos acima de três anos xv e haviam passado um período de quarentena que segundo a lei vigente era de oito dias. Nesse período eles recebiam às vezes uma muda de roupa e tinham suas chagas cuidadas, para depois serem entregues aos mercadores que os conduziam até a rua do Valongo que como sabemos, deu nome a toda parte nordeste da cidade do Rio de Janeiro que hoje compreende os bairros da Saúde e Gamboa e que pertencia à freguesia de Santa Rita. As fontes pesquisadas revelam que vários dos pretos novos sepultados no referido cemitério faleceram durante o período da quarentena. xvi Não raro, seus corpos estavam cobertos de bexigas a tal ponto que o escrivão não podida atestar a marca do escravo feito, ainda em África, pelos mercadores de almas. Foi assim que em três de março de 1825, José Francisco da Silva Guimarães, um dos grandes traficantes da praça comercial do Rio de Janeiro, do século XIX, mandou sepultar uma escrava nova sua, de 4

nome Luiza, falecida no Lazareto xvii. A título de exemplo, conscientes da nossa limitação de espaço para este artigo, se acompanharmos o mesmo traficante que mandou sepultar a preta nova Luiza, veremos que no espaço de tempo de 1825 à 1827, ele mandara sepultar nove pretos novos, sendo três mulheres e seis homens, e destes últimos, três eram crias - crianças de dois a cinco anos. Observa-se que quatro destes, com a Luíza inclusive, faleceram no Lazareto. Para estes pretos novos, como para a grande maioria por nós estudada, não há indicações de que tenham recebido algum tipo de ritual, ou paramento fúnebre, muito embora saibamos que neste mesmo período as pessoas eram inumadas em igrejas. Com efeito, as fontes estudadas não trazem a causa mortis dos escravos, mas sabemos através de outros estudos que por inúmeros motivos a morte se lhes apresentava como um mero detalhe. Simples, caprichosa e costumeira, sua presença se fazia constante entre os malungos desde a captura em África, no translado pelo interior do sertão africano em manilhas e libambos, nos tumbeiros onde ela caprichosa desfazia e recriava novos círculos de afetividade xviii ceifando a vida dos mais debilitados. Deveras a mortalidade era enorme, não inferior a 8 % no primeiro ano e a 6% no segundo. xix Muitos já partiam para o Brasil tendo contraído a malária, disenteria, hepatite, anemia, oftalmia, escorbuto, xx e também varíola, como no caso de uma outra escrava nova, sepultada a mando de José Luis, em 24 de janeiro de 1826, que desembarcara do Bergantim Economia, recém-chegado de Benguela. De tal escrava não se podia registrar a marca do traficante, obrigando o notário a escrever: hua escrava nova cuja marca ignora-se por se não poder conhecer pela muita bexiga xxi.como se pode ver muitos escravos já chegavam mortos, ou semimortos, como descrevemos acima. Para os que morriam ao entrar na Baía de Guanabara, ou para os que morriam no Valongo, um destino era certo: o cemitério dos Pretos Novos. De 13 de dezembro de 1824 a 27 de dezembro de 1825 foram sepultados 1.170 escravos, a grande maioria de escravos adultos do sexo masculino, 73%. Em segundo lugar figuram as escravas adultas, com uma taxa de 12% do total. Quanto às crianças, pode-se dizer que novamente o número de escravos do sexo masculino sobressai (cerca de 6% de 5

meninos contra 4% de meninas). Pela taxa de mortalidade, somos tentados a achar que os homens morriam mais que as mulheres. Porém, essa idéia não pode ser sustentada frente a outros números, como o de entrada de escravos, que indicam que o número de homens era sempre maior que o de mulheres, fato este que gerava um problema na demografia escrava xxii. Outros dados interessantes também foram retirados do livro de Óbitos. Procuramos quantificar o último ano do cemitério, 1830, a fim de verificarmos se a taxa de mortalidade se mantinha estável ou não. No caso de confirmação, poderíamos concluir que medidas para evitar a morte dos escravos não haviam sido tomadas. Se não confirmada nossa expectativa, restava apenas verificar quais foram as circunstâncias que resultaram esta mudança de padrão na mortalidade. Pude observar que o número total de escravos enterrados caíra para 675, menor mesmo que o número de escravos homens sepultados no cemitério em 1825, que foi de 885. Entretanto, fica aqui um registro importante: a taxa de mortalidade estava caindo drasticamente, o que pode apontar para as hipóteses de que os traficantes estivessem tomando medidas para diminuir a mortalidade escrava. O final do tráfico previamente anunciado elevava o preço do escravo, logo, mais mortos significavam, no limite, um maior prejuízo a ser evitado. Por último, o livro de óbitos do cemitério ainda nos indica um outro dado importante: a origem de cada escravo sepultado. Assim pudemos verificar que quase 50 % deles eram provenientes de Angola e Benguela, ou seja, do grupo lingüístico bantófone que por sua vez, guardavam uma forma diferenciada no entender e no se comportar diante da morte. xxiii Na cosmologia congolesa, o mundo encontrava-se dividido em duas partes que se completavam, ou seja, duas dimensões: a do mundo perceptível que seria esta na qual vivemos, e a do mundo das causas invisíveis onde qualquer acontecimento excepcional, fosse bom ou ruim, era fruto de obras realizadas em outro mundo. Por outro lado, os bantos praticavam o culto aos ancestrais, no qual a figura dos antepassados era de suma importância para cada linhagem bem como para o sucesso nas colheitas, na pesca, e para a 6

manutenção da própria vida. Nesse sentido, morrer longe dos seus, ou não ser sepultado significava um corte drástico na manutenção da vida em comunidade. Morrer desta maneira significava ficar sem linhagem e sem uma perspectiva de vida futura xxiv. Além disto, o mar era visto como o um local da travessia para o mundo do além, ou, como na língua banto, a Kallunga, que fazia divisa com o lugar onde os mortos habitavam, que neste caso estava repleto de brancos xxv. É neste sentido que o conhecimento da cultura africana e o seu modo de encarar a morte nos serve como chave de entendimento do motivo pelo qual os escravos buscaram a filiação a irmandades, como no caso da irmandade do Rosário xxvi. Em primeiro lugar eles temiam que seus corpos fossem inumados sem nenhum tipo de ritual, lançados à terra sem nenhum paramento religioso, não porque temessem as covas da indigência, mas porque para eles morrer assim significava, antes de tudo, morrer longe dos seus ancestrais, e em segundo; ser sepultado no cemitério dos Pretos Novos significaria um corte definitivo na linhagem dos antepassados e a impossibilidade, no pensamento africano, de reviver junto aos seus do outro lado do Atlântico, no continente africano. Finalmente, podemos ressaltar que o estudo do cemitério dos Pretos Novos pode, em certa medida, revelar uma outra faceta das práticas de sepultamento no Brasil escravista, pelo menos do século XVII aos meados do XIX, e mostrar que mesmo na hora da alma passar para o além, o cuidado com o corpo inerte nem sempre foi uma preocupação entre os homens. Desta feita, a forma e lugar no qual se é inumado variava de acordo com a posição social do morto, o que nos faz lembrar a oração que dizia, certamente, carregada de outro um sentido:... assim na terra como nos céus, xxvii A desigualdade terrena refletia uma diferenciação nas práticas inumistas e nos locais destinados para este fim, já que o local do sepultamento está carregado de implicações simbólicas forjadas ao longo do tempo pelos homens das mais variadas culturas. 7

O autor é mestrando em História pela Universidade Federal do Rio de Janeiro e desenvolve dissertação orientada pelo Prof. Dr. José Murilo de Carvalho, sob o título que dá nome a este artigo. i Pretos novos é a nomenclatura dada aos escravos recém-chegados antes de serem vendidos ou aprenderem a língua nativa. Pelo fato de nossas fontes se referirem constantemente ao termo: preto novo, procurei a partir daqui usá-lo sistematicamente. ii CHARTIER, Roger. História Cultural. Entre práticas e Representações. Lisboa: Difel: Rio de Janeiro: Editora Bertrand Brasil. 2000. iii MARIZA Soares chama atenção para o fato de que os sepultamentos realizados, principalmente, pelas irmandades, consistiam em procedimentos como o pagamento do padre, a mortalha, o esquife, a sepultura, missa e velas. In: SOARES, Mariza de C. Devotos da Cor. Identidade Étnica, Religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p. 152. iv Conf. SOARES, Mariza de C. p. 136-7. v ENGEMANN, Carlos et al. Sociabilidade e mortalidade escrava no Rio de Janeiro de Janeiro - 1720-1742.. in: Ensaios sobre escravidão. Manolo Florentino & Cacilda Machado (org). Belo Horizonte: editora UFMG, 2003. p. 195. vi CATROGA, Fernando. O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos em Portugal, 1756-1911. Coimbra; Editora Minerva, 1999. p. 41. vii MONTEIRO Antônio Xavier de Souza, A sepultara eclesiástica, Coimbra, Imprensa da universidade, 1873, pp- 3-5. In: CATROGA, Fernando. O céu da memória. Cemitério romântico e culto cívico dos mortos em Portugal, 1756-1911. Coimbra; Editora Minerva, 1999. viii Ibidem p.43. ix ARIÈS, Philipe. História da Morte no Ocidente; desde a Idade Média aos nossos dias. Rio de Janeiro: Francisco Alves, 1997. x NORA, P.Les lieux de la mémorie. Paris 1: Gallimard, 1984. xi Faz-se necessário ressaltar que a redescoberta do cemitério se deu em janeiro de 1996, quando foi feita uma reforma na casa de n.º 36, situada à rua Pedro Ernesto, na Gamboa, zona portuária do Rio de Janeiro. No local foi criado o sítio Arqueológico dos Pretos Novos. No entanto, o poder público ainda não se manifestou efetivamente no sentido de retomar as escavações. xii GÓES, José Roberto Pinto de.são muitas as moradas: desigualdade e hierarquia entre os escravos. In:. FLORENTIINO, Manolo & MACHADO, Cacilda (org). Ensaios sobre escravidão Belo Horizonte: editora UFMG, 2003. 287 p.202. xiii Citação do Marques do Lavradio retirada de Brás Amaral, Os Grandes mercados de escravos africanos in Factos da Vida do Brasil. Bahia. 1941, pp. 148-149. xiv CONRAD, Robert Edgard. Tumbeiros. O tráfico de escravos para o Brasil. São Paulo: Brasiliense. 1985. xv CONRAD, Ibidem. p. 58. xvi Arquivo da Cúria Metropolitana do Rio De Janeiro.Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita (1824-1830). xvii ACMRJ Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita (1824-1830), fl. 11. xviii REIS, João José. A Morte é uma Festa. Ritos fúnebres e revolta popular no Brasil do século XIX. São Paulo. Companhia das Letras. 1991. xix CONRAD. Ibidem. p. 25 xx CONRAD. Ibidem. p. 25. xxi ACMRJ Livro de Óbitos de escravos da Freguesia de Santa Rita (1824-1830), fl. 47. xxii Conforme: GÓES, José P. de, Cordeiro de Deus: Tráfico, demografia e política dos escravos no Rio de Janeiro da primeira metade de século XIX. Texto inédito. p. 8. xxiii Conforme: SLENES, Robert W. Malungu, Ngoma Vem! África coberta e descoberta no Brasil. Cadernos do museu da escravatura. N.1. Ministério da Cultura. Luanda. 1995. p. 8. xxiv SILVA, Alberto da Costa e, A Manilha e o Libambo. A África e a escravidão de 1500 a 1700. Rio de Janeiro: Nova Fronteira; Fundação Biblioteca Nacional, 2002. xxv Não só a cor branca significava a morte, mas também os homens brancos eram tidos como os próprios mortos, conf. : KARASCH, Mary C. A Vida dos Escravos no Rio de Janeiro (1808-1850).São Paulo: Companhia das Letras, 2000. p. 78. xxvi SOARES, Mariza de C. Devotos da Cor. Identidade Étnica, Religiosidade e escravidão no Rio de Janeiro no Século XVIII. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2000. p.175. xxvii Mateus cap. VI-9. Parte b. Bíblia de Jerusalém.São Paulo: Edições Paulinas, 1985. 8